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DESCRIÇÃO DA OFICINA VOZ E AÇÃO VOCAL

CAPÍTULO I: NOÇÕES DE CENTROS DE ENERGIA DO CORPO EM ALGUMAS

2. CAPÍTULO II: OFICINA VOZ E AÇÃO VOCAL DE CARLOS SIMIONI

2.2. DESCRIÇÃO DA OFICINA VOZ E AÇÃO VOCAL

Participei de várias oficinas ministradas por Simioni, mas a oficina que é o foco deste capítulo é a oficina Voz e Ação Vocal realizada de 26 a 30 de setembro de 2011.

A oficina foi realizada na cidade de São Paulo, no Nosso espaço, sede do grupo Na

companhia dos anjos, uma sala de cerca de quarenta metros quadrados localizada no segundo

andar de um edifício antigo que comportava também outros espaços culturais. Participei da oficina praticando as exercitações e utilizei um gravador como recurso. Além do gravador, nos momentos de intervalo e ao término de cada sessão, tratei de registrar em meu “diário de bordo” todos os exercícios e sensações físicas despertadas, além de comentários dos participantes.

O grupo participante da oficina foi composto por quinze pessoas com idade entre vinte e cinquenta anos, com diferentes formações artísticas: quatro atores, sete atrizes (dentre das quais me incluo), uma cantora, um músico, uma terapeuta corporal e uma fonoaudióloga. Foram cinco encontros de três horas e meia de duração cada, totalizando dezessete horas e meia de atividades. No primeiro dia de trabalho Simioni apresentou-se como ator-pesquisador do Lume e estabeleceu o compromisso ético do grupo em relação ao cumprimento do horário e em relação à prática no espaço, solicitando que não houvesse comentários na sala que não estivessem relacionados ao trabalho. Durante todos os dias da oficina, cada pessoa ao entrar na sala deveria realizar seu trabalho pessoal de aquecimento por cerca de dez minutos para depois ter início o trabalho conjunto. Percebo que estes procedimentos mesmo parecendo triviais revelam o elemento ritualístico na utilização do espaço e da prática de forma em geral. Alguns aspectos referentes à prática pedagógica de Simioni no decorrer da oficina foram marcantes: o bom humor aliado à forma cuidadosa e respeitosa com a qual ele se referiu a nós, os participantes e conduziu a prática, lembrando que a intensidade do trabalho dependia da entrega de cada um.

69 A oficina propunha trabalhar a voz como corpo, de acordo com a sinopse:

A oficina trabalha a voz como corpo. Primeiro desenvolve-se a estrutura física muscular da voz. Entende-se como estrutura corporal para a voz a ativação da musculatura, o controle dos impulsos oriundos do trabalho energético, a construção do corpo dilatado e sua presença cênica e a distribuição da energia para o espaço. A partir desta estrutura fixada, encontra-se a musculatura necessária para descobrir os ressonadores vocais, a vibração da voz, a voz e a dimensão física da voz dilatada de cada ator.86

Neste contexto a voz é tida como corpo, que pode ser dilatado, expandido para o espaço pela ampliação da energia circulante. Na oficina a estrutura corporal para a voz foi construída na oficina a partir da consciência do centro gerador dos impulsos, o koshi. Este termo japonês explicitado no primeiro capítulo significa quadril e serve também para designar o estado de “presença” do performer foi utilizado por Simioni para se referir à região que compreende o baixo ventre e o quadril. Foram também utilizados por ele os termos: abdômen, quatro abdômens e cinturão para se referir ao koshi, ou essa região central do corpo87, aqui chamado de Centro de Energia de Base. Percebo no uso das terminologias utilizadas por Simioni as influências orientais e ocidentais que nortearam sua elaboração técnica.

No primeiro dia, Simioni explicou-nos a importância deste centro:

Eu trabalho a voz como vibração do corpo. Ela sai em camadas. Nos dois primeiros dias ela vibra dentro do corpo. Ela vai sair como vibração na primeira, segunda, terceira, quarta camada – irradiando. Como se nosso corpo fosse uma caixa acústica e a voz fosse consequência da vibração [...] A voz funciona como um estilingue. Tem que trazer até aqui [mostra a região do quadril, em que está localizada a porção inferior do abdômen] para que ela saia inteira (Simioni. Informação verbal).

Na oficina Simioni explicou que não seriam trabalhados textos na oficina, mas a base da voz: "a voz do corpo", o que compreendi como sendo uma ação vocal88 orgânica, carregada de emoções e que no Lume é chamada de “matriz”:

86Sinopse disponível no blog do grupo: http://nacompanhiadosanjos.blogspot.com.br/ e no site do LUME:

http://www.lumeteatro.com.br/interna.php?id=52

87Mesmo que Simioni tenha utilizado estes termos minha opção com vias a uniformizar a escrita na descrição da

oficina e dos exercícios é manter o termo koshi ou centro de energia, já que este ponto compreende a região do abdômen e quadril.

88Os elementos constituintes da ação vocal são os mesmos da “ação física”: a intenção, o élan, e o impulso.

Tendo início na coluna vertebral, “desencadeiam um movimento, que percorrerá um itinerário, com um certo ritmo”.(BURNIER, 2001, p. 42)

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Simioni define o conceito de matriz como uma corporificação dos 'cataclismos emocionais' do ator. Se traduzirmos cataclismos emocionais por ações físicas/vocais orgânicas, poderemos dizer que, uma ação física e vocal orgânica e pessoal, descoberta e pesquisada pelos atores e que dinamiza suas energias potenciais, é chamada de 'matriz' (FERRACINI, 2003, p.116).

Em relação ao termo corporificação, Burnier esclarece:

Um detalhe importante tem a ver com o termo corporificado que usamos. Só podemos sentir algo na medida em que esta coisa sentida se transformou em corpo, em micro ou em macrotensões musculares, e temos acesso a essa informação por meio de um de nossos sentidos, no caso específico o tato, não o da pele, mas o tato interior dos músculos. (BURNIER, 1994, p. 50) [Grifo meu]

O fato de ter que “gravar no corpo”, era enfatizado por Simioni como uma necessidade de memorizar fisicamente o caminho percorrido para se chegar a determinado estado, para que o participante pudesse retomá-lo sozinho posteriormente. Assim, para buscar novamente o “corpo de trabalho”, ou seja, um corpo em estado de “presença” bastava voltar a agir fisicamente, seguindo os princípios da Antropologia Teatral:89 equilíbrio precário90,

oposição91 e omissão92. Tais princípios iam sendo enfatizados e apreendidos na prática, confiando na memória corporal. Estes foram utilizados em todos os exercícios conforme veremos nas descrições tanto para “pegar” o koshi, quanto para se enviar os impulsos deste “Centro de Energia de Base” para os ressonadores. Para se esconder o movimento da voz dentro do corpo, o princípio utilizado era o da omissão.

Ao repassar as técnicas elaboradas na sua pesquisa junto ao Lume, Simioni incitava a autonomia dos participantes como pesquisadores, solicitando que não desvalorizassem as técnicas que traziam in-corporadas ao seu trabalho, mas que na confluência entre o que aprenderam e o que estavam vivenciando, fizessem suas próprias descobertas. O procedimento de testar uma técnica diferente, mas de filtrar, fazer descobertas é descrito por

89Os princípios pré-expressivos da Antropologia Teatral, que são “um conjunto de regras que regem o trabalho

do ator, suas ações físicas: equilíbrio precário, dilatação, energia animus-anima, energia no espaço e no tempo,

equivalência, uso da face, dos olhos, das mãos e dos pés, omissão, oposição, pré-expressividade, ritmo, montagem. (BURNIER, 2001, p.104). No contexto da oficina todos são trabalhados, mas os que foram

destacados por Simioni foram: equilíbrio precário, oposição e omissão.

90O termo equilíbrio precário, de Eugênio Barba é equivalente ao equilíbrio instável de Decroux, “[…] ou seja,

um elemento que, se alterado em direção à instabilidade, uma instabilidade controlada, pode gerar tensões diferenciais no corpo, as quais podem ser 'iscas' que tornam o corpo “vivo'” (BONFITTO, 2011, p. 77)

91O princípio da oposição é “Um dos princípios pelos quais o corpo do ator e do dançarino revela sua vida ao

espectador, numa tensão de forças contrapostas”. (BARBA E SAVARESE, 2012, p.20).

92Barba define o princípio da omissão da seguinte forma: Em cena, para o ator, omissão significa antes de tudo

conter, não gastar em um excesso de expressividade e de vitalidade, o que caracteriza a presença cênica. A beleza da omissão está, de fato, na beleza da sua ação indireta, da vida que se revela com o máximo de intensidade no mínimo de atividade. (BARBA E SAVARESE, 2012, p. 20).

71 Burnier em sua tese e marcou a trajetória inicial do Lume, nas trocas com os atores do Odin e os outros atores orientais com os quais trabalharam, já mencionados anteriormente. Destaco o valor dado na oficina por Simioni para a percepção do performer como sujeito de sua própria experiência e não mero repetidor de técnicas.

A prática foi realizada sempre após o aquecimento individual e se deu de forma cumulativa, ou seja, os exercícios praticados no início eram retomados nos dias posteriores para serem memorizados no corpo em diferentes momentos e em diferentes graus de intensidade. Ao final de cada encontro havia uma roda de conversa para que todos pudéssemos tecer comentários relacionados aos exercícios e sensações advindas destes.

No primeiro encontro com todos dispostos em círculo, foram realizados os exercícios

Equilíbrio em quatro camadas e Alavancas ou Preparação para a queda, para acionar o Centro de Energia de Base do corpo, ou koshi. O Energético foi feito a seguir, sempre com

tônus nesta região. Na primeira metade do período o trabalho foi exclusivamente corporal. Antes de iniciar o trabalho corporal, para expor o motivo desta metodologia Simioni contou que durante um ano e meio de trabalho com o Energético, ao fazer a prática, cada vez que sentia vontade de usar a voz Burnier solicitava a ele que canalizasse este impulso para dentro. Um dia, quando ele estava em treinamento um guarda veio observá-lo da janela. Burnier, percebendo que ele estava incomodado pediu-lhe que expulsasse o guarda com um grito. “Quando eu fui soltar o grito, até as folhas de papel vibraram. Aí eu descobri que a voz é poderosa”. O fato de se trabalhar sem utilizar a voz num primeiro momento é explicado por Renato Ferracini, integrante do Lume. Para Ferracini (2001, p.139):

A voz deve ser usada com parcimônia e somente em momentos precisos e definidos pelo coordenador do trabalho, pois o objetivo é “diminuir o tempo entre impulso e ação física” e, neste caso, a voz, pode até de uma forma inconsciente, funcionar como uma válvula de escape para essas energias potenciais que devem se transformar em corpo.

Ao final do primeiro dia foi feito o exercício Vibração da voz a partir do Koshi, cuja descrição pormenorizada está mais adiante.

No segundo encontro, os mesmos exercícios de dilatação de energia e canalização dos impulsos do Koshi foram realizados, somando-se a estes o Salto Boicotado, que consistia em impulsionar a energia para cima, na região da glândula pineal. A ressonância nesta região produz uma voz que nomeamos juntos na oficina de Voz do Pin ou Voz Etérea. Foi a primeira vez que Simioni “repassou essa voz” em uma oficina. O trabalho com os demais ressonadores

72 ocorreu pela canalização dos impulsos partindo como flechas do koshi, para os vários pontos vibratórios: abdômen, peito, costas (tórax), nuca; garganta, boca (região anterior – lábios); testa (região frontal do crânio); ressonador nasal e cabeça. A ênfase foi dada na percepção da ressonância da voz nos espaços internos do corpo. Aliás, percepção é essencial no trabalho, sobretudo quando se trabalha com o princípio da omissão, quando se dilata o corpo, mas se esconde o esforço. Ao final Simioni solicitou-nos canções que soubéssemos de memória. Cinco canções escolhidas por ele foram trabalhadas diariamente em vários momentos deste dia em diante.

No terceiro encontro, que nomeei como Projeção do Corpo em Voz, o princípio da oposição foi amplamente utilizado para se projetar a voz sem perder a ressonância. O treino se deu com os mesmos exercícios de canalização dos impulsos para os ressonadores, porém de várias formas: a) abrindo a boca com o cuidado de manter a vibração no ressonador escolhido, b) fechando os lábios e mantendo a vibração no ressonador em boca chiusa, ou seja, com som de mmm e a laringe aberta, como num bocejo c) sem uso da voz, só percebendo a energia sendo canalizada para os ressonadores, d) Com frases em gramelô93.

No quarto encontro, a proposta era projetar a voz ainda mais longe mantendo o máximo de ressonância no corpo. Além dos ressonadores, houve o treino da vibração da “voz total”, em ressonância no corpo todo, poeticamente imaginado como um tubo ao longo da coluna vertebral indo desde o sacro até a coroa. A projeção da “voz de lava”, uma voz bem grave cuja ressonância era obtida direcionando a vibração para o abdômen até preencher todo o tubo foi exercitada, devendo extrapolar o corpo e percorrer uma distância maior na sala. Para tanto, o grupo foi dividido em dois subgrupos e frases aleatórias improvisadas eram projetadas de um grupo para outro, sem se dar atenção aos seus conteúdos semânticos.

No quinto e último encontro, a dilatação máxima do corpo e da voz foi vivenciada a partir do exercício das estátuas tridimensionais com voz. Este foi o ponto máximo da oficina. Muita emoção surgiu e vários participantes afirmaram ter percebido realmente a voz como um corpo que se expande no espaço. Ao final, quando Simioni solicitou que outros nomes os participantes dariam para a oficina, foram sugeridos vários, dentre os quais destaco: “Corpo-

93Gramelô é “uma conversação improvisada sem sentido definido [no sentido semântico]. A técnica teria sido

desenvolvida pelos atores italianos por uma questão de necessidade no final do século XVI, quando foram banidos dos teatros parisienses para abrigos estrangeiros. Como os diálogos falados tinham sido proibidos fora do teatro oficial, os atores dell‟arte acabaram desenvolvendo, pela força da necessidade, o artifício do gramelô”. Fonte: TORRES, Jeferson. Um pouco mais sobre a Commedia Dell’Arte. Disponível em:

http://artistaemconstrucao.blogspot.com/2010/05/um-pouco-mais-sobre-commedia- dellarte.html#ixzz2sqay8w2O. Acesso em: 06 jan. 2014

73 voz no espaço”, “Voz: caminho da emoção”, “Caminhos para voz” e “Corpo em voz”. Tais nomes sugerem a experiência de sentir a voz como sendo um corpo. Comentários como “a sensação de não ter fronteiras entre o corpo e a sala”, de “estar em comunhão com o todo” foram feitos por alguns participantes. Tais declarações sugerem que a técnica proposta na oficina, oportunizou não só a mim, mas aos participantes que entrassem em contato com aspectos íntimos registrados em seus corpos-memória, revelando além dos aspectos psico- físicos, uma dimensão que transcende os limites do corpo, e que se está calcada em paradigmas vitalistas e remete a experiências semelhantes oriundas de técnicas orientais, como o Qi Gong.

Apresento a seguir os exercícios executados na oficina, alguns deles com imagens de Simioni que gentilmente concordou em demonstrá-los em um encontro que tivemos um ano depois do evento, no sentido de colaborar para que as imagens viessem a auxiliar na compreensão do leitor94. Lembro que a apresentação destes exercícios não consiste na elaboração de um manual, ou de uma receita a ser seguida, posto que todo o trabalho desenvolvido por Simioni e pelo Lume é voltado para a busca de um “treinamento pessoal” por parte do performer.

2.3 A CONSTRUÇÃO DO CENTRO DE ENERGIA DE BASE OU KOSHI NOS