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O CENTRO DE ENERGIA DE BASE COMO VIA DE ACESSO À MEMÓRIA

CAPÍTULO I: NOÇÕES DE CENTROS DE ENERGIA DO CORPO EM ALGUMAS

2. CAPÍTULO II: OFICINA VOZ E AÇÃO VOCAL DE CARLOS SIMIONI

2.5. O CENTRO DE ENERGIA DE BASE COMO VIA DE ACESSO À MEMÓRIA

O Centro de Energia de Base, ou koshi, corresponde de certa forma à visão japonesa do psiquiatra Takeo Doi e de Yoshi Oida, referida no primeiro capítulo, do hara como sendo o núcleo do self, ou pelo qual temos intuições. É neste centro que a respiração profunda desperta sensações. Um centro, que por não ser localizado em atama, ou seja, na cabeça, local onde no ocidente compreendemos estar alojada a razão, não mascara para o performer suas pulsões instintivas. Mas esta não é apenas uma metáfora. No centro do corpo está localizado o intestino e o Sistema Nervoso Entérico, que pelo nervo Vago faz com que nossos instintos primários nos mobilizem rapidamente para a ação e reação, colocando-nos em contato com os outros de forma intuitiva, instintiva. Centro que engloba a coluna e seus transversários espinhosos que também reagem por reflexo, centro no qual o diafragma está conectado ao músculo Iliopsoas como vimos em GDS e a toda a musculatura do assoalho pélvico. Centro onde reside também a sexualidade do corpo, cuja repressão dos impulsos pode gerar enrijecimento, couraças musculares nas mesmas localizações dos chakras dificultando o fluxo energético, a ressonância da voz por excesso de tensão. Todas essas relações com os instintos, sediados no Centro de Energia de Base e que interferem na circulação, respiração, batimentos cardíacos, sensações, sentimentos, pensamentos, justificam no trabalho do performer a necessidade de diminuição do lapso de tempo entre o impulso e a ação para que a razão não interfira e a energia tenha seu fluxo livre.

Neste local do corpo está centralizada a ação da musculatura antigravitária, o Suporte

Muscular Interno, um dos princípios de Bartenieff que tem no Iliopsoas a importante função

de flexão do quadril e que garantiu na evolução do ser humano o seu acesso à verticalidade. A luta contra a gravidade ao se apoiar sobre os dois pés é uma conquista a ser gerenciada todos os dias pelo equilíbrio do corpo. São essas teorias evolucionista de Darwin, que embasaram o as formulações de Laban e Bartenieff .

Ao discorrer sobre o trabalho de Laban, Suquet localiza nas fibras nervosas do corpo o a memória registrada das experiências vividas:

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estruturas do corpo (músculos, órgãos...) [...] seriam literalmente esculpidas pelas vicissitudes que cada um encontra na história de seu acesso à verticalidade. As fibras nervosas constituiriam o seu registro corporal, moldando as particularidades posturais de um indivíduo.[...]No campo da Biopsicologia, Henri Walloon, mostrou, por outro lado, na década de 1940 que as primeiras interações do um bebê passam por contrações dos músculos gravitários, chamados também de músculos tônicos.

Não seria o equilíbrio entre a cabeça e o quadril o grande desafio enfrentado por cada um de nós ao darmos os primeiros passos? Que experiências marcantes de sustos, de medo da queda, e que experiências afetivas teríamos vivido neste “acesso à verticalidade”?

A explicação de Suquet inicialmente me leva a relacionar o corpo como um palimpsesto, ou seja, um pergaminho antigo sobre o qual os antigos, para escrever novas histórias precisavam raspar as anotações antigas, contudo, elas não desaparecem ao todo. Na Oficina Voz e Ação Vocal, o acesso a essas memórias musculares pelos exercícios gerou muita emoção. Esta emoção foi sentida principalmente quando a vibração da voz ocorria no abdômen, no ressonador da barriga, durante várias vezes eu chorei. Também foi forte a emoção quando todos os ressonadores, desde a base, foram trabalhados juntos, no último dia: a “voz total”.

Percebi que foi a mescla de equilíbrio precário e respiração profunda que fez com que as emoções contidas na musculatura fossem liberadas. A base corporal para o movimento vocal foi pautada nestes princípios.

Percebi também, ao fazer a oficina Voz e Ação Vocal, que a memória estava no meu corpo inteiro. Não se tratava de uma memória de fatos ocorridos, não vieram lembranças à minha mente, mas emoções surgidas ao mover o meu corpo a partir do Centro de Equilíbrio

de Base e alterando o seu tônus. Depois destas emoções extravasadas, no último dia percebi

que uma liberdade me invadia, uma fluidez, e novamente a sensação de comunhão com o espaço.

Teço a correlação desta experiência de liberação da emoção com a ideia grotowskiana segundo a qual “o corpo não têm memória, ele é memória. Acessamos o corpo- memória através da “encarnação da nossa vida no impulso” (GROTOWSKI, 2007, p.173-174). E este impulso parte sempre do Centro de Energia de Base que é nosso centro de equilíbrio e centro de gravidade.

No último dia de oficina, Simioni afirmou:

Eu estou passando para vocês desde o primeiro dia, movimentos corporais e vocais que primeiro acorda o corpo de vocês, desperta. [...] Não seria o meu trabalho

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oferecer uma técnica fria, mecânica pra vocês. [...] O fato de eu me provocar e encontrar a voz dentro desse bolo que são as emoções, que são o teu ser, que é vida, que são as minhas fraquezas, o fato de eu usar essa voz, que vai ficar batendo no corpo, com certeza essa vibração que a Sílvia fala que eu tenho e que todos nós vamos ter, no sentido de a gente continuar com esse treinamento, é isso, é inteireza que chega para o espectador. E claro que daí emociona (SIMIONI, Carlos. Voz e

Ação Vocal. 2011. Notas de oficina)

O que seria uma técnica fria, mecânica? Seria, a meu ver, uma técnica na qual pensássemos a voz como dissociada do corpo, e o corpo do pensamento. Uma técnica na qual a voz e o corpo não fossem tidos como um fenômeno intrínseco à existência do performer. Uma técnica na qual a voz fosse tida como atributo da razão, e que a razão é que ditaria as ações do corpo. Esta não foi seguramente a abordagem técnica que experimentei na oficina

Voz e Ação Vocal. Ao colocar o corpo todo em ação, a partir do Centro de Energia de Base,

acessei aspectos muito íntimos através do movimento, da respiração, da voz. Não foi uma tarefa fácil, passei por momentos de cansaço e lutei contra ele, sobretudo no Treinamento

Energético.

Na oficina, a ação vocal não surgiu pela indicação de relacionarmos imagens aos movimentos oriundos do Koshi, ou seja, do Centro de Energia de Base. No entanto as imagens surgiam para mim a partir da sonoridade. A imaginação foi instigada, mesmo que Simioni não tenha pedido para que estabelecêssemos relações com parceiros imaginários, fazendo uso de um termo grotowskiano. Este fato para mim é explicado pelo estado de presença gerado pelos exercícios, no qual o corpo e a consciência foram dilatados. Lembrando a afirmação de Godman mencionada no item 2.4.3, a consciência pode ser expandida pela vibração sonora, as sensações e o pensamento também podem ser gerados pela voz. É possível assim, criar imagens sonoras que alimentarão as intenções e ações do performer. Isso ocorreu comigo, conforme já mencionei anteriormente.

Simioni, no início da oficina afirmou que trabalharíamos sobre “a base da voz”. A base da voz foi re-descoberta pela percepção da vibração do ar, do tato interior dos músculos, da liberação da emoção. Foi preciso adentrar no corpo, “nesse bolo que são as emoções” para que a voz se manifestasse. Foi preciso levar a inspiração até o Centro de Energia de Base e engajar junto dele toda a coluna, todo o corpo. Reconciliar respiração e movimento, procurando romper com automatismos para redescobrir a organicidade, a naturalidade que as crianças e os animais conservam.

Pela vibração, pelas suas frequências e afecções em meu corpo e de outros corpos em relação ao meu, pelas memórias despertadas, pela sua dimensão imagética, a voz foi

108 percebida por mim como ponte, como extensão do corpo, corpo-em-voz, apontando para uma dimensão espiritual imanente à minha existência como corpo/voz em harmonia com a Natureza.

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CAPÍTULO III: OFICINA DO CORPO E DA VOZ À COMPOSIÇÃO