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fugiram dos ataques da Aeronáutica juntaram-se a outros milhares que se encontravam no centro da cidade e passaram, em grupos imensos, a percor rer as ruas aclamando Getúlio Vargas e insultando Carlos Lacerda e outros políticos da oposição.
Alguns desses grupos, bastante revoltados, ao se encontrarem com sol dados do Exército, avançaram contra eles sem medir as conseqüências. Os militares, assustados, dispararam conlra a população causando dezenas de feridos à bala, por estilhaços de granada e golpes de sabre. Eram necessários reforços: batalhões da Polícia do Exército e choques da Polícia Especial foram chamados, obrigando os revoltosos a se dispersarem - pelo menos assim imaginavam os oficiais comandantes. A tática popular era a de sair em evasiva após o combate para se reagrupar e recuperar forças em outro local. Concentraram-se, então, na Cinelândia.
Reunidos entre a rua Santa Luzia e a avenida Treze de Maio, os manifes tantes improvisaram um ato público em que a tônica era o lamento pelo presidente morto. Sem violência, as pessoas ouviam atentas os discursos. Era o momento da ordem. Um orador, da janela da sede do PTB, falou de maneira inflamada, acusando Lacerda e a direita de golpistas e lembrando a obra de Vargas. A veemência de suas palavras fez a aglomeração crescer ainda mais.
Foi nesse instante que chegaram algumas caminhonetes da Polícia Civil com investigadores liderados pelo temível comissário Deraldo Padilha,
partidário de Carlos Lacerda. Em atitude provocativa, Padilha prendeu uma
mulher que assistia ao comício, afrontando, conscientemente, a ira popular. Para Thompson, tanto a violência de Estado quanto a violência popular não têm como seu parâmetro a quantidade. Muitas vezes a arbitrariedade contra
um só indivíduo pode gerar grandes ondas de protesto
(1992,
p.71).
Nãosatisfeito em agredir o senso de justiça da população - afinal, a mulher apenas assistia ao comício, como tantos outros -, Padilha ainda chamou o "Brucutu" , carro-tanque usado para dispersar aglomeraçães. As pessoas, entretanto, não se acovardaram: era necessário libertar a mulher e responder ao comissário à altura. Arrancaram, então, os bancos de madeira da praça e improvisaram barricadas, impedindo a passagem do "'Brucutu-. Encoraja dos pelo êxito, partiram furiosos em direção a Padilha c seus homens, que, acossados, sacaram as annas e atiraram várias vezes contra a multidão. Muitos tombaram com os tiros, feridos em diversas partes do corpo, mas a revolta era maior do que as perdas e, ainda assim, continuaram avançando alé alcançarem as viaturas policiais, libertarem a mulher e incendiarem totalmente os veículos. Padilha, assustado, fugiu.44
o carnaval da tristeza _ 81
No auge domotim, comemorando a fuga do comissário, oresgateda prisioneira e o incêndio dos automóveis, eis que chega um choque da Polícia FspeciaI." Pela
experiência nos embates
de
rua e pelo poder de fogo da. melralhadoras que elespol1avam, o massacre da população era, agora, questão
de
minutos. Enlretanto, ecuriosamente, a chegada da Polícia Especial fez a ordem se restabelecer. E não
por medo, mas por identificação de valores.
Aqueles policiais, profissionais no ofício e altamente qualificados e disciplinados, devotavam, na mesma medida, grande carinho por sua corpo
ração e pelo
seU
fundador, Getúlio Vargas. O impacto com que receberama notícia da moMe do presidente foi tão significativo quanto o da população.
Logo que convocados para irem
às
ruas, os policiais receberam no quarteltarjas negras que amarraram nos braços em sinal de lutO.46 Um deles, ao sair em um choque logo nas primeiras horas do suicídio, desmaiou de emoção
dentro da viatura. O colega ao lado, ao socorrê-lo, disse-lhe consolando:
"é
triste, companheiro, mas agüenta finne que a gente é polícia " .47 Outro caso refere-se a dois policiais especiais que, na visitação pública ao corpo de Vargas, de repente se viram cercados por uma multidão. Um deles, receoso, comentou com o parceiro: "Se este povo resolver nos pegar, estamos perdidos .... Mas a seguir ouviram um grito: "Olhem, é a polícia do Getúlio!" E logo aplausos dirigidos aos dois e exclamações de 'Viva a polícia do Getúlio!" deixaram-os entre surpresos e acanhados.48 Nas ruas, em pleno motim, quando passava um choque da Polícia Especial, a população geral mente aplaudia manifestando grande simpatia. O uniforme cáqui e o quepe vermelho dos agentes denunciavam a proximidade com Getúlio Vargas.
Naquele momento, as pessoas fi7..cram wna apropriação, no sentido dado
por Roger Chartier
(19R7),
da imagem Polícia Especial. Ela não maisrepresentava a corporação temida, pronta a reprimir e a bater, mas, reorde nando e recriando simbologias, era vista simplesmente como a "polícia do
Genílio'·'. Para entender a leitura popular da Polícia Especial,
é
necessáriolembrar que a Imagem, na definição de Mircea Eliade, engloba um conjunto de significações, e, por isso, ela não pode ser rcduzida a uma única ou mesmo
45 Um choque da Polída Especial era composto por 24 homens: um chefe, um subchefe, dois motoristas, 10 vanguardeiros. dois gmnadeiros atimdores. dois granadeiros lançadores, dois policiais com metralhadoras Thompson. dois com metralhadoras Swomi e dois com metralhadoras Bergman. O poder de fogo de um choque ainda era acrescido por bombas lacrimogêneas. vomitivo-desintéricas e de efeito moml. Ver CIRPOL Infonnativo do Circulo Policial Brasileiro. Rio de Janeiro (3), ago./set. 1992.
46 Última Hora. 25-8-1954, edição extra, p. 5.
47 Depoimento concedido ao autor por Oscar Soares de Oliveira, delegado aposentado da
Polícia Civil do estado do Rio de Janeiro, em 28 de agosto de 1 993.
48 Depoimento concedido ao autor por Hitmar Ferreira, agente de Policia Fctleral aposentado, em 25 de agosto de 1993.
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