• Nenhum resultado encontrado

O ALFABETO DO CORPO COMO VIA DE ACESSO À MEMÓRIA

CAPÍTULO III: OFICINA DO CORPO E DA VOZ À COMPOSIÇÃO CINÉTICA, DE

3.4. O ALFABETO DO CORPO COMO VIA DE ACESSO À MEMÓRIA

O papel da voz no organismo humano é visto por Molik como “veículo169 que traz à tona toda a Vida”. (CAMPO, MOLIK, 2011, p.177. De acordo com o co-fundador do Teatro Taboratório, “Grotowski utilizou este termo veículo para este tipo de energia utilizada para a verticalidade.” A voz, para Molik “não é apenas o som, não é apenas a respiração, mas também a alma [...] Caminha verticalmente em relação ao corpo, mesmo se estando deitado”. (CAMPO; MOLIK, 2011, p. p. 177).

O Alfabeto do Corpo se configurou como uma via de acesso ao corpo-memória que carrega em si memórias de infância e até memórias ancestrais. O corpo todo guarda nossas experiências de vida, entretanto, na região que compreende o diafragma, a coluna vertebral, o abdômen e o quadril, ou seja, no Centro Energético de Base, minha percepção é de que memórias profundas podem ser acessadas quando se redistribui o tônus muscular. Transcrevo duas anotações do meu diário de bordo, do quarto dia de oficina:

169O termo veículo foi utilizado primeiro por Molik e depois por Grotowski, veio assim a substituir o termo verticalidade. (CAMPO, MOLIK, 2011, p. 177).

150

Deitados de lado, cabeça relaxada sobre o braço estendido, vocalizar impulsionando pelo quadril. Boca bem aberta, maxilares relaxados. Experimentar as possibilidades como, abrir a perna de cima, levá-la à frente, atrás... Impulsionar a partir do quadril. Jorge pediu que eu projetasse o som em direção ao chão, sentisse a vibração do ar dentro do corpo, sendo estabelecida nesta relação com o chão. [...] Impulsos do quadril, mantendo o corpo relaxado. Procurar ganhar espaços nas laterais, entre as costelas, explorar possibilidades. [...] Muita emoção no tom grave, minha voz estava embargada, percebi que se não alterasse aquela posição e o lugar para onde eu estava mandando a vibração, tudo iria se transformar em choro, e em voz alta. Não quis continuar com receio de atrapalhar o grupo, não sabia se era permitido tentar esgotar aquela emoção através da voz. Mudei o local para onde mandava o impulso, e dirigi-o para a cabeça. Percebi que mesmo naquela posição, com a laringe bem aberta eu dava conta de modelar o som para uma nota aguda. E era preenchida. (PARENTE; PORTEIRO. Oficina do Corpo e da Voz à Composição Cinética. Notas de oficina de Ângela Finardi)

A emoção nesta região do corpo já havia sido percebida na oficina de Simioni e já foi relatada no capítulo 2.

Foi a continuidade desta exploração de movimentos a partir dos impulsos oriundos do

Centro Energético de Base, pelas ações do Alfabeto do Corpo, que uma descoberta

surpreendente ocorreu: uma música pessoal, uma melodia que viria a se repetir outro dia, sem que eu buscasse lembrar.Fisicamente, eu iniciava com a ação da Cobra e desta me colocava em relação com o ambiente, olhando para os demais participantes na sala. Foi no movimento de elevar a cabeça do chão a partir do impulso do quadril que surgiu aquela melodia. Dias após, ao participar de uma viagem sonora em pé na roda, num momento de intensa conexão com o grupo, a mesma melodia que eu nem sequer lembrava mais ressurgiu. Perguntei à Parente, no intervalo, se era possível uma melodia surgir e se repetir desta forma. Ele respondeu: “Você provavelmente encontrou o canto da sua Vida [...] Este canto, pode se alterar um pouco, mas em diversos momentos da sua vida ele pode surgir”. (PARENTE; PORTEIRO. Oficina do Corpo e da Voz à Composição Cinética. Notas de oficina de Ângela Finardi).

No site de Parente encontrei uma definição de voz que se tornou compreensível para mim apenas por já ter vivido essa experiência: “A voz humana é ao mesmo tempo DNA e impressão digital, a filiação que mais nos identifica; ela é o fio que nos religa ao passado, para compreendermos o nosso presente e sonharmos o nosso futuro”.(PARENTE, web, s/d). De acordo com Molik (2011, p. 132) “A memória está envolvida neste processo em parte pelo cérebro e em parte pelo corpo [...] Quando a Vida é encontrada durante as improvisações, o corpo, logo em seguida, traz memórias para o seu cérebro”. Esta afirmação pode ser compreendida, se lembrarmos a relação entre vibração e consciência expandida, que foi abordada no segundo capítulo, na análise da oficina de Simioni.

151 Na palestra, Parente afirmou que a memória está no corpo, e ao mesmo tempo por associação de ideias, que vêm através do movimento. (PARENTE, Palestra, 2012).

Molik propõe em seu método a trabalhar a ressonância até a nuca, la nuque. O foco dele está na abertura da laringe, “para abrir a voz”. Na nuca está localizado o “primeiro cérebro”, o cérebro reptiliano, conforme afirmou Grotowski, (1993). A liberação de emoções instintivas, primárias, associadas à impulsividade e agressividade que tanto contemos no processo educativo para vivermos em sociedade promove a abertura da laringe. Bloquear as emoções de certa forma, não seria também bloquear a voz? Não seria o grito, um instinto primário? É interessante lembrar que o encadeamento PA- AP, de GDS esteja relacionado à voz e à reação reflexa. Em uma passagem do livro de Molik (CAPO; MOLIK,2012 p.31-32) o pedagogo disse que uma forma pela qual fez um rapaz “abrir a voz” foi pedir que corresse e até cair e que ao cair gritasse. E que a partir daí a voz do rapaz “se abriu”.

Quando a Vida é encontrada a laringe se abre, afirma Molik. Nesse processo, a abertura da voz não é apenas algo físico. É físico “no fim, apenas no fim” (CAMPO; MOLIK, 2010, p. 32). A voz é um instrumento para conectar o corpo e a psique e “exatamente tudo até mesmo a alma”. (CAMPO; MOLIK, 2010, p.32).

Parente se refere a uma herança genética, como uma memória ancestral. Na palestra ministrada junto de Porteiro, ambos fizeram alusão ao famoso texto de Grotowski, Tu és filho

de Alguém. Transcrevo um fragmento deste:

Que é a pessoa que canta a canção? É tu? Mas se é uma canção de tua avó? É sempre tu? Se estas tentando explorar a tua avó com os recursos de teu próprio corpo então não é „tu‟ e nem „tua avó‟ quem canta, é tu explorando a tua avó cantando. Mas talvez vais mais longe. Até algum lugar, até algum tempo difícil de imaginar, onde pela primeira vez se cantou essa canção. [...] Talvez era o momento em que se alimentava o fogo na montanha onde alguém cuidava dos animais. E para reanimar-se com este fogo começou a repetir as primeiras palavras. Isso não era todavia a canção, era um encantamento, como um mantra. [...] Como diz a expressão francesa tu es fil de quelqu´un [tu és filho de alguém] [...] Pois os que começaram a cantar as primeiras palavras eram filhos de alguém, de algum lugar. Então se tu encontras isso tu és filho de alguém. Se tu não o encontras, não és filho de alguém, estás cortado, estéril, infecundo. Este exemplo mostra como, a partir de um pequeno elemento – uma canção – se desemboca vários problemas de pertencimento, de aparição da canção, da encantação, de nossos laços humanos, de nossa linhagem no tempo, tudo isso aparece.[...] Tu és de algum tempo, de algum lugar. Não se trata de atuar em torno de alguém que não és. Então, em todo trabalho aparece o aspecto vertical, sempre mais até o começo, sempre estar de pé no começo. (GROTOWSKI, [1985] 1993, p.75)170.

170No original: ¿quién es la persona que canta la canción? ¿Eres tú? Pero si es una canción de tu abuela, ¿es que

eres siempre tú? Si estás intentando explorar a tu abuela con los recursos de tu propio cuerpo, entonces no eres “tu” ni “tu abuela” quien canta, eres tú explorando a tu abuela cantando. Pero quizá vas más lejos, hacia algún sitio, hacia algún tiempo difícil de imaginar, donde por primera vez se ha cantado esa canción. [...] Quizá era el momento en que se alimentaba el fuego en la montaña donde alguien cuidaba animales. Y, para reanimarse con

152

Não sei ainda explicar a origem da canção que surgiu na oficina, sei apenas que foi verdadeira, pela de Vida. Não sei se se trata de uma memória de infância, de uma herança genética. Neste momento no qual escrevo nem a lembro mais. O fato é que realmente vivi essa experiência e sobre a qual ainda me proponho a pesquisar.