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Ao fim de alguns instantes chamou a sacerdotisa; a velha mulher acudiu ao chamamento e disse: “Porque choras,

No documento Cáriton: Quéreas e Calírroe Autor(es): (páginas 134-138)

Cáriton

IX. 1. Ao fim de alguns instantes chamou a sacerdotisa; a velha mulher acudiu ao chamamento e disse: “Porque choras,

minha filha, se é tanta a tua felicidade? Até já os estrangeiros te veneram como a uma deusa! Ainda anteontem estiveram aqui dois belos moços, chegados de fora. Um deles, ao ver a tua efígie, por pouco não deu o último suspiro. Afrodite fez de ti uma verdadeira aparição”. 2. Sobressaltou-se o coração de Calírroe perante tal notícia; ficou como louca, e, de olhos fixos, gritou: “Quem eram esses estrangeiros? De onde vinham? O que te contaram?” Receosa, a sacerdotisa primeiro ficou sem fala; depois, com dificuldade, balbuciou: “Eu só os vi, não os ouvi dizer nada”. 3. “E como é que eles eram, esses moços que viste? Faz por te lembrares do aspeto deles”. A velha não soube explicar-se muito bem, mas mesmo assim Calírroe suspeitou da verdade. Facilmente se acredita naquilo que se deseja. Fitou Plângon e disse: “É bem possível que o pobre do Quéreas ande por aí perdido. O que terá acontecido? Vamos procurá-lo, mas nem uma palavra sobre o assunto».

4. Quando chegou junto de Dionísio, limitou-se a relatar--lhe o que tinha ouvido à sacerdotisa. Bem sabia ela que o Amor é por natureza curioso e que o marido tomaria a iniciativa de averiguar o que tinha acontecido. E assim foi. Mal que tal ouviu, Dionísio sentiu-se desde logo invadido pelo ciúme; estava longe de desconfiar de Quéreas, simplesmente receava que alguém, lá no campo, preparasse alguma tentativa secreta de sedução. A beleza da mulher incentivava-lhe as suspeitas e os temores. 5.

E não eram só as maquinações dos homens que temia; punha mesmo a hipótese de um deus baixar do céu para rivalizar com o seu amor. Chamou Focas e inquiriu: “Quem são os tais moços e de onde vêm? Eram gente rica, com bom aspeto? Porque vie-ram adorar a minha Afrodite? Quem lha indicou? Quem lhes deu autorização?” 6. Focas calou a verdade, não por receio de

Dionísio, mas por saber que Calírroe o mandaria matar, a ele e à família, se soubesse o que se tinha passado. Quando o viu negar que lá tivesse estado alguém, Dionísio, que lhe não conhecia os motivos, suspeitou de que se estivesse a tramar contra ele uma conspiração ainda mais grave. 7. Profundamente irritado, mandou vir os chicotes e a roda para torturar Focas; e não só a ele, pois convocou todos os seus homens lá do campo, conven-cido de que ia desvendar um caso de adultério. Focas percebeu a gravidade da situação, quer falasse quer ficasse calado: «A ti, senhor», disse por fim, «eu digo a verdade, mas em particular».

8. Dionísio mandou sair todos os outros, mas recomendou:

“Pronto, agora estamos sós. Mas não mintas mais, trata de dizer a verdade, por mais desagradável que ela seja”. “Não se trata de nada desagradável, patrão, são até boas notícias as que tenho para te contar. A primeira parte é que é um pouco difícil, mas não te aborreças nem te aflijas, espera até ouvires o resto. Que o fim só te é vantajoso”. 9. Já excitado com aquela promessa e suspenso da história, Dionísio ordenou: “Não percas tempo, vamos ao assunto”.

Focas começou então a contar: “Aportou aqui uma trirreme vinda da Sicília, com uma embaixada de Siracusanos a bordo, encarregados de te reclamarem Calírroe”. 10. Dionísio quase morreu ao ouvir esta introdução; cobriram-se-lhe os olhos de tre-vas. Viu na sua frente o fantasma de Quéreas, que lhe arrebatava Calírroe. Caiu redondo, com o aspeto e a cor de um defunto.

Focas estava na maior atrapalhação, porque não queria chamar ninguém para não haver testemunhas daquela conversa confi-dencial. A custo, a pouco e pouco, lá foi reanimando o patrão.

“Coragem”, dizia ele, “Quéreas está morto e o barco destruído.

Não há razão para receios». 11. Estas palavras insuflaram ânimo a Dionísio, que, depois de se restabelecer lentamente, se informou de tudo em pormenor. Focas lá foi relatando: o marinheiro que

lhe tinha dito de onde vinha a trirreme, a pessoa que motivava a viagem e quem fazia parte da embaixada; o estratagema que ele próprio tinha usado para com os bárbaros, a noite, o incên-dio, o assalto ao barco, as mortes, as prisões. Foi como se uma nuvem ou uma sombra se dissipassem na alma de Dionísio, que abraçou Focas e lhe disse: “És o meu salvador, o meu verdadeiro anjo da guarda, o mais fiel confidente dos meus segredos. 12.

Graças a ti conservo comigo Calírroe e o meu filho. Eu não te teria mandado matar Quéreas, mas se o fizeste não to censuro.

É um crime praticado por dedicação ao teu senhor. Houve só um descuido que cometeste: não te teres preocupado em saber se Quéreas estava entre os mortos ou entre os prisioneiros. Devias ter procurado o cadáver. Nesse caso ele recebia um túmulo e eu teria razões para estar mais tranquilo. Assim não posso ser feliz sem inquietações, por causa dos tais prisioneiros. Nem mesmo sabemos onde qualquer deles foi vendido”. X. 1. Incentivou Focas a contar abertamente tudo o que tinha acontecido, à exceção de dois pormenores: a estratégia que ele próprio tinha montado e a existência de sobreviventes da trirreme. Foi então ao encontro de Calírroe, com cara de caso; convocou em seguida as gentes do campo, já industriadas do assunto, para que a mulher, ao inteirar--se do ocorrido, desesperasse de uma vez por todas de reencontrar Quéreas. 2. Depois de reunidos, todos contaram o que sabiam:

“Uns salteadores bárbaros, durante a noite, atacaram e pegaram fogo a uma trirreme grega, que, desde a véspera, tinha ancorado junto ao promontório. Quando se fez dia, vimos a água mancha-da de sangue e os cadáveres levados pelas onmancha-das”. 3. Ao ouvir esta história, a jovem rasgou as roupas, e, a bater nos olhos e nas faces, correu para o quarto, onde se tinha instalado pela primeira vez quando foi vendida.

Dionísio deixou-a dar desafogo à sua dor, temendo ser desagradável, se aparecesse na hora imprópria. Mandou toda a

gente embora, reteve apenas Plângon para lhe fazer companhia, com medo de que Calírroe atentasse contra a própria vida. 4.

Esta, quando ficou sozinha, sentou-se no chão, derramou pó sobre a cabeça, arrepelou os cabelos e começou a lamentar-se:

“Pedi aos deuses para morrer antes de ti, ou pelo menos contigo, Quéreas. Mas é de todo imperioso que afinal morra depois. Que esperança ainda me resta que me prenda à vida? 5. No meio das minhas infelicidades, até agora eu podia dizer: “Ainda hei de rever Quéreas e de lhe contar o que sofri por causa dele. Essa história há de valorizar-me a seus olhos. Que alegria não há de sentir quando vir o filho!» Tudo isto agora perdeu o sentido para mim, até o meu filho se tornou um empecilho. A acrescentar a todas as minhas desgraças, ainda há esse órfão. 6. Injusta que és, Afrodite! Só tu viste Quéreas, a mim não mo mostraste, quando cá esteve. Entregaste na mão de ladrões aquele corpo maravilho-so, sem compaixão por um homem que andou errante por tua causa. A uma deusa assim quem pode invocar, pronta a matar os seus suplicantes? 7. Não socorreste, naquela noite medonha, esse moço gentil, apaixonado, que viste assassinar perto do teu san-tuário. Privaste-me do meu companheiro, do meu concidadão, do meu amante, do meu amado, do meu marido. 8. Devolve-me ao menos o corpo dele. Admito que ambos nascemos para o pior dos destinos. Mas que mal fez essa trirreme, para os bárbaros a incendiarem (se nem os Atenienses a conseguiram dominar)?

A esta hora, estão os pais de ambos sentados frente ao mar, a aguardar o nosso regresso. A cada barco que avistem ao longe, hão de dizer: “Lá vem Quéreas de volta com Calírroe”. E vá de nos arranjarem o leito nupcial, de nos prepararem a alcova; a nós que nem o nosso túmulo temos. Mar maldito, que conduziste a Mileto Quéreas para morrer e a mim para ser vendida!”.

Livro IV

I. 1. Calírroe passou aquela noite em gemidos, a chorar

No documento Cáriton: Quéreas e Calírroe Autor(es): (páginas 134-138)

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