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Começam os distúrbios

No documento Vargas e a crise dos anos 50 (páginas 69-72)

"Para que tenham lugar as irrupções populares ou a ação política", diz Barrington Moore Jr., "é indispensável que ocorra algum incidente precipi­

tador sob a forma de uma nova, súbita e intolerável indignação"

(1987,

p. 442). Na capital da República, a notícia do suicídio de Vargas detonou inquestionavelmente na população um profundo sentimento de revolta e amargura. Grupos de populares, indignados, passaram a percorrer as ruas do centro da cidade com paus e pedras. Dirigiam seu rancor particulannente contra todo e qualquer material de propaganda política da oposição. Com escadas trazidas de casas e prédios próximos. várias pessoas. com a ajuda de outras, subiam em postes e marquises e jogavam ao chão faixas e cartazes que eram queimados imediatamente. Os símbolos políticos mais visados e destruídos com certa fúria aludiam aos candidatos da

UDN."

26 O Dia. 25-8-1954, p. 6.

27 ÚltilM Hora, 25-8-1954, edição extra. p. 4.

o carnaval da tristeza • 73

o

centro da cidade foi tomado por

três

grandes grupos de manifestantes.

O primeiro saiu da galeria Cruzeiro em direção ao largo da Carioca e para a Cinelândia, destruindo pelo caminho toda propaganda oposicionista. O segundo grupo, mais revoltado, fez o mesmo nas imediações do Tabuleiro da Baiana. Alguns amotinados chegaram a subir nos postes, sem o auxílio de escadas, para arrancar e atear fogo no material político. O terceiro grupo concenlrou-se na Cinelândia e ruas laterais?9 Tanto no centro, quanto nos subúrbios, os manifestantes voltavam seu ressentimento contra as siglas partidárias, nomes e rostos impressos em papéis e tecidos. Como no popular dia da "malhação do Judas", alguém jogava do alto de um poste a repre­ sentação impressa de um político para que outros, com certo prazer, de.."icar­ regassem sua violência. Assim como as elites conservadoras tudo fizeram para aniquilar politicamente Vargas por meio de idéias-imagens e pela manipulação de símbolos necessários à legitimidade do poder, agora a população, revidando, destroçava a simbologia política dos adversários do presidente. Em agosto, a luta política da oposição contra Vargas e de populares contra os grupos conservadores também foi uma "guerra de imagens�', para usar uma expressão de Serge Gruzinski.30

No meio da manhã, os

três

grupos encontraram-se e milhares de outras

pessoas juntaram-se a eles no centro da cidade. Na avo Almirante Barroso,

o prédio de

O Globo

foi cercado por uma multidão que tentou invadir suas

dependências, mesmo diante do policiamento ostensivo. Após apedrejarem a fachada, cercaram dois caminhões de distribuição do jornal e os incendia­ ram. Bombeiros, três choques da rádio-patrulha e forças do Exército, ao chegarem, impediram a destruição, mas nada puderam fazer para evitar o incêndio dos veículos e nem a queima de milhares de exemplares do jornal.31

As

pessoas, fruslradas, dirigiram -se então para a Cinelândia e entraram à

força na sede do Movimento Nacional Popular, de oposição, jogando pela janela móveis e material de escritório. Dali mesmo improvisaram um comício com oradores que atacaram duramente Carlos Lacerda, vaiado sempre que seu nome era pronunciado.32

Outras centenas de pessoas foram para a

Tribuna da lmpren..'w,

mas

novamente a invasão foi impedida, agora pela Polícia Especial.

Os

revolto­

sos, contudo, não se confonnaram diante da bandeira nacional hasteada na sacada do segundo andar. Era necessário colocá-Ia a meio-pau, em sinal de

29 Correio da Manhã, 25-8-1954, p. 3.

30 Gruzinski, Serge. A guerra das imagens e a ocidentalízação da América. In: Vainfas.

Ronaldo (org.). América em tempo de conquista. Rio de Janeiro. JorgeZahar, 1992.

31 o Dia. 25-8-1954. p. 3.

74 • Vargas e a crise dos anos 50

luto. Como já se tornou lugar-comum, o respeito aos mortos é sinal de respeito aos vivos. Após certa negociação, os populares, sem condições de tomarem o prédio, e a Pollcia&pecial, sem ter como dispersá-los, chegaram

a um acordo: um popular e um policial entraram na redação e desceram a bandeira a meio-pau, como manda a tradição. Mesmo assim, toda a edição do jornal foi queimada na rua em frente.

A reverência ao presidente falecido, aliás, era quase uma obsessão popular. Na Cinelândia, nesse mesmo momento, um orador, no comício improvisado, acusou a Rádio Globo de continuar transmitindo música popular, desconhecendo a morte de Vargas e outras emissoras que, em sinal de pesar, tocavam música clássica. Annados com sarrafos e cacetes, grupos de manifestantes tentaram tomar de assalto a rádio na avo Rio Branco. A presença da Polícia &pecial, entretanto, novamente impediu a depredação. O ataque àqueles que não manifestavam sobriedade pela morte de Vargas tem um duplo sentido: se na cultura popular o desrespeito aos mortos é falta grave, havia o complicador de que o descaso com o falecimento do presidente era também uma desconsideração ao sentimento e à dor das pessoas.

A partir do meio-dia, as forças policiais começavam a perder o controle da situação. Apesar de todo o contingente das polícias Militar, Civil, Especial e a do Exército nas ruas, era cada vez mais difíci1 reprimir e dispersar a população.

Os

vários focos de manifestações superavam a capacidade

de

mobilização dos policiais. Como medida de segurança, o Exército cercou rádios e jornais e a av. Rio Branco e a rua do Lavradio foram interditadas - protegendo-se, desse modo, a Rádio Globo c a

Tribuna da

Imprensa.

Mesmo assim, postos eleitorais, sedes partidárias de oposição e os jornais

A Notícia

e

O Mundo

foram apedrejados. Sem condições de dispersar a multidão, os policiais passaram a utilizar bombas de efeito moral, gases lacrimogêneos e armas de fogo. Várias pessoas saíram feridas, sendo

três delas à bala: um operário com um tiro no maxilar e dois comerciários

com tiros nas costas.

Outros grupos, porém, ao se dirigirem ao Palácio do Catete, passaram em frente da Embaixada dos &tados Unidos. Após apedrejarem as vidraças da Standard Oil, começaram a vaiar e a jogar pedras e pedaços de pau na fachada da representação norte-americana. A chegada de reforços da cava­ laria pouco adiantou. Um soldado do Exército, ao disparar o fuzil, assustou os cavalos, aumentando ainda mais a confusão. Bombas de efeito moral também foram lançadas, sem contudo amedrontar os amotinados. Somente com a chegada da Polícia &pecial a população se dispersou - além de atemorizar os próprios soldados do Exército. Um homem não identificado

o carnaval da tristeza _ 7S

foi atingido por um tiro dado por um militar, mas logo socorrido por um

motorista que o levou ao hospital."

A morte inesperada de Vargas foi vivenciada pelos trabalhadores e pelas

No documento Vargas e a crise dos anos 50 (páginas 69-72)

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