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Noções acerca do conceito de tant'ien e a energia chi

CAPÍTULO I: NOÇÕES DE CENTROS DE ENERGIA DO CORPO EM ALGUMAS

1.1 INTRODUÇÃO À NOÇÃO DE CENTROS DE ENERGIA EM PRÁTICAS CULTURAIS

1.1.2 Noções acerca do conceito de tant'ien e a energia chi

Para elucidar as questões relacionadas ao centro energético tant’ien e à energia chi,

Jaqueline Fernandes, Mestra de Kung Fu, Tai Chi Chuan e Qi Gong32 e também especialista

em acupuntura concordou em me conceder uma entrevista33. Os conceitos que serão expostos acerca do tant’ien e do chi e suas relações culturais, quando não mencionadas outras fontes

são oriundos desta entrevista.

Fernandes explica que nas artes marciais chinesas, o centro de energia do corpo é chamado de tant’ien, que significa campo cultivável. A localização deste centro pode ser encontrada colocando-se os dedos polegares no umbigo e os indicadores em direção ao púbis, formando o que na horizontal se assemelharia a um olho – “o olho do tigre”, conforme explicou Fernandes. O tant’ien fica no centro do corpo, constituindo um espaço que é tridimensional. É o local, onde a energia, o pensamento, as visualizações são projetadas e ali elas germinam. Dali toda energia vai brotar no corpo e para o corpo retornar.

De acordo com Shahar, (2011 p.207-208)34, O qi, “considerado vital para o funcionamento do corpo”, era inalado nas técnicas respiratórias da ginástica Daoyn35 e conduzido ao “baixo campo de cinábrio”, ou dantien sob o umbigo. Pela “respiração embrionária” chamada de taixi, o qi era levado até este ponto, obedecendo a metas taoístas de tentar readquirir a vitalidade revertendo o processo do envelhecimento. Shahar aponta que “Pela subversão do tempo biológico era possível e reencontrar o ilimitado potencial de crescimento do feto. Desde que o embrião era alimentado pelo cordão umbilical, era necessário estimulá-lo, respirando através do umbigo”. (SHARAR, 2011 p.205). A respiração embrionária se reportava ao fecundo imaginário da obra taoista O Caminho e seu Poder,

32Qi Gong e Chi Kun são expressões análogas que designam uma prática de respiração e energização embasada

no Taoísmo.

33FERNANDES, Jacqueline. Entrevista concedida à Ângela Finardi. Florianópolis, 09 de mar. de 2013.

Entrevista.

34SHAHAR, Meir. O Mosterio de Shaolin: história, religião e artes marciais chinesas; Trad. Rodrigo Wolff

Apolloni e Rodrigo Borges de Faveri. São Paulo: Perspectiva, 2011.

35A ginástica chinesa Daoyn (guar e puxar), de origens ancestrais combinava o movimento dos membros com

31 datada aproximadamente do século IV a. C, da qual transcrevo um pequeno trecho apresentado por Sharar (2011, p.208): “Aquele que possui virtude em abundância é comparável a um recém nascido. [...] Seus ossos são frágeis, seus tendões flexíveis e ainda assim o seu agarre é firme [...] Ele grita o dia inteiro e mesmo assim não fica rouco: isso acontece porque sua harmonia está no ponto máximo”.

É importante perceber que o ar enquanto qi está sempre vinculado ao movimento e a otimização da força física. Cinestesia, concentração e movimento caminham juntas nas artes marciais chinesas. De acordo com Amaral (1984) somos seres bipolarizados. Na conceituação da filosofia chinesa taoista o Yin e Yang são energias que regem o universo e a nós mesmos. No fluir das energias positiva e negativa é que vamos descobrir o ponto do equilíbrio, o momento de inércia (wu-wei) entre expansão e recolhimento. Este ponto de equilíbrio, no corpo corresponde ao tant’ien.

Fernandes afirma que nas práticas do Tai Chi, do Chi Kun e do Kung Fu, a consciência é trazida para este ponto, o tant’ien. A energia, por ser real, não precisa ser imaginada, basta ser visualizada: “a energia é como um objeto atrás de uma porta, dentro de um quarto fechado, você não precisa imaginar nada, ele esta lá, é palpável, você atravessa essa porta e chega até ela”. Utilizando a visualização, a mestra afirma que é possível direcionar o chi.

Três energias são unidas através da prática, e consideradas como sendo três tesouros: O tesouro do céu, que é o chi celestial ou sopro divino, é inalado e percebido também como oxigênio; o tesouro da terra ou chi telúrico é extraído principalmente dos alimentos; e o tesouro que é o homem, cujo chi vem de por o pé no chão, a energia que vem da terra. O homem em conexão com o céu e a terra, ou seja, em vida, em movimento.

A forma como o chi se aloja no corpo é explicada por Fernandes:

Na hora da fecundação os chineses dizem que surge do céu um filete dourado que desce o chi e vai se alojar nas células que vão se reproduzir para formarem os rins. Os rins, eles recebem o nome de Ming - Mei. Mei é o portão divino, portão da vida. Lá se aloja a energia desse sujeito quando concebido. Essa energia vem da herança genética do pai e da mãe, mas vem de uma herança simbólica também, dos seus ancestrais. Este chi, herdado dos ancestrais no ato da concepção é chamado pelos chineses de chi pré-natal e sua quantidade depende da forma de vida dos antepassados. As práticas possibilitam armazenar chi pós-natal, para não se gastar o

chi pré-natal. Daí a urgência de se praticar.

A responsabilidade da saúde e da vida é dividida entre a forma de vida levada pelos ancestrais, e a prática física, explica Fernandes. Ela afirma que no Kung fu, no Chi-kun e no

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Tai-chi, o movimento é sempre associado à respiração, ao chi celestial, sendo que a expiração

ocorre normalmente quando há transferência de peso36. Em algumas artes marciais tem o Ki-

hai, na qual se grita para manifestar a energia. Na escola Shaolin do Norte não há vocalização

de sons com o objetivo de manifestar a energia37. É mantida como reserva. O chi pós-natal vai sendo adicionado ao chi pré-natal salienta a mestra. No Chi Kun existem quatro diafragmas: o pélvico, o torácico, a laringe e o cerebral. O cerebral se assemelha à uma barbatana de tubarão muito fina, no ponto entre a sutura coronal que os chineses chamam de

lin tai. “Esse lin tai, que é o nome da nossa escola, é a pineal, que se encontra no meio da

cabeça”. Nas práticas de Chi kun vão sendo acionados os diafragmas pélvico até o cerebral através de visualizações. A energia é conduzida da base até o topo da cabeça. Essa prática é feita com um propósito altamente terapêutico.

Assim como nas artes marciais, na medicina tradicional chinesa o corpo é dividido entre o céu e a terra e entre direita e esquerda. Vinte e quatro meridianos, doze à direita e doze à esquerda servem pra fazer o chi circular por todos esses órgãos. Além dos vinte e quatro meridianos existem oito extras38, que podem ser acionados pelas agulhas ou por exercícios, conforme informa Jacqueline Fernandes:

Esses meridianos servem como rios dentro do corpo que conduzem a água-mãe. Às vezes esses canais são obstruídos. O que a acupuntura faz é desobstruir esse fluxo para que ele possa fluir e entrar em equilíbrio. Mas nós podemos fazer com exercícios corporais o que a agulha faz. Às vezes, para determinados sujeitos a agulha é mais incisiva. E para determinados sujeito, não. Então, existem diversas práticas, para diversas pessoas. A prática corporal do Tai Chi, do kung fu, ou até da massagem, do Do In podem surgir como instrumentos para desbloqueio desses meridianos.

Tanto nas artes marciais quanto na medicina chinesa, percebemos a ampla conexão do ser com a natureza. Os meridianos são considerados rios, canais por onde circula a energia

36Eu pude fazer uma aula de Kung Fu e, percebendo esta relação entre expiração e transferência de peso

perguntei à Mestra, que confirmou esta relação.

37Esta ideia de reter a voz pode ser associada ao conceito de Tamé. Tamé deriva da expressão tameru, que

significa “acumular” energia. No teatro Nô e no Kabuki “tamé é a capacidade de reter as energias, de absorver em uma ação limitada no espaço as energias necessárias para uma ação mais ampla”. (BARBA &SAVARESE, 2011, p.22)

38Os oito canais físicos da entrada de energia são descritos por Amaral (1984, p. 24) são “„Tu Mo‟ – canal

controlador, „Jen Mo‟ – canal funcional, „Tai Mo‟ – canal do cinturão [local onde está o tant’ien], „Ch‟Ueng Mo‟ – canal da confiança, „Yang Wei Mo‟ – canal do braço positivo (direito), „Yin Wei Mo‟ - canal do braço negativo (esquerdo) „Yang Chiao‟ - canal da perna positiva (direita), „Yin Chiao‟ – canal da perna negativa (esquerda). Toda movimentação terá uma ligação direta com cada um desses canais. Os movimentos se dividirão em: fluidez, rotação, respiração no movimento, relaxamento, meditação, ritmo, som [e na base, terra] sustentação, assimilação da energia Chi, expansão”. In: AMARAL, Sônia. Chi-Kun: a respiração taoísta. Exercícios para a

mente e para o corpo. São Paulo: Summus, 1984.

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chi, a “água mãe”. O tesouro que é o homem, situado entre o céu e a terra, inspira o tesouro do céu, o chi celestial e absorve o tesouro dos alimentos vindos da terra, o chi telúrico. São feitas analogias com os animais para nomear partes do corpo humano: o olho do tigre, a barbatana do tubarão que evidenciam a harmonia do homem com a natureza. Uma concepção de corpo vitalista, que integra corpo e mente pelo processo da respiração e das práticas físicas é o que percebemos na tradição chinesa. Esta visão de corpo, embora dual em seu aspecto interior-exterior, tem relação orgânica com a natureza e está pautada em um paradigma vitalista e em um paradigma neovitalista, que descrevo abaixo:

Em sentido mais preciso vitalismo é a doutrina defendida por filósofos e cientistas entre meados do século XVIII e meados do século XIX, segundo a qual o fundamento dos fenômenos vitais é uma força vital que não depende de mecanismos físico-químicos. É característica do vitalismo declarar inútil a investigação dos fenômenos vitais, porquanto ela nunca conseguirá apreender a força que constitui a essência da vida. O V. nessa forma foi invalidado pelas descobertas da bioquímica, que a partir de 1828 (data em que foi efetuada a fabricação sintética da ureia), demonstrou a possibilidade de produzir substâncias orgânicas em laboratório. O neovitalismo, levando em conta essa possibilidade, reconhece a utilidade físico- química dos fenômenos vitais, mas continua admitindo a irredutibilidade desses fenômenos às forças físico-químicas, afirmando que eles são dirigidos por fenômenos específicos que recebe vários nomes (dominante [v.]em Reinke,

enteléquia [v.] em Driesh, elã vital [v.] em Bérgson). (ABBAGNANO, 2007, p.

1201)

O conceito de elan vital, ou impulso vital do filósofo espiritualista Henri Bergson (1859-1941) é equivalente à intuição, tida por ele como uma “faculdade cognoscitiva”. É pela intuição que o mundo pode ser conhecido. Segundo Bergson, "hoje, só raramente e com grande esforço, podemos chegar à intuição; no entanto a humanidade chegará um dia a desenvolver a intuição de tal modo que será a faculdade ordinária para conhecer as coisas”. (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1993, p.460).

O impulso ou elan vital parte da centralidade do corpo, sede da intuição para os orientais e núcleo do self. A noção neo-vitalista de Bergson, localiza a sede da intuição no corpo, como fonte de conhecimento.