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Anunciou-se um determinado dia e reuniu-se então uma multidão, não só gente de Mileto como de quase toda a Iónia

No documento Cáriton: Quéreas e Calírroe Autor(es): (páginas 139-142)

Cáriton

I. 1. Calírroe passou aquela noite em gemidos, a chorar Quéreas que afinal estava vivo. Quando por fim sossegou um

7. Anunciou-se um determinado dia e reuniu-se então uma multidão, não só gente de Mileto como de quase toda a Iónia

Estiveram também presentes dois sátrapas, que nem de propó-sito estavam de visita à cidade, Mitridates da Cária e Fárnaces da Lídia53. 8. Tinham o pretexto de homenagear Dionísio, mas a verdade é que pretendiam ver Calírroe; enorme era a fama daquela mulher por toda a Ásia, até ao Grande Rei chegava já o nome de Calírroe, nem que fosse o de Ariadne ou o de Leda54. Acharam-na, porém, na ocasião, ainda mais bela do que se dizia. Apareceu vestida de preto, cabelos soltos, rosto brilhante

52 Odisseia 24. 83.

53 A Cária e a Lídia são duas regiões vizinhas de Mileto, no oci-dente sul e centro da Anatólia, na geografia hodierna regiões incluídas na Turquia e, na altura, parte do grande império persa.

54 Sobre Ariadne, cf. supra p. 78, nota 34. Leda, por seu lado, conta-se entre as mortais que, graças aos seus encantos, despertaram a paixão do deus supremo, Zeus. De entre as muitas variantes que este mito conhe-ceu, avulta aquela que retrata os apaixonados a consumarem, sob a forma de cisnes, os seus anseios amorosos. Desta união nasceu a própria Helena, a beldade por quem tantos Gregos e bárbaros não hesitaram em dar a vida. Sobre os pormenores que este mito famoso conheceu, vide Graves 1977: I, 106 sq.

e braços descobertos - a suplantar “A deusa de alvos braços” ou

“A de belos artelhos” de Homero55. 9. Não houve ninguém, mas ninguém mesmo, que conseguisse encarar o esplendor daquela beleza; uns desviaram a vista, como se tivesse sido ferida por um raio de sol, e rojaram-se-lhe aos pés. Nem mesmo as crianças ficaram indiferentes. Mitridates, o governador da Cária, ficou atónito, incapaz de pronunciar palavra, como se, sem contar, tivesse sido atingido por uma fisgada; só a custo os guarda--costas conseguiram retirá-lo dali em braços. 10. Desfilou uma representação de Quéreas, esculpida a partir da efígie do anel. Mas apesar de a imagem ser perfeita, passou a todos despercebida, face à presença de Calírroe, que, só para si, atraía todos os olhares. 11. Quem poderá descrever a preceito o final deste cortejo? Quando chegaram junto do túmulo, os homens que transportavam o ataúde pousaram-no. Calírroe pôs-se-lhe em cima, abraçou Quéreas, cobriu de beijos a imagem e disse:

“Primeiro foste tu a sepultar-me em Siracusa, agora sou eu que te sepulto em Mileto. 12. Os sofrimentos por que passámos não são só enormes, mas extraordinários. Fizemo-nos mutua-mente o enterro, sem que nenhum de nós tenha o cadáver do outro. Sorte maldita, até na morte nos impediste, por inveja, de partilharmos o mesmo palmo de terra! Até os nossos cadáveres condenaste ao exílio!” A multidão irrompeu num canto fúne-bre; todos lamentavam Quéreas, não porque tivesse morrido, mas por ter sido privado de uma tal mulher.

II. 1. Enquanto Calírroe sepultava Quéreas em Mileto, Quéreas, feito prisioneiro, trabalhava na Cária. À força de cavar, depressa deu conta do físico. Muitos motivos o traziam

55 “A deusa de alvos braços” é, na Ilíada, epíteto com frequência aplicado a Hera; “a de belos artelhos” é, por sua vez, epíteto generalizado a personagens femininas.

acabrunhado: a fadiga, a falta de cuidados, as cadeias, mas, acima de tudo, a paixão. Dominava-o o desejo de morrer, mas não lho consentia uma leve esperança de ainda um dia rever Ca-lírroe. 2. Policarmo, o amigo que com ele partilhava o cativeiro, ao ver que Quéreas estava incapaz de trabalhar, o que lhe valia vergastadas e os piores ultrajes, disse ao capataz: “Distribui-nos uma área de trabalho definida, para não termos de arcar com a preguiça dos outros prisioneiros. E cada dia nós prestamos-te contas da tarefa que nos está atribuída”. Ele aceitou e estabele-ceu-lhes o local. 3. Policarmo, que era um jovem de natureza viril e a quem não escravizava o Amor - déspota intratável que o deus é -, fazia praticamente sozinho a tarefa dos dois; chamava a si, com gosto, a maior parte do trabalho, para proteger o ami-go. 4. Em tais sofrimentos viviam, a desaprenderem já tarde a liberdade. O sátrapa Mitridates regressou à Cária diferente do que era à partida para Mileto, pálido, emagrecido, como quem traz no coração uma chaga ardente e viva. 5. Consumido pela paixão por Calírroe, bem teria morrido, se não tivesse encontra-do uma consolação.

Foi o seguinte: Alguns dos trabalhadores presos juntamente com Quéreas (eram dezasseis ao todo a laborarem num buraco escuro) uma noite cortaram as cadeias, esganaram o guarda e tentaram a fuga. 6. Mas não conseguiram escapar, porque os cães de guarda os denunciaram. Capturados naquela mesma noite, amarraram-nos todos à canga, com vigilância redobrada.

De manhã, o administrador avisou o senhor do sucedido, e ele, sem mesmo ver os presos nem ouvir o que tinham a dizer em sua defesa, mandou imediatamente crucificar os dezasseis homens da mesma tenda. 7. Fizeram-nos sair, ligados uns aos outros pelos pés e pelo pescoço, cada um com a sua cruz às costas.

Ao castigo necessário, acrescentavam os executores toda aquela encenação macabra, que, pelo medo, serviria de exemplo aos

outros. Quéreas seguia juntamente com os companheiros, em silêncio; Policarmo, também ele com a cruz às costas, murmu-rou: “É por tua causa, Calírroe, que passamos por esta prova.

És tu a culpada de todos os nossos males». 8. Ao ouvir aquelas palavras, o administrador pensou que a tal mulher era cúmplice dos revoltosos. Para que também ela fosse punida, depois de ave- riguada a conspiração, mandou de imediato soltar Policarmo da cadeia comum e levou-o à presença de Mitridates. Este repou-sava, sozinho, num parque, perturbado, a imaginar Calírroe, como a tinha visto, de luto. Todo entregue a este pensamento, ficou contrariado ao ver o servo. 9. “Porque me vens aborrecer?”

Ao que o outro respondeu: “É um assunto urgente, senhor.

Descobri a origem dessa conspiração terrível. Este malvado conhece o raio da mulher que participou no golpe». Quando tal ouviu, Mitridates franziu o sobrolho e, com um olhar fulmi-nante, ameaçou: «Que cúmplice é essa que colaborou no crime que vocês cometeram? Fala!» 10. Policarmo dizia que não sabia de nada, que nem sequer tinha participado no caso. Mandou--se vir os chicotes, trouxeMandou--se o fogo e preparouMandou--se tudo para a tortura. Um dos carrascos, já a avançar para Policarmo, ainda lhe disse: “Diz lá o nome da mulher, que afirmavas ser a culpada de toda a vossa desgraça”. «É Calírroe», respondeu Policarmo.

11. Aquela palavra atingiu Mitridates, que pensou tratar-se

No documento Cáriton: Quéreas e Calírroe Autor(es): (páginas 139-142)

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