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tráfico de interesses que provocaram ampla indignação nacional.

No documento Vargas e a crise dos anos 50 (páginas 94-97)

Esse conjunto de situações - ou cenas - constitui a questão central a que se refere estc artigo: como o produto minissérie gerado porumaindústria

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cultural, com larga audiência, recriou uma das conjunturas históricas mais marcantes e trágicas da história do país, e transmitiu com o olhar do presente

um conhecimento sobre tal período. Ao reconhecennos em

Agosto

o caráter

de um documento histórico que, através de uma detenninada fonna e com

olhar de hoje,

significado ao passado, sabemos estar diante de elementos

de representação dos acontecimentos de agosto de

1954

construídos por uma

série de televisão. Esse aspecto é tão mais importante se considerannos que, através de imagens socialmente produzidas, a televisão "educa", e que a análise do processo de produção, da forma de apresentação do conteúdo e de sua recepção é fundamental para que se perceba todo esse circuito de mediações criadoras de sentido, e que conferem ao texto televisivo - como a todos os textos - o caráter de representação e não de expressão real e direta dos fatos.

Por outro lado, convém lembrar que

asérie brasileira,

na qual se inscreve

a minissérie em questão, vem recorrendo a temas voltados para a realidade do país, inclusive sua própria história política recente, sofisticando em certo

sentido a fórmula de entretenimento da televisão.' Em

1992,

foi a vez de

Anos Rebeldes,

retratando o período da ditadura militar c da atuação dos

grupos

de

esquerda naquele período, coincidindo - seria apenas coincidên­

cia? - com a eclosão do movimento dos cara-pintadas, encabeçado por estudantes de vários pontos do país que reivindicavam a deposição do

presidente Collor. Segundo a impren�

Agosto

não teria sido realizada

naquele ano por motivos financeiros, já que a emissora comprara os direitos do livro desde seu lançamento.

O fato de uma televisão comercial investir em determinada programação significa necessariamente a existência de um mercado consumidor desse

produto, capaz de conferir a esse veículo de comunicação wn alto índice de

audiência, o que lhe garante, JXJr outro lado, um grande poder enquanto fonnador de opinião e de comportamento, assim como de manipulação dos valores, das crenças, dos desejos c sentimentos do espectador.2 Esse poder

Parodiando episódios também recentes da história brasileira centrados na figura do então presidente Collor, a TV Manchete produziu a novela O Marajá que, programada para ser lançada na mesma época de Agosto, foi impedida de ir ao ar por decisão da Justiça. em função de recurso impetrado pelo próprio presidente Collor.

2 Fora do campo ficcional das telenovelas e dos seriados, a extensão desse poder pôde ser dramaticamente comprovada pelo fenômeno Collor. Mais recentemente, às vésperas das

eleições para renovação do Parlamento italiano, cuja vitória da aliança direitista liderada pelo empresário Silvio Berlusconi - dono de três redes nacionais de televisão -já era tida como certa, o cientista político Norberto Bobbio procurava entender os acontecimentos, af"umando: "A explicação mais freqüente e também mais fácil pode ser encontrada na

constatação de uma ' videocrncia' triunfante, ou seja, do triwúo do pc:xler que se exerce não mais pela palavra falada, que poucos se dispõem a escutar, ou por aquela escrita que

Agosto e agostos _ 99

se espraia através de uma gama de subprodutos, cuja matriz é a própria série. No caso de

Agosto,

foi produzido um disco com canções de época anunciado nos intervalos comerciais da série, assim como um

home

vídeo que reduziu os

16

capítulos de

45

minutos cada a duas horas, e ainda outra reedição para comercialização no exterior no fonnato de um filme seriado com quatro ou cinco programas, a ser apresentado uma vez por semana. A própria editora do romance

Agosto

aproveitou a estréia da minissérie para lançar uma nova edição do livro em formato de bolso.

Essas considerações, ainda que gerais, nos parecem pertinentes no senti­

do de reiterar o poder da televisão, não só em tennos fmanceiros, mas sobretudo como agente de constituição de um imaginário social que se apóia na atração que as séries de televisão - tanto as telenovelas quanto as minisséries - exercem sobre wna larga audiência. Ao telespectador desti­ nam-se as imagens projetadas na pequena tela, ainda que, diferentemente do espectador do cinema, ele tenha alguns "poderes", tais como mudar o canal, desenvolver alguma atividade doméstica simultânea ou escolher o horário que lhe convém para assistir um programa utilizando a gravação em vídeo.

Diante dessas observações, cabe-nos avançar na definição do objeto do presente trabalho no que se refere à análise das condições em que uma série de televisão é um documento histórico. Um primeiro e fundamental aspecto diz respeito ao fato de estannos diante de um texto - o televisivo - distinto daquele tradicionahnente utilizado pelas análises históricas, baseadas na linguagem escrita. A articulação entre a imagem, a palavra, o som e o movimento, trazida pela narrativa de uma minissérie, assim como suas condições de produção e recepção, impregnam-na de um sentido específico fora do campo das evidências que simplesmente referendariam - ou não - um conhecimento trazido pela tradição escrita, no caso de uma narrativa com referencial na história. A conclusão desse paralelo seria certamente óbvia e por isso desnecessária, delegando ao texto televisivo que narra uma história a condição de portador pura e simplesmente de um desenrolar de situações tais como elas ocorreram. A mera ilustração do saber escrito revelaria acima de tudo um desprezo não só à própria capacidade da percepção humana, mas também à possibilidade de um conhecimento da realidade em sua multiplicidade.

pouqUlsslmos têm tempo para imprimi-la na mente. mas pela imagem que entra insistentemente nas casas de todos e se ftxa na memória muito mais do que um discurso. A todos já aconteceu de ouvir dizer: 'Vi na televisão', mas diante da pergunta: 'De que coisa faJavaT, a res(X)sta sempre foi: 'Não recomo' ... (Jornal do Brasil, 27-3-1994).

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No documento Vargas e a crise dos anos 50 (páginas 94-97)

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