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Todos partiram com o rei para o combate contra os Egípcios, sem que qualquer ordem fosse dada a Quéreas. De

No documento Cáriton: Quéreas e Calírroe Autor(es): (páginas 193-197)

Cáriton

I. 1. Todos partiram com o rei para o combate contra os Egípcios, sem que qualquer ordem fosse dada a Quéreas. De

facto ele não era súbdito do rei, mas, na altura, o único homem livre em Babilónia. Encantava-o a esperança de que Calírroe ficasse também. Dirigiu-se assim, no dia seguinte, ao palácio, à procura da mulher. 2. Viu tudo fechado e montes de guardas à porta. Pôs-se a percorrer a cidade de uma ponta à outra, em busca de uma informação, enquanto repetia, como um obce-cado, ao amigo Policarmo uma mesma pergunta: “Onde está Calírroe? O que lhe terá acontecido? Imagino que não tenha também partido para a campanha”. 3. Como não encontrou Calírroe, passou a procurar Dionísio, o seu rival; dirigiu-se a casa dele. Alguém lhe veio ao encontro, para, como quem não quer a coisa, lhe dar o recado que lhe tinham ensinado. De facto Dionísio, que pretendia desiludir Quéreas de casar com Calír-roe e fazê-lo desistir do processo, tinha engendrado a estratégia seguinte; 4. ao partir para o combate, tinha deixado lá um dos seus homens com esta mensagem para Quéreas: que o rei persa, necessitado de aliados, tinha encarregado Dionísio de reunir um exército contra o Egito e que, para se garantir dos serviços leais e sinceros do seu súbdito, lhe tinha devolvido Calírroe.

Ao ouvir semelhante notícia, Quéreas acreditou nela sem he-sitar; é fácil enganar um infeliz. 5. Pôs-se a rasgar as roupas, a arrancar os cabelos e a bater com a mão no peito enquanto se lastimava: “Babilónia traiçoeira, que desgraçado acolhimento dás aos estrangeiros! Para mim és como um deserto. Que belo juiz aquele! Um sedutor da mulher alheia, foi o que ele me

saiu. Fazer depender da guerra o casamento! E eu, com todo o cuidado, a preparar o julgamento, perfeitamente convencido da razão dos meus argumentos. Fui condenado à rebelia e Dionísio venceu sem precisar de falar. 6. Mas de nada lhe valerá a vitória;

porque Calírroe não poderá viver afastada de Quéreas, que sabe próximo, ainda que no passado Dionísio a iludisse, fazendo--lhe crer que eu estava morto. De que estou eu à espera para me degolar diante do palácio, para verter o meu sangue diante da porta do juiz? Persas e Medos hão de saber qual é a justiça que o seu rei aqui pratica”.

7. Policarmo viu o amigo desolado perante a desgraça e, incapaz de salvar Quéreas, disse-lhe: “De há muito tempo que tento consolar-te, amigo, e vezes sem conta te impedi de morrer, mas, neste momento, parece-me acertada a tua decisão.

Sinto-me mesmo tão alheio à ideia de te impedir de morrer, que eu próprio estou disposto a seguir-te na morte. Analise-mos que tipo de morte nos poderá convir mais. Essa em que estás a pensar pode realmente desencadear alguma má vontade contra o rei e, no futuro, cobri-lo de opróbrio; mas não é uma reparação suficiente por tudo o que sofremos. 8. Pretendo que a morte que, de uma vez por todas, determinarmos para nós, resulte no castigo do soberano. Seria bom infligir-lhe, com esse ato, sofrimento, para o obrigar a arrepender-se. Só nos traria prestígio se deixássemos aos vindouros a lenda de dois gregos que, vítimas de uma injustiça, devolveram o castigo ao grande rei e morreram como homens”. 9. “Mas como é que nós os dois”, perguntou Quéreas, “sozinhos, pobres, estranhos, vamos conse-guir atormentar o soberano de tais e tantos povos, o senhor do poder que presenciámos? Guarda-costas ou homens de armas não lhe faltam e, mesmo que lhe matássemos algum ou lhe incendiássemos alguma propriedade, ele nem se daria conta do prejuízo”. 10. “Terias toda a razão”, contrapôs Policarmo, “se

não fosse a guerra. Mas, neste momento, sabemos que o Egito se sublevou, que a Fenícia está ocupada e que a Síria sofre uma invasão. O rei vai ter de enfrentar o combate, antes mesmo de atravessar o Eufrates. 11. Logo não estamos sozinhos os dois, são nossos aliados todos aqueles que o Egito fez avançar, todas as suas armas, todos os seus recursos, todas as suas trirremes.

Vamos usar da força alheia para nossa vingança pessoal”. Ainda nem tais palavras eram ditas e já Quéreas gritava: “Depressa, vamos partir! É na guerra que vou tirar desforra desse juiz!”

II. 1. Puseram-se rapidamente a caminho em perseguição do rei, com o pretexto de desejarem juntar-se às suas forças. Com este argumento, tinham esperança de atravessar o Eufrates sem problemas. Alcançaram o exército junto ao rio, misturaram-se com a retaguarda e seguiram com ele. 2. Quando chegaram à Síria, desertaram para o lado egípcio.

As sentinelas prenderam-nos e procuraram identificá-los.

Como não tinham ar de embaixadores, desconfiaram que seriam espiões. Iriam ver-se em sérios riscos, não fosse terem en-contrado por acaso lá um grego que lhes compreendia a língua.

Pediram então para serem levados à presença do rei, a quem, diziam eles, podiam fornecer uma ajuda preciosa. 3. Quando os conduziram até ele, Quéreas declarou: “Nós somos gregos, da aristocracia de Siracusa. Este aqui, por amizade, acompanhou--me a Babilónia, por razões do meu interesse; e eu vim por causa de uma mulher, a filha de Hermócrates, se te diz alguma coisa o nome de Hermócrates, o general que derrotou os Atenienses no mar”. 4. O egípcio acenou afirmativamente, pois em parte alguma era desconhecido o desaire ateniense, ocorrido durante a campanha contra a Sicília. “Somos perseguidos pela tirania de Artaxerxes” e contaram a história toda. “Vimos trazer-te o nosso apoio como amigos de confiança, predispostos à valentia, por dois motivos poderosos: o desejo de morte e de vingança.

Eu já devia ter morrido perante todos os infortúnios que me perseguem; mas daqui para o futuro a única razão da minha vida é torturar o inimigo.

“Que a morte me não leve, sem luta nem glória,

mas em pleno apogeu, que deixe, entre os vindouros, viva a minha fama”78.

5. Depois de o ouvir, o egípcio rejubilou e estendeu-lhe a mão: “Vens na hora própria, meu rapaz, para ti e para mim”.

Logo deu ordem para que lhes fornecessem armas e uma tenda, e não foi preciso muito tempo para admitir Quéreas como seu comensal e até seu conselheiro. Este evidenciava bom senso e coragem, a que não faltava lealdade, como homem de natureza nobre e de elevada educação que era. 6. A Quéreas iam-no impondo e distinguindo, cada vez mais, a rivalidade que ali-mentava para com o rei, o desejo de mostrar que mérito lhe não faltava e que, pelo contrário, era digno de consideração. Pouco tempo depois, aliás, pôde prová-lo com um feito notável que cometeu. De todas as empresas anteriores se tinha o egípcio saído bem, sem dificuldades de maior, o que lhe tinha dado, de um momento para o outro, o controle da Celesíria79; tinha também sob seu domínio a Fenícia, à exceção de Tiro. 7. Os Tírios são, por natureza, um povo belicoso, obstinados em con-seguirem a glória através da bravura, de modo a não deixarem por mãos alheias os créditos de Héracles, o deus que mais vene-ram, a ponto de lhe terem consagrado, quase só a ele, a cidade.

Confiam também na localização protegida que têm. 8. É que a cidade está construída no mar, ligada ao continente por uma passagem estreita, que é o único pormenor que a distingue de

78 Ilíada 22. 304-305.

79 Celesíria era o nome de toda a região a ocidente do Eufrates, à exceção da Fenícia.

uma ilha. Parece-se com um barco atracado, em contacto com terra através de uma passadeira. 9. É fácil aos habitantes fazerem frente a uma invasão, venha ela de onde vier; à infantaria pelo lado do mar, pois lhes basta defender uma única porta; a uma arremetida naval, graças às muralhas, dado que a cidade é uma praça forte, fechada pelos portos que possui, como uma casa.

III. 1. Assim toda a região em redor estava ocupada, só os Tírios

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