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E a televisão reinventa a história

No documento Vargas e a crise dos anos 50 (páginas 100-105)

Diante do aparellio de televisão, assiste-se a uma história construída por imagens que se movimentam. sons. palavras e ruídos. A conjugação desses elementos expressa uma linguagem que, da mesma fonna que o cinema. revela temas. valores e mensagens através de uma articulação com elemen­ tos estéticos e simbólicos que conferem sentido à narrativa que se desenvol­ ve para o espectador. A linguagem cinematográfica, assim como a da televisão, representa uma história a partir dos vários elementos utilizados para a confecção do produto fmal: enquadramento. iluminação, movimentos de câmera, montagem, composição de som, e composição de som e imagem entre si, relacionados de fonna sincrônica e diacrônica. A inserção desse conjlUlto num determinado gênero estético estabelece uma série de repre­ sentações simbólicas que constroem o mundo ficcional apresentado ao espectador.

A minissérie

Agosto

contém uma narrativa que mescla uma história ticcional em torno das investigações sobre um crime cometido contra um empresário com fatos reais ocorridos na vida política brasileira nos primei­ ros

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dias de agosto de

1954,

narrados cronologicamente. A trama é pontuada por referências à crise deflagrada no cenário político através de manchetes de jornais, noticiários de rádio e televisão, que tanto se interpõem nos diálogos quanto são destacadas por

c/oses

que centram nossa atenção nos textos e nas fotos dos jornais. Além da utilização desses recursos, possíveis pela simultaneidade temporal e pela montagem construída pelo cinema e pela televisão, os acontecimentos mais marcantes do período são não só representados na série, mas também se articulam com a própria trama interna da narrativa ficciooal. A intensidade dramática dos fatos históricos se articula assim com a própria dramaticidade da ficção. Vale registrar as cenas do atentado contra Carlos Lacerda; a perseguição e a prisão de Cümério Euribes de Almeida, membro da guarda pessoal de Vargas envol­ vido no atentado; os interrogatórios na "República do Galeão"; a reunião ministerial da madrugada de

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de agosto; o suicídio de Vargas e a comoção nacional no seu velório no Palácio do Catete e nas ruas da capital.

O imbricamentode ficção e realidade, que constituem o mundo ficeional dramático da série, está claramente defInido nas suas primeiras cenas.

À

descrição minuciosa, ao som de Vivaldi, do apartamento do empresário reoêm-assassinado na primeira seqüência do primeiro capítulo, suoede a apre­ sentação da figura de Gregório Fortunato, chefe da guarda pessoal de Vargas, espreitando o presidente em aposento no Palácio do Catete através de vários

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suspeitos é imediatamente instaurado, muito embora o comissário de polícia

que investiga o caso venha a suspeitar de Gregório somente no capítulo 6.

O desenvolvimento da narrativa segue o gênero do filme

noir,lO

e é no

interior de uma iconografia pertencente a essa maneira de filmare estruturar a ação e os personagens que a história é contada, inclusive os próprios fatos

históricos. Agosto de

1954

é assim reconstruído com base nos temas e nas

características estilísticas específicas do gênero que imprime um tom pes­

simista

à

série, embora absorva outros gêneros cinematográficos. Convém

aqui arrolar algumas das características do cinema

noir:

a trama se desenrola

na cidade, local da corrupção - inclusive da própria polícia -, dos crimes e onde se instala uma rede de intrigas; os personagens são incontornavel­ mente bons ou maus, e entre eles existe uma mulher fatal, bela e perversa c um anti-herói honesto, incorruptível e frágil; a violência está associada ao sadismo e o final é ambíguo." Com relação ao estilo da narrativa, cabe mencionar o recurso ao preto e branco (se bem que, na série, isso ocorra exclusivamente nas cenas que são utilizadas com a função de docwnentar

mn fato

real),

a iluminação contrastada acentuando as sombras e as tomadas

noturnas, o realismo das cenas, além da narração em

of!

(na série, através

das locuções no rádio e na televisão juntamente com imagens dos fatos ocorridos, como que antecipando as cenas do capítulo seguinte e reconsti­ tuindo as do capítulo anterior). Por sua vez, as seqüências de amores não correspondidos culminam em situações dramáticas típicas do melodrama, assim como o esmero da reconstituição dos cenários, dos figurinos, da seleção das músicas e a própria utilização da cor.12

A linguagem de mna série de televisão acrescenta alguns elementos que são específicos ao meio: uma mesma abertura todos os dias, a narrativa entrecortada por comerciais e todos os capítulos precedidos por cenas do capitulo anterior e antecipando as do capitulo seguinte como elemento de atração do público. Nessa mesma direção, a imprensa por sua vez antecipa as cenas da semana, acompanha por vezes o seu desenrolar, alguns poucos críticos manifestam reações assim como personalidades relativamente co­ nhecidas do público.

A abertura da minissérie e o corte para os intervalos comerciais defmem

o tempo histórico no qual a ação transcorre, através da alternância e

da

justaposição de imagens fixas e com movimento, em preto c branco, de

10 Para uma caracterização detalhada do gênero cuja denominação tem suas origens na literatura noir, ver Cieulat, MimeI. te film noir Ciném Action: panorama des genres (lU

cinéma. Corlet-Télérama (68). 3.éme trim. 1993. t i Id., ibid.

12 Sobre o melodrama, ver Piton, I ean-Pierre. Le mélodrame américain. In: Panorama des genres a" cinéma. Op. clt.

Agosto e agostos _ 105 Getúlio Vargas, Carlos Lacerda e Gregório FortlUlato, certamente

Irês

personagens decisivos no desenrolar da crise política de agosto de

1954

e que são aqui representados de uma fonna que estabelece uma identificação imediata com o espectador: Vargas com o tradicional aceno para as massas acompanhado por um sorriso temo e nas cenas de seu velório marcado por uma grande comoção popular; Lacerda proferindo discursos com uma expressão inflamada e apoiado em pessoas no atentado da Toneleros, e Gregório acompanhando Vargas no exerclcio de suas funções de chefe da guarda pessoal do presidente. A tensão existente enlre esses personagens e que confere esse efeito

às

imagens é a inserção de um rastro vennelho entre elas. Mas é sobretudo ao final, quando surge a marca da série, a palavra "agosto", em letras garrafais, partida ao meio por esse rastro, de cor venne­ lha, como um tiro ao som de algo que se rompe, que está mais claramente definida a dramaticidade contida nesse agosto de atentados, mortes e suicí­ dios (ver ilusrração). Aliás, como na própria narrativa ficcional.

Na série propriamente dita Vargas é apresentado com um semblante reflexivo, e suas aparições se fazem somente pelas frestas

das

janelas e das portas, e sempre sem fala, enquanto Lacerda só é visto rapidamente na noite do atentado. Gregório, ao contrário, é um personagem importante no desen­ volvimento da lrama pelas suspeitas que pesam sobre ele como possível assassino do empresário Paulo Aguiar, o que leva o comissário Matos a querer interrrogá-lo na "República do Galeão". Enlretanto, a polarização enlre ser lacerdista ou ser getulista é bem marcada nos diálogos de alguns personagens, reforçando a tensão já enunciada na abertura e nos cortes para os intervalos, além

das

várias referências ao acirramento do conflito político através

das

manchetes dos jornais e dos infol1llativos do rádio e da televisão. Deve-se observar, contudo, que os j ornais não são identificados (exceto uma única aparição de

O Globo),

nem fazem oposição ou são críticos ao governo, assim como não é feita referencia ao empastelamento de

O Globo

no dia do suicídio de Vargas.

Por outro lado, é no curso

das

investigações do comissário Matos sobre . o assassino do empresário que vai se estabelecendo uma sucessão de

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representações dos valores de uma sociedade corrompida, amoral, perversa e injusta, e cujos protagonistas vão se tornando possíveis suspeitos do assassinato previsível de Matos.

É

possível afmnar que existe uma crítica social e política no desenvolvimento da trama em relação a esse aspecto, conduzida pela própria atuação do anti-herói Matos, angustiado, honesto e incorruptível, que não é lacerdista nem getulista embora tenha sido preso, durante o Estado Novo, quando estudante. Ele sofre de úlcera, e passa grande parte do tempo consumindo antiácidos, numa busca obstinada do assassino e enfrentando a arbitrariedade policial e a superlotação de presos na delega­

cia.

Os

copos de leite tomados por Matos ao longo de toda a narrativa, abrindo algumas seqüências ou em

dose,

são crescentemente insuficientes para conter suas dores e sua tensão diante dos obstáculos do desvendamento do crime e, numa possível analogia com a história real, para conter o agravamento da crise política.

Empresários corruptos, chantagistas, frios e assassinos envolvidos em negociatas e beneficiados por informações privilegiadas obtidas junto a funcionários do próprio governo, bicheiros mafiosos ligados ao crime e à

polícia e problemas com a superlotação de presos na delegacia são persona­ gens e situações recorrentes ao longo de toda a narrativa. Nesse contexto, em torno de Gregório se constrói uma aura de mistério, através da descrição minuciosa dos seus atos, gestos e falas, em

doses

marcados por rnna iluminação sombria; e são recorrentes as tomadas do personagem ao telefone cuidadosa­

mente enquadradas tendo acima o retrato de Vargas. Gregório é o personagem de ligação entre o conteúdo ficcional e o histórico não

por ser suspeito do

assassinato do empresário e pelas ligações em transações ilícitas cem outros

empresários, mas também pelas seqüências do interrogatório na base aérea do Galeão, que nos remetem diretamente ao contexto histórico da lrama.

O espaço de representação da política em termos estritos se constrói através de um senador do PSD, homossexual, corrupto e inescrupuloso, próximo ao empresário Pedro Lomagno, mandante direto e indireto de alguns crimes da trama, como o do comissário Matos e do próprio empre­ sário assassinado, de cuja mulher é amante. A idéia do poder desse senador do partido de Vargas é transmitida não só pelas falas nas quais revela o forte oportunismo na condução de seus atos e uma ampla experiência no exercício da política, mas também pela minuciosa descrição, através de planos longos, dos ambientes por ele freqüentados, tais como wn restaurante refinado, um bordel denominado Senadinho, e seu próprio apartamento ricamente deco­ rado em edifício cujas tomadas se fazem sempre em

contre-plongée,

desta­ cando a imponência do ambiente em que vive. Os discursos por ele proferi­ dos são sempre carregados de adjetivos, cujo efeito é testado em tooas as cenas tanto diante de seu chefe de gabinete Clemente quanto ante o espelho,

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diante do qual se posta com altivez. A ironia presente em suas conversas com Clemente e com os amigos empresários - afinal ele afirma que o PSD sempre foi poder, o que lhe garante a possibilidade de desfrutar uma situação favorável - é apresentada de forma

teatral,

o que destaca com veemência o cinismo e a ambigüidade de seus atos no campo da política. Nesse contexto, o exercicio da politica é identificado, através do personagem, como o campo da representação de interesses particulares, e uma mesma

frase

repetida em duas cenas distinlas pelo senador destaca o princípio que move sua ação: "Sou nordestino. Sabe o que isto quer dizer'? Que eu sou sobrevivente'".

Os

populares retratados na série são matadores de aluguel, empregados domésticos, prisioneiros e pessoas humildes que entram e saem da delegacia por infrações sem gravidade. Em tomo da seqüência espetacular da perse­ guição a Climério, revela-se a polarização já apontada anteriormente quanto

às

opções políticas daquele momento: enquanto o compadre de Climério defende Vargas, "homem bom para os pobres", uma mulher o reconhece numa venda da Baixada Fluminense e antes de fazer esta denúncia exclama: "pelo dr. Lacerda eu faço qualquer coisa". São contudo as cenas do velório de Vargas que marcam a presença popular na minissérie, reunindo persona­ gens anônimos - ficcionais e registrados em imagens de época - que, aos milhares, dirigem-se ao Palácio do Catete para ver o presidente morto e acompanhar o cortejo fúnebre pelas avenidas da cidade até o avião que o conduziria a São BOlja, sua cidade natal.

Os

registros documentais utilizados nessa seqüência são em preto e branco conferindo dramaticidade e verossimilhança às cenas, e se somam aos ficcionais, em cor. Por vezes, esse conjunto de imagens de natureza distinta é enquadrado nos aparelhos de televisão que, ainda escassos à época, existiam exclusivamente nos apartamentos da elite e no Palácio do eatete. Uma voz em oflnarra os acontecimentos, bem ao estilo de locução do rádio. A conjugação das imagens de televisão com a narração radiofônica leva os espectadores e ouvintes a voltar-se imediatamente para a virada do jogo político. Entretanto, a menção aos incidentes deflagrados em vários pontos do país, como quebm-quebras e saques, só é feita pelo rádio, que anuncia simultaneamente o temor de políticos sobre a existência de um plano comunista internacional visando instaurar uma ditadura soviética no país. Aliás, tanto Matos quanto Lacerda são taxados de "comunas" quando identificados como loucos.

A

virada política do país, ocasionada por um gesto solitário, corresponde a virada pessoal de Matos: sensibilizado com o ato do suicídio de Vargas, no qual

acredita quando entra no próprio quarto do presidente e após percorrer os jardins do Palácio onde circulavam populares abalados com o fato, o comissário dirige-se ao trabalho, e após um momento de reflexão

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pautado por inúmeros envelopes de antiácidos por ele dispostos organiza­

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