"Para que tenham lugar as irrupções populares ou a ação política", diz Barrington Moore Jr., "é indispensável que ocorra algum incidente precipi
tador sob a forma de uma nova, súbita e intolerável indignação"
(1987,
p. 442). Na capital da República, a notícia do suicídio de Vargas detonou inquestionavelmente na população um profundo sentimento de revolta e amargura. Grupos de populares, indignados, passaram a percorrer as ruas do centro da cidade com paus e pedras. Dirigiam seu rancor particulannente contra todo e qualquer material de propaganda política da oposição. Com escadas trazidas de casas e prédios próximos. várias pessoas. com a ajuda de outras, subiam em postes e marquises e jogavam ao chão faixas e cartazes que eram queimados imediatamente. Os símbolos políticos mais visados e destruídos com certa fúria aludiam aos candidatos daUDN."
26 O Dia. 25-8-1954, p. 6.
27 ÚltilM Hora, 25-8-1954, edição extra. p. 4.
o carnaval da tristeza • 73
o
centro da cidade foi tomado portrês
grandes grupos de manifestantes.O primeiro saiu da galeria Cruzeiro em direção ao largo da Carioca e para a Cinelândia, destruindo pelo caminho toda propaganda oposicionista. O segundo grupo, mais revoltado, fez o mesmo nas imediações do Tabuleiro da Baiana. Alguns amotinados chegaram a subir nos postes, sem o auxílio de escadas, para arrancar e atear fogo no material político. O terceiro grupo concenlrou-se na Cinelândia e ruas laterais?9 Tanto no centro, quanto nos subúrbios, os manifestantes voltavam seu ressentimento contra as siglas partidárias, nomes e rostos impressos em papéis e tecidos. Como no popular dia da "malhação do Judas", alguém jogava do alto de um poste a repre sentação impressa de um político para que outros, com certo prazer, de.."icar regassem sua violência. Assim como as elites conservadoras tudo fizeram para aniquilar politicamente Vargas por meio de idéias-imagens e pela manipulação de símbolos necessários à legitimidade do poder, agora a população, revidando, destroçava a simbologia política dos adversários do presidente. Em agosto, a luta política da oposição contra Vargas e de populares contra os grupos conservadores também foi uma "guerra de imagens�', para usar uma expressão de Serge Gruzinski.30
No meio da manhã, os
três
grupos encontraram-se e milhares de outraspessoas juntaram-se a eles no centro da cidade. Na avo Almirante Barroso,
o prédio de
O Globo
foi cercado por uma multidão que tentou invadir suasdependências, mesmo diante do policiamento ostensivo. Após apedrejarem a fachada, cercaram dois caminhões de distribuição do jornal e os incendia ram. Bombeiros, três choques da rádio-patrulha e forças do Exército, ao chegarem, impediram a destruição, mas nada puderam fazer para evitar o incêndio dos veículos e nem a queima de milhares de exemplares do jornal.31
As
pessoas, fruslradas, dirigiram -se então para a Cinelândia e entraram àforça na sede do Movimento Nacional Popular, de oposição, jogando pela janela móveis e material de escritório. Dali mesmo improvisaram um comício com oradores que atacaram duramente Carlos Lacerda, vaiado sempre que seu nome era pronunciado.32
Outras centenas de pessoas foram para a
Tribuna da lmpren..'w,
masnovamente a invasão foi impedida, agora pela Polícia Especial.
Os
revoltosos, contudo, não se confonnaram diante da bandeira nacional hasteada na sacada do segundo andar. Era necessário colocá-Ia a meio-pau, em sinal de
29 Correio da Manhã, 25-8-1954, p. 3.
30 Gruzinski, Serge. A guerra das imagens e a ocidentalízação da América. In: Vainfas.
Ronaldo (org.). América em tempo de conquista. Rio de Janeiro. JorgeZahar, 1992.
31 o Dia. 25-8-1954. p. 3.
74 • Vargas e a crise dos anos 50
luto. Como já se tornou lugar-comum, o respeito aos mortos é sinal de respeito aos vivos. Após certa negociação, os populares, sem condições de tomarem o prédio, e a Pollcia&pecial, sem ter como dispersá-los, chegaram
a um acordo: um popular e um policial entraram na redação e desceram a bandeira a meio-pau, como manda a tradição. Mesmo assim, toda a edição do jornal foi queimada na rua em frente.
A reverência ao presidente falecido, aliás, era quase uma obsessão popular. Na Cinelândia, nesse mesmo momento, um orador, no comício improvisado, acusou a Rádio Globo de continuar transmitindo música popular, desconhecendo a morte de Vargas e outras emissoras que, em sinal de pesar, tocavam música clássica. Annados com sarrafos e cacetes, grupos de manifestantes tentaram tomar de assalto a rádio na avo Rio Branco. A presença da Polícia &pecial, entretanto, novamente impediu a depredação. O ataque àqueles que não manifestavam sobriedade pela morte de Vargas tem um duplo sentido: se na cultura popular o desrespeito aos mortos é falta grave, havia o complicador de que o descaso com o falecimento do presidente era também uma desconsideração ao sentimento e à dor das pessoas.
A partir do meio-dia, as forças policiais começavam a perder o controle da situação. Apesar de todo o contingente das polícias Militar, Civil, Especial e a do Exército nas ruas, era cada vez mais difíci1 reprimir e dispersar a população.
Os
vários focos de manifestações superavam a capacidadede
mobilização dos policiais. Como medida de segurança, o Exército cercou rádios e jornais e a av. Rio Branco e a rua do Lavradio foram interditadas - protegendo-se, desse modo, a Rádio Globo c aTribuna da
Imprensa.
Mesmo assim, postos eleitorais, sedes partidárias de oposição e os jornaisA Notícia
eO Mundo
foram apedrejados. Sem condições de dispersar a multidão, os policiais passaram a utilizar bombas de efeito moral, gases lacrimogêneos e armas de fogo. Várias pessoas saíram feridas, sendotrês delas à bala: um operário com um tiro no maxilar e dois comerciários
com tiros nas costas.
Outros grupos, porém, ao se dirigirem ao Palácio do Catete, passaram em frente da Embaixada dos &tados Unidos. Após apedrejarem as vidraças da Standard Oil, começaram a vaiar e a jogar pedras e pedaços de pau na fachada da representação norte-americana. A chegada de reforços da cava laria pouco adiantou. Um soldado do Exército, ao disparar o fuzil, assustou os cavalos, aumentando ainda mais a confusão. Bombas de efeito moral também foram lançadas, sem contudo amedrontar os amotinados. Somente com a chegada da Polícia &pecial a população se dispersou - além de atemorizar os próprios soldados do Exército. Um homem não identificado
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