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O Centro de Energia de Base no Treinamento Energético: o corpo em vibração

CAPÍTULO I: NOÇÕES DE CENTROS DE ENERGIA DO CORPO EM ALGUMAS

2. CAPÍTULO II: OFICINA VOZ E AÇÃO VOCAL DE CARLOS SIMIONI

2.4. O CENTRO DE ENERGIA DE BASE NA OFICINA VOZ E AÇÃO VOCAL E SUAS

2.4.2. O Centro de Energia de Base no Treinamento Energético: o corpo em vibração

Conforme já mencionado na descrição da oficina, Treinamento Energético no Lume inicialmente era semelhante ao treino de exaustão física proposto por Grotowski, que via no cansaço a possibilidade de libertar o ator de certos tipos de resistência. O Treinamento

Energético foi o primeiro treinamento sistematizado pelo Lume. Este treinamento conduzia o

ator à exaustão pelos movimentos executados durante horas seguidas, o que liberava emoções e gerava um estado energético alterado. Pelo Treinamento Energético a energia vai sendo dinamizada gradativamente de forma a dilatar o corpo e ser irradiada para o espaço111. Simioni encontrou uma forma de diminuir o tempo necessário no Treinamento Energético

110 Músculos profundos da coluna vertebral, responsáveis pela defesa convexitária.

111Nas duas oficinas de voz que fiz, em 2003, Simioni chamava cada uma das etapas criadas para preparar o

corpo para a voz de forma diferente: “corpo energético”, “corpo vibratório”, “corpo fantasma” e “corpo

santo”. No corpo energético a energia ia sendo criada através dos movimentos e nas pausas, ou com o ritmo

ralentado, percebia-se a energia vibrando no corpo vibratório. Com o lançamento da energia para o espaço através de saltos, a energia era ainda mais expandida. Nas pausas ou movendo-se em ritmo bem ralentado,

rallenti de Decroux, percebia-se o corpo fantasma. O corpo santo era trabalhado nas oficinas no último dia, com

98 através da hiper-tensão, ou seja, do aumento da circulação de energia gerado por tensões opostas no Centro de Energia de Base.

A variação de ritmos com movimentos que partem da centralidade do corpo explorando a espacialidade podem despertar disposições motrizes adormecidas em uma “embriaguez cinestésica”. Esta ideia de embriaguez cinestésica é trazida por Ane Suquet (2011), que discorre acerca desta no trabalho de Rudolph Laban, de quem Imgart Bartenieff foi seguidora:

[...] Rudolph Laban e os modernos bailarinos alemães que o seguiram desencadearam esse movimento buscando uma embriaguez cinestésica [...] Laban aborda a corporeidade do homem moderno como um palimpsesto. Toda a evolução da matéria estaria nela codificada, acessível sob a forma de traços e de vibrações que é preciso reavivar. Na visão de Laban se mesclam teorias evolucionistas e esoterismo. O tema da vibração o aproxima particularmente da teosofia, segundo a qual, „a vibração é criadora de toda a forma material‟. Vibrátil por essência, a mobilidade é, aos olhos de Laban, a via régia para despertar a memória involuntária [...] seu método visa por desfazer os habitus corporais para suscitar um estado de receptividade, que tem sem dúvida alguma afinidade com o estado alterado de consciência ao qual tendem as técnicas orientais [...] levadas às últimas consequências, a improvisação abre a porta para uma perturbação proprioceptiva, uma embriaguez cinestésica, onde se perdem as referências reavivando disposições motrizes adormecidas”. (SUQUET, 2011, p. 525-526)

Através deste estado de corpo e consciência expandidos pelo Treinamento Energético, que percebi provocar em meu corpo uma embriaguez cinestésica é que Simioni preparou o corpo para a voz, e que a voz foi percebida por mim como sendo um corpo. Um corpo energético que vibra e que se expande no espaço.

A visão teosófica na qual “a vibração é a criadora de toda a forma material”, fundamenta a noção de que corpo se expande em voz, carregado de emoção, dos aspectos íntimos da pessoa. Trata-se de um corpo dilatado, capaz de tocar o outro energeticamente e se fundir ao ambiente, como colocou Simioni no quinto dia de oficina:

[...] É lógico que quando eu estou em cena, eu não estou em cena pensando: Agora, eu vou soltar uma rajada de energia naquele pessoal. Não eu não penso nisso, mas no meu trabalho, enquanto técnica, enquanto treinamento, enquanto ação, enquanto ensaio, enquanto ser, sou eu comigo mesmo, sou eu com as pessoas, e eu me provoco, e eu quero mais, eu quero afetar, eu quero atingir, eu quero me atingir, eu força. Entende? Descobrimos que a vontade é isso aqui, tá aqui [indica o koshi]. A totalidade do trabalho está no esforço de você querer. [...] E o mais interessante. Querer no fundo não é para você. Você precisa dar. (SIMIONI. Informação verbal)

99 Energético ele lembrava que o movimento era iniciado no Koshi, que corresponde ao Centro

de Energia de Base do corpo. Este centro, do qual o corpo reage por impulso para manter-se

em equilíbrio, quando relacionado por Simioni ao “querer” no trabalho do artista fez lembrar da experiência criadora apontada na fenomenologia merleaupontyana e exposta por Marilena Chauí.

De acordo com Chauí (2010, p.271), a experiência criadora é o símbolo de uma nova ontologia porque conduz ao que Merleau-Ponty denomina espírito selvagem e ser bruto:

O Espírito Selvagem é o espírito de práxis [...] Que não diz eu penso, e sim eu

quero, eu posso. É atividade nascida de uma e de uma carência ou lacuna que pedem

preenchimento significativo, exigem vir à expressão [...] O Ser bruto, é o ser de indivisão, que não foi submetido à separação (metafísica e científica) entre sujeito e objeto, entre alma e corpo, consciência e mundo, percepção e pensamento.

Abraçados e enlaçados, espírito selvagem e ser bruto são o que Merleau Ponty chama de quiasma, a polpa carnal do mundo, carne de nosso corpo e carne das coisas: “Nós e as coisas nos comunicamos, diz Merleau-Ponty, porque somos feitos do mesmo estofo carnal”. (CHAUÍ, 2010, p.272). Quiasma112 seria então um entrelaçamento dos sentidos. Trago este conceito porque na oficina percebi que o “querer”, o desejar mergulhar no espaço, não pensar a priori, vencer o cansaço, para “dar voz” ao que é instintivo, foi localizado no Centro de

Energia de Base do meu corpo na oficina, e sentido como emoção. Em vários momentos,

quando eu não vocalizava, a emoção se fazia líquida, ou seja, eu chorava. Compreendi-o em meu corpo como o Espírito Selvagem de Merleau-Ponty, uma lacuna que exige vir à expressão. A sensação de não-fronteira entre o meu corpo e o espaço, pela expansão da energia, trouxe em mim a noção do Ser Bruto. Uma percepção de que a energia do espaço – o ar, fluía em meu corpo junto da minha energia que se expandia em vibração sonora foi sentida por mim durante muitos momentos na oficina.

2.4.3. Do Centro de Energia de Base para outros centros energéticos: o trabalho com os

Ressonadores ou Vibradores

112Não encontrei nenhuma analogia explícita de quiasma com qi, mas penso ser perfeitamente cabível já que

percepção e pensamento se unem no tant’ien, tido como núcleo do self. Bergson deu a entender que o mundo

poderia ser conhecido pela intuição, por um elan vital, Burnier elegeu-o como um dos elementos da ação, e o

100 Na oficina Voz e Ação Vocal, Simioni afirmou que o trabalho com os ressonadores ou

vibradores tinha Grotowski como referência. O termo ressonador foi revisto por Grotowski

em 1969, na conferência A Voz ministrada no Teatro Laboratório, em maio de 1969 para os estagiários estrangeiros. Grotowski afirmou na época que “Talvez a palavra mais exata seja

vibrador, porque do ponto de vista da precisão científica, não existe algo como os

ressonadores [...] Quando eu mesmo procurei diferentes tipos de vibradores, encontrei em mim vinte e quatro. Para cada vibrador há ao mesmo tempo a vibração de todo o corpo”. (GROTOWSKI, 2007, p.154).

Proponho relativizar a afirmação de Grotowski, discutindo-a brevemente, no que diz respeito aos ressonadores. Talvez ele estivesse falando da ausência de precisão científica em relação aos ressonadores, ao se referir às imagens que utilizava para levar a atenção do performer para alguns pontos onde ocorre vibração: "faça ressoar os pés", etc... Estes sim são locais vibradores e não ressonadores. Trata-se de uma proposta imagética de Grotowski.

Retomando as noções da Fonoaudiologia explicitadas no primeiro capítulo, as cavidades de ressonância para Behlau estão acima e abaixo da laringe, enquanto que para Pacheco e Baê (2006) estão apenas acima, na máscara, sendo consideradas principalmente as cavidades ósseas. A porosidade óssea é um potencial ressonador do som, afirma Martins (2008, p.54). Jonathan Goldman (web, s/d)113 afirma que “cada objeto tem uma frequência vibratória natural. Isso é chamado de ressonância.[...] cada órgão, cada osso, cada tecido, cada sistema, todos estão em um estado de vibração, tem sua própria frequência de ressonância”. Gardner (2012, p.157) afirma que “é possível [...] determiná-las em hertz para cada músculo, órgão e tecido do corpo”. Em concordância com Goldman e Gardner, Martins discorre acerca dos princípios da ressonância vocal em sua tese e coloca que: “No fluxo da voz no corpo, ocorre ressonância quando há sintonia entre a frequência vibratória do som e da cavidade do corpo, órgão, músculo, ossos, ou nos centros energéticos, tais quais os chakras.” (MARTINS, p.46). Considerando as proposições de Martins, Goldman e Gardner, a noção de ressonadores pode ser considerada sempre que houver sintonia entre a frequência da voz e a parte do corpo correspondente. Na oficina de Simioni, o pesquisador pedagogo utilizou ambos os termos:

ressonadores e vibradores não se atendo a especulações científicas contemporâneas dos locais

onde ocorreria mesmo ressonância ou vibração. Minha necessidade de buscar apontar essas

113Disponível no Site Jonatahn Goldman Healing Sounds: < http://www.healingsounds.com/ > Acesso em 28 fev.

2014. Jonathan Goldman é músico e professor. Autor de diversos livros ele é uma autoridade sobre a cura pelo som e um pioneiro no campo de harmônicos.

101 diferenças entre ressonância e vibração parte da tentativa de compreensão do que ocorre em meu corpo ao explorar a vibração da voz114.

Na oficina, o envio da energia a partir do koshi para os diferentes ressonadores do corpo ocorria pela emissão de impulsos pelas “alavancas”, movimentos contrários à direção do lançamento. Estes impulsos, verdadeiras “flechas” de energia, percorriam o interior do corpo “abrindo caminhos” até os focos de vibração. Simioni explicou que não era necessário pensar na respiração, em qual momento inspirar ou expirar, pois o corpo faria isso por si só. Na prática, percebi que o que ocorria é que eu inspirava quando me preparava para dar o impulso com o quadril, e que eu expirava e vocalizava logo em seguida ao impulso, quase junto deste, mas isso ocorria naturalmente, junto do movimento, sem pensar. A vibração percorria o trajeto direcionado pelo impulso com o corpo todo engajado em equilíbrio

precário até a região que correspondia ao vibrador. A minha voz ressoava dentro do corpo e

era ampliada.

Faço a associação dos vibradores ou ressonadores trabalhados na oficina com os

chakras do Hatha-Yoga:

Na região que corresponde ao Koshi, ou Centro Energético de Base temos três

chakras: o Mooladhara, que é o chakra básico, localizado na base da coluna, e o Swadhistana, que é o umbilical. O que o que impulsiona a energia kundalini de forma

ascendente é o chakra básico. Para se impulsionar a energia que “vem da terra”, a atenção volta-se para o equilíbrio do corpo a partir dos pés, onde fica o chakra plantar. Dou destaque para a energia sendo projetada no chakra coronário, onde está a glândula pineal, cuja sensação experimentada por mim foi de ampla conexão com a sala, de não fronteira, sensação já refererida na descrição do Treinamento Energético. A voz etérea, produzida neste foco de ressonância é aguda e ao mesmo tempo leve, de baixa intensidade, de forma que ouvir o coro formado junto de todos os participantes foi para mim uma experiência rara de intensa harmonia, de um nível de consciência expandida, difícil de descrever. Parecia, por vezes que eu me conectava com uma dimensão espiritual, mesmo que eu não tenha crença religiosa. Talvez seja a minha experiência de um ritual laico, de que Grotowski fala ou do Processo, uma verticalidade experimentada.

O fato de todo o meu corpo estar em vibração, de perceber por vezes a ressonância nos ressonadores ou vibradores me levou a refletir: Por que na dança Topeng em meio ao ritmo da

114 Lembro que existe também o termo consonadores designando os espaços de vibração abaixo da laringe, de

102 orquestra - o gamelan, o putsab nabhi que é o local central do corpo é que impulsiona a energia bayu para o movimento e a respiração - é tido como praticamente um “segredo” pelos balineses? Possivelmente porque ele é o centro de equilíbrio, que coloca o corpo todo em movimento, um Centro de Energia de Base que irradia energia para as extremidades do corpo. Na dança Topeng, uma dança ritual, o performer é um corpo que vibra e pela vibração coloca- se em comunhão com a natureza ao seu redor, com todos os outros corpos, que também vibram. Na oficina Voz e Ação Vocal muitas vezes percebi no meu corpo a ressonância. O contato com os outros participantes nas canções em conjunto e na Voz Etérea foram os principais momentos pelos quais tive essa sensação de consciência expandida. Pela vibração e pela ressonância sentia que meu corpo se integrava com a natureza, com o Todo.

Buscando compreender melhor essa sensação de consciência expandida por mim experimentada, reporto-me novamente à Martins, que a relaciona com a vibração. Martins (2008, p. 49) afirma que:

O fluxo energético no corpo está relacionado às frequências vibratórias de cada órgão, músculo, cavidade, e dos movimentos internos, como ritmos do batimento do coração como a

respiração, entre outros, todos conectados com a frequência vibratória do pensamento, do sentimento, da intencionalidade. [Grifo meu]

Assim, o pensamento, o sentimento, neste corpomente é modificado pela vibração. Referindo-se especificamente à influência dos sons vocálicos, Martins traz a contribuição de Ted Andrews, estudioso de sons sagrados que afirma que “[...] A voz é uma linguagem vibratória capaz de movimentar processos em nossas células, bem como nos levar a estados

de consciência ampliados”. (Andrews apud MARTINS, 2008, p. 49. Grifo meu). Outra contribuição trazida por Martins serve para elucidar a relação entre sons e estados de consciência:

Com os sons é possível mudar os ritmos de nossas ondas cerebrais, nosso ritmo cardíaco e nossa respiração. Os estudiosos têm atribuído faixas de ondas cerebrais distintas aos diversos estados de consciência. Há quatro categorias básicas de ondas cerebrais, baseadas em ciclos por segundo (Hz), medidas atribuídas aos sons. [...]. Os sons podem alterar nossas ondas cerebrais. A alteração da faixa de onda cria mudanças de consciência. (Goldman apud

MARTINS, 2008, p. 50)

Martins constata a partir das pesquisas destes e de outros autores acerca da relação das frequências vibratórias do som com os estados de consciência que no trabalho de preparação do ator “[...] a ressonância da voz no corpo pode promover o desenvolvimento da consciência

103 sensório-cognitiva-energética [...] Ao ampliar a consciência, o ator despertará a sabedoria total do corpo, sua intuição, sensibilidade, criatividade, e aprimorará suas percepções sobre o poder criativo do som”.

Através da ampliação da energia circulante, da vocalização e da exploração dos

ressonadores na oficina de Simioni foi possível experimentar a sabedoria do corpo, um corpo

que não pensava a priori, mas que era levado pelo fluxo do movimento. O poder criativo do som foi despertado pela ressonância e pela minha experiência encarnada. Isso ocorreu principalmente pelo fato de que nos exercícios de ressonância não houve inicialmente a solicitação da linguagem articulada. “O que” estava sendo dito não importava, mas “como”. Isso trouxe liberdade para experimentar os fluxos energéticos nos diferentes ressonadores que gerou a emissão de diferentes vozes, diferentes sons. Nos ressonadores, pelo movimento do corpo junto da expiração, houve variação de frequência, intensidade, duração, e timbre. Para chegarmos à palavra propriamente dita a exploração da ressonância se deu primeiro com a emissão da vogal “a”, depois com frases em gromelô, para só então a palavra ser pronunciada, obedecendo aos mesmos ritmos e fluxos experimentados junto ao movimento.