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Eu, Cáriton de Afrodísias, secretário do retórico Ate- Ate-nágoras, proponho-me narrar um caso de amor que se passou

No documento Cáriton: Quéreas e Calírroe Autor(es): (páginas 70-74)

Cáriton

I. 1. Eu, Cáriton de Afrodísias, secretário do retórico Ate- Ate-nágoras, proponho-me narrar um caso de amor que se passou

em Siracusa.

Hermócrates, o general de Siracusa - aquele mesmo que derrotou os Atenienses-, tinha uma filha, Calírroe de seu nome, uma perfeição de moça, a jóia por excelência da Sicília inteira.

2. De facto, a beleza que possuía não era humana, era divina;

e nem mesmo a de uma Nereide ou de uma Ninfa das monta-nhas, mas a da própria Afrodite Parthenos21. À medida que a fama deste prodígio extraordinário se foi espalhando por toda a parte, acorriam a Siracusa os pretendentes, príncipes e filhos de soberanos; e não apenas da Sicília, mas também da Itália, do Epiro e até dos povos do continente22. 3. Eros, porém, decidiu realizar um enlace original. Existia então um tal Quéreas, um jovem de grande formosura, superior a todos os outros, uma espécie de Aquiles, de Nireu, de Hipólito, ou de Alcibíades, tal como os representam escultores e pintores23. Era seu pai

21 Parthenos, no sentido de “virgem”, aparece como epíteto da deusa e talvez seja preferível conservá-lo na tradução, com toda a carga sagrada que tem, como transcrição.

22 Certamente de outras regiões da Europa Centro e Sul.

23 Estas quatro personagens, do mito e da história, são tomadas como paradigma de beleza capaz de inspirar os artistas. É antes de mais Aquiles, o primeiro dos heróis gregos invasores de Troia, que é recordado. Logo Nireu, filho da ninfa Aglaia, cujo nome figura entre os dos pretendentes de Helena e que, por ela, veio a experimentar as agruras do cerco da cidade de Príamo (cf. Ilíada 2. 671-675). O próprio Homero lhe louva a beleza, considerando-o o segundo nesse predicado, depois de Aquiles.

Hipólito, o filho de Teseu de Atenas e da Amazona, logrou despertar a

Aríston, a segunda figura de Siracusa, depois de Hermócrates.

Ora havia entre estes dois homens uma certa inimizade política, pelo que prefeririam estabelecer uma aliança fosse com quem fosse, a fazerem-no um com o outro. 4. Só que Eros é louco por disputas e pela-se por sucessos imprevistos: aguardava apenas o momento oportuno e este proporcionou-se.

Chegou o dia da festa oficial de Afrodite e praticamente todas as mulheres se dirigiram ao templo. 5. Calírroe, que até então nunca nela tinha participado, para lá foi também, levada pela mãe; satisfazia assim a ordem paterna de prestar culto à deusa. Nessa altura, Quéreas, vindo do ginásio, regressava a casa, radiante como uma estrela. No brilho do rosto resplandecia-lhe o rubor da palestra, como ouro sobre prata.

6. Então, por mero acaso, numa esquina bem apertada, os dois toparam um com o outro e ficaram frente a frente; foi o deus que determinou este encontro, para que se vissem um ao outro. E logo mutuamente se desencadeou uma paixão, entre dois seres que uniam formosura e nobreza.

7. Para Quéreas, depois deste choque, foi difícil voltar para casa; mais parecia um herói ferido de morte num combate, en-vergonhado de cair, mas incapaz de se manter de pé. A moça, por seu lado, lançou-se aos pés de Afrodite e, por entre beijos, supli-cou: “Senhora, concede-me aquele homem que me mostraste”.

paixão desmedida da madrasta, Fedra. Da sua história faz parte uma morte violenta, causada pela calúnia de uma amante desprezada, de que a versão do Hipólito de Eurípides é a mais famosa. Finalmente Alcibíades ficou conhecido como um político em quem os Atenienses, próximo da derrota final da Guerra do Peloponeso, depositaram algumas esperan-ças. Tornavam-no popular a nobreza de sangue, a fortuna, a beleza e a inteligência. Ficou imortalizado, sobretudo através de Platão, por essa perfeição sedutora de que era dotado; vide, e.g., Platão, Banquete. Curio-samente o declínio político de Alcibíades deveu-se à sua participação na mal sucedida campanha ateniense contra a Sicília, a que este romance faz constantes alusões.

8. Chegou a noite, terrível para ambos; era como se um fogo os queimasse. Mais penoso era ainda o sofrimento da jovem, em silêncio, envergonhada à ideia de se ver descoberta. Quanto a Quéreas, um rapaz animoso e enérgico, já as forças lhe falta-vam; pelo que ousou dizer aos pais que estava apaixonado e que não sobreviveria se não conseguisse casar com Calírroe. 9. Ao ouvi-lo, o pai desatou a lamentar-se: “Para mim, estás perdido, meu filho” dizia ele; “é evidente que não é a ti que Hermócrates vai dar a filha, com todos aqueles pretendentes ricos que tem, monarcas até. É que nem vale a pena tentares sequer, para nos poupares a um vexame público». O pai lá procurava consolar o filho, mas o mal dele ia aumentando sempre, a ponto que nem para as ocupações habituais ele saía. 10. Já o ginásio, votado ao abandono, lamentava a ausência de Quéreas; é que amigos lhe não faltavam entre a gente nova. Depois de se informarem e de conhecerem o motivo daquela doença, de todos se apoderou um sentimento de pena por aquele moço, bonito, prestes a arruinar--se por causa de uma paixão, que lhe roía a alma enérgica.

11. Houve uma sessão ordinária da assembleia24. Uma vez reunido, o povo apostou-se neste apelo, prioritário e único:

“Hermócrates, homem ilustre e grande general que és, salva Quéreas; esse passará a ser o teu primeiro título de glória. A cidade reivindica, aqui e agora, o casamento desses jovens, que são dignos um do outro”. 12. Quem poderia contradizer aquela assembleia, de que o próprio Eros era o condutor? Como homem devotado à pátria, Hermócrates não foi capaz de obstar

24 A assembleia do povo funcionava, dentro do sistema democrático, como o organismo deliberativo por excelência. Tinha um calendário de reuniões anuais determinado, que decerto terá tido de ser alargado com o tempo e a complexidade progressiva das questões da cidade. Já no século IV a. C., no caso ateniense, se realizavam 40 sessões ordinárias por ano, além de se convocarem eventuais sessões extraordinárias, em situação de crise.

à pretensão da cidade. A um sinal de assentimento seu, o povo inteiro abalou do teatro: a rapaziada em demanda de Quéreas, o conselho e os magistrados a escoltarem Hermócrates25. 13. Reu-niram-se também as mulheres de Siracusa, para organizarem, até à casa do noivo, o cortejo nupcial. Cantava-se o himeneu pela cidade inteira, as ruas encheram-se de coroas e de tochas, os portais inundaram-se de vinho e perfumes. Com maior alegria se celebrou em Siracusa aquele dia do que o dia da vitória.

14. A moça, entretanto, nada sabia destes preparativos;

prostrada no leito, com o rosto escondido, chorava em silêncio.

Aproximou-se dela a ama, que lhe disse: “Minha filha, vamos a levantar, que se aproxima o dia por que todos nós mais suspirá-vamos. A cidade prepara-te o cortejo nupcial”.

“De pronto se lhe soltaram os joelhos e o coração”26; é que não fazia ideia de quem era o noivo que lhe destinavam. Logo ali ficou sem voz, um véu de trevas cobriu-lhe os olhos e pouco faltou para desmaiar. A quem a presenciava, esta reação parecia de pudor.

15. Mal que as servas a arranjaram, logo a multidão se con-centrou à porta; foi então que os pais lhe apresentaram o noivo.

Quéreas correu para ela e cobriu-a de beijos; Calírroe, ao reco-nhecer nele o homem que amava, como a chama da lamparina

25 Para mais pormenores relativos ao funcionamento da assembleia, vide Ferreira 1990: 90-98. O conselho, por seu lado, era um órgão em quem a assembleia, por falta de capacidade de resolver todas as questões por um sistema direto, delegava uma parte dos seus poderes. Embora sendo constituído de forma diversa em cada cidade, o conselho obedecia a um processo de recrutamento alargado e diversificado. Aqui vemo-lo a agir de acordo com as suas atribuições administrativas, como agente executor das decisões da assembleia. Os arcontes, por seu lado, atuavam como uma comissão de funcionários, com competências essencialmente executivas também. Mais pormenores sobre estes aspetos da administra-ção pública podem ver-se em Ferreira 1990: 98-112.

26 Citação da Ilíada 21. 114.

prestes a apagar-se que recebeu mais azeite, refulgiu, com luz maior e mais forte. 16. Assim, quando a jovem fez a sua aparição em público, o assombro apoderou-se da multidão, como quando Ártemis, em lugar solitário, aparece aos caçadores. Muitos houve até, entre os presentes, que chegaram a prosternar-se. Não faltou quem admirasse Quéreas e louvasse a felicidade de Calírroe. Mais pareciam as núpcias de Tétis, no Pélion, como as celebram os poetas. De resto, nem mesmo aqui faltou um génio malfazejo, como dizem que lá esteve também: a Discórdia27.

II. 1. Os pretendentes preteridos, perante esta união,

No documento Cáriton: Quéreas e Calírroe Autor(es): (páginas 70-74)

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