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Enquanto ela se entregava a estes lamentos, os salteado- salteado-res por seu lado iam passando ao largo de ilhas e cidades sem

No documento Cáriton: Quéreas e Calírroe Autor(es): (páginas 87-91)

Cáriton

VII. 1. Havia então um tal Téron, um escroque, que, com propósitos desonestos, percorria os mares; tinha com ele um

4. Enquanto ela se entregava a estes lamentos, os salteado- salteado-res por seu lado iam passando ao largo de ilhas e cidades sem

importância. Não era para pobres o saque que transportavam;

por isso procuravam gente de posses. Ancoraram justamente diante da Ática, ao abrigo de um promontório. Havia ali uma fonte de água abundante e límpida e um prado magnífico. 5. Para lá conduziram Calírroe, decididos a deixá-la tomar um banho e repousar da viagem. Importava preservar-lhe a beleza. Quando ficaram sós, ponderaram sobre a melhor rota a seguir. Houve um que disse: “Atenas, que é uma cidade grande e próspera, fica perto. Lá havemos de encontrar montes de negociantes e ricaços sem conta. Como quem vê homens numa praça, em Atenas se vêem cidades”. 6. Todos estavam de acordo em fazer rumo para Atenas, só a Téron não agradava a curiosidade dessa gente:

“Serão vocês os únicos que nunca ouviram falar da bisbilhotice dos Atenienses? É uma gente palradora e amiga de questões;

logo no porto sicofantas aos milhares vão querer saber quem somos e de onde trazemos estas mercadorias. E vão-se encher de suspeitas terríveis, esses malvados. 7. Ali mesmo entra em cena o Areópago e os magistrados, piores que tiranos35. Devemos temer mais os Atenienses do que os Siracusanos. O lugar mais conve-niente para nós é a lónia, pois lá desagua, vinda do interior da Ásia imensa, uma opulência régia e abunda gente dada ao luxo e ao lazer. Tenho esperança de encontrar até alguns conhecidos”.

35 Como quem conhece bem o ambiente ateniense, Téron teme-lhe os perigos: primeiro os sicofantas, denunciantes de negócios ilícitos, agentes de uma atividade que, em nome dos lucros e percentagens que recebiam, executavam com presteza e falta de rigor, o que os tornou a breve prazo detestados. Depois o entusiasmo dos Atenienses pelos tribunais e pelos litígios, de que o Areópago, como o mais antigo tribunal de Atenas, se tornou o paradigma. Apesar de há muito ter perdido boa parte da sua autoridade inicial, em função das reformas de Efialtes produzidas já no século V a. C., e se ter praticamente confinado ao juízo de crimes de sangue, o Areópago continuava, no dizer de Ferreira 1990: 117, “um órgão com prestígio e mantinha aos olhos de muitos a aura de tribunal supremo e sobretudo de garante da constituição”.

8. Fizeram então provisão de água, abasteceram-se de víveres nos barcos por ali estacionados e partiram direitos a Mileto36. Dois dias depois atracaram a um porto a oitenta estádios da cidade, um sítio ideal para abrigo. XII. 1. Aí Téron deu ordem de recolher os remos e deixar Calírroe sozinha, rodeada de todo o conforto. Não o fazia por delicadeza, mas por ganância; agia mais como negociante do que como salteador. Ele próprio deu uma saltada à cidade, acompanhado de dois camaradas.

Não era sua intenção procurar, abertamente, um comprador, nem fazer propaganda do negócio; pretendia, isso sim, apressar uma transação, em segredo e de dinheiro na mão. Tornou-se claro que a mercadoria era difícil de colocar. Não se tratava de um produto que interessasse ao grande público nem ao primeiro que aparecesse; era coisa para um milionário, ou até mesmo para um rei, e esses ele tinha medo de os abordar. 2. Este impasse durava já há algum tempo e ele não se sentia capaz de tolerar mais a demora. Chegada a noite, não conseguia dormir e dizia com os seus botões: “Téron, és um asno. Faz já um bom par de dias que deixaste a prata e o ouro em lugar solitário, como se o único salteador deste mundo fosses tu. 3. Não sabes que o mar está cheio de outros piratas? Receio bem que até os nossos nos abandonem e se ponham ao largo. É óbvio que não recrutaste homens de grandes escrúpulos, capazes de assumirem um compromisso, mas os maiores valdevinos que conhecias. 4.

Seja como for, por agora dorme, que bem precisas. Mas quando o dia nascer, dá uma saltada ao barco, lança ao mar essa mulher

36 Mileto era a cidade mais importante da Iónia, a costa da Ásia Menor ocupada por Gregos, cuja história, condicionada pelos conflitos de que toda a região foi palco, com sucessivas incursões e conquistas por parte dos grandes reinos orientais (nomeadamente lídio e persa), viveu alternadamente períodos de prosperidade e de crise. Durante o século VI a. C., para além do seu poderio como potência marítima e comercial, é o progresso científico e filosófico que faz a principal glória de Mileto.

importuna, que só atrapalha, e nunca mais te encarregues de uma mercadoria tão difícil de colocar”. 5. Mas quando mergu-lhou no sono, viu em sonhos as portas fechadas. Decidiu por isso ficar ainda aquele dia.

Perturbado como estava, ficou ali sentado junto a uma loja, com a cabeça completamente arrasada. 6. Eis senão quando viu passar uma multidão de homens, livres e escravos, que rodeavam um sujeito já de idade, vestido de preto e com ar abatido. Téron levantou-se (o ser humano é, por natureza, curioso) e procurou informar-se junto de um dos membros do grupo: “Quem é o fulano?” Ao que o outro respondeu: “Deves ser estrangeiro ou então tens andado por muito longe, para não conheceres Dionísio, que, em fortuna, linhagem e educa-ção, suplanta todos os Iónios, além de ser amigo do Grande Rei”. 7. “E porque é que está de luto?” “Morreu-lhe a mulher, de quem ele gostava muito”. Aquele encontro atraía cada vez mais Téron, que acabava de descobrir um homem rico e que se interessava por mulheres. Já não largou mais o fulano, a quem foi interrogando: “Qual é a tua posição junto dele?” 8. Ao que o outro retorquiu: “Sou eu que lhe administro todos os bens e me encarrego também da filha, uma criança ainda pequena, que a morte da pobre mãe deixou orfã antes do tempo”. E logo Téron: “Como é que tu te chamas?” “Leone”. “Foi uma sorte, Leone, ter-te encontrado. Sou comerciante e acabo de regressar da Itália, onde me não chegou nenhuma notícia da Iónia. Uma mulher de Síbaris37, a mais rica de quantas lá existem, tinha uma favorita, uma perfeita beldade, que, por ciúmes, pôs à venda;

37 Síbaris é uma conhecida cidade do Sul da Itália, famosa pelos hábitos de vida, luxuosa e requintada, dos seus cidadãos. Também ela fundada por colonos gregos, em anos remotos do século VIII a. C., beneficiou da localização numa planície extraordinariamente fértil, razão principal da sua prosperidade e riqueza.

e eu comprei-a. 9. Pois trata de tirar partido dela, se a quiseres utilizar como ama da criança (que ela tem educação que baste), ou até se a achares capaz de agradar ao teu senhor. Aliás só te traz vantagem que ele disponha de uma escrava comprada a dinheiro, antes que arranje uma madrasta para a tua pupila”.

No documento Cáriton: Quéreas e Calírroe Autor(es): (páginas 87-91)

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