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Depois da partida das duas mulheres, o calor do beijo penetrou as entranhas de Dionísio como um veneno; nem

No documento Cáriton: Quéreas e Calírroe Autor(es): (páginas 108-113)

Cáriton

VIII. 1. Depois da partida das duas mulheres, o calor do beijo penetrou as entranhas de Dionísio como um veneno; nem

amarrada pelas atenções de que fora objeto. Para não parecer ingrata prometeu: “Também sou escrava e nem direito de falar eu tenho, mas se achas que posso ter alguma influência, estou disposta a ir lá contigo pedir. Que a sorte nos acompanhe!” 4.

Quando chegaram, Plângon disse ao porteiro para anunciar ao senhor a presença de Calírroe. Aconteceu que Dionísio estava acabrunhado de tristeza e até o corpo se lhe definhava. Ao ouvir dizer que Calírroe estava ali, ficou sem fala e a custo se recom-pôs. “Ela que entre”, ordenou. 5. Calírroe parou junto dele, de cabeça baixa, e começou por corar até à raiz dos cabelos. Com dificuldade, porém lá conseguiu dizer: “Tenho uma dívida de gratidão para com Plângon, que me trata como uma filha. Peço--te por isso, senhor, que desistas dessa irritação contra o marido dela. Por favor, concede-lhe o perdão”. Queria dizer mais qualquer coisa, mas não foi capaz. 6. Dionísio, que percebeu a artimanha de Plângon, respondeu: “Estou bem irritado com ele e ninguém me demoveu de matar Focas e Plângon pelo que fize-ram. Mas por ti, concedo-lhes de bom grado o perdão. Fiquem vocês a saber que foi graças a Calírroe que se salvaram”. Plângon abraçou-se-lhe aos joelhos, mas Dionísio aconselhou: “São os joelhos de Calírroe que devem abraçar, foi ela que vos salvou”.

7. Quando Plângon viu a alegria de Calírroe e o prazer pelo favor recebido, comentou: “Então és tu quem deve agradecer a Dionísio em nosso nome”; e, ao mesmo tempo, empurrou-a para ele. A jovem desequilibrou-se, de modo que foi esbarrar na mão de Dionísio; e ele, como se não fosse cortês estender-lhe apenas a mão, puxou-a para si e beijou-a; de seguida, largou-a logo, para evitar qualquer suspeita de uma armadilha.

VIII. 1. Depois da partida das duas mulheres, o calor do

via a grandeza de alma da mulher; inúteis também ameaças e violências, convencido como estava de que ela preferiria a morte a sujeitar-se a um ultraje. Só um recurso lhe restava: Plângon.

Por isso a mandou chamar: “A tua primeira investida foi um su-cesso. Estou-te agradecido pelo beijo. Mas esse beijo foi a minha salvação ou a minha morte. 2. Como mulher, vê como hás de dobrar outra mulher, para o que podes contar com o meu apoio.

O prémio em causa, fica a saber, é a tua liberdade ou um outro que, estou convencido, vale para ti mais que a própria liberdade:

a vida de Dionísio”.

Com estas instruções, Plângon desencadeou todo o tipo de estratégias e artifícios. Calírroe, porém, permanecia inabalável, numa fidelidade exclusiva ao seu Quéreas. 3. Mas acabou ven-cida pelo Destino, contra quem nada pode a razão humana. É um deus que gosta de desafios e dele nunca se sabe o que se pode esperar. Pois nesta ocasião montou uma trama extraordinária, melhor ainda, incrível. Vale a pena ouvir como é que foi.

4. O destino preparou um assalto à virtude daquela mulher.

Depois da primeira relação amorosa de Quéreas e Calírroe, no tempo do seu casamento, ambos punham um ardor semelhante no prazer que davam um ao outro. E esse desejo, de parte a parte, não deixou sem fruto a sua união. 5. Pouco antes da queda que sofreu, Calírroe tinha engravidado. Mas os perigos e as desgraças que sobrevieram não a deixaram perceber logo o estado em que estava. No início do terceiro mês, o ventre começou a crescer-lhe. No banho, Plângon reparou nisso, com toda a sua experiência em questões femininas. 6. Na ocasião não disse nada, por causa das servas todas que lá estavam. Mas depois à noite, com mais vagar, sentou-se na beira da cama de Calírroe e disse-lhe: “Sabes, minha filha, estás grávida”. Calír-roe desatou a chorar, a lastimar-se, a arrancar os cabelos: “Só me faltava mais essa desgraça, ó sorte, a acrescentar às outras todas,

que eu dê à luz um escravo”. 7. A bater no ventre queixava-se:

“Infeliz, antes mesmo de nasceres, já estiveste num túmulo, já passaste por mãos de ladrões. Que vida te está reservada? Que esperanças posso eu, que te trago no ventre, alimentar, órfão, sem pátria e escravo? Antes de nasceres, mais te vale morrer”.

Plângon pegou-lhe nas mãos, propondo-se preparar-lhe, para o dia seguinte, um aborto sem mais complicações.

IX. 1. Mas, uma vez sozinhas, cada uma das duas mulheres se entregou aos próprios pensamentos. Plângon pensava: “Cá está a ocasião ideal para realizares a paixão do teu senhor. Tens um bom aliado no ser que Calírroe traz no ventre. Está en-contrado um motivo convincente. Nada como o amor da mãe para vencer o pudor da mulher”. E alinhavava uma estratégia persuasiva. 2. Calírroe, entretanto, tinha momentos em que se dispunha a matar o filho, dizendo consigo: “Vou dar à luz, para um senhor, o neto de Hermócrates e gerar uma criança de que nem o pai se conhece? Quem for mal intencionado pode até di-zer: “Foi enquanto esteve com os salteadores que Calírroe ficou grávida”. 3. Para sofrer basto eu. Não te vale a pena, meu filho, vires ao mundo para seres um infeliz, e nasceres, para teres de fugir da miséria. Parte livre, sem passares pelo sofrimento. Nem queiras ouvir o que se conta sobre a tua mãe”. Depois mudava de ideias, tomada de piedade pela criança que trazia no ventre: “Es-tás decidida a matar o teu filho? És a pior das criminosas, tu que segues as pisadas de Medeia43. 4. Mas a tua atitude é, mesmo

43 Ao espírito de Calírroe, que se debate entre motivos que a levam a matar ou a poupar a vida do filho, avulta a lembrança de Medeia, a filha do rei da Cólquida, também ela símbolo mítico de um dilema semelhan-te. Abandonada pelo marido, o homem que amava e pai dos seus filhos, Medeia planeia, por suprema vingança, matar os frutos dessa união. De resto, ambas se encontram em terra estranha, o que as faz partilhar um sentimento parecido de abandono e fragilidade. Mas, para além da situa-ção, a própria fala, em que diversas razões são pesadas, lembra a famosa

assim, mais selvagem que a da cita. Ela ainda tinha no marido um inimigo, mas tu é o filho de Quéreas que queres liquidar, para apagares qualquer memória desse tão badalado casamento.

E se for um rapaz parecido com o pai? E se for mais feliz do que eu? Há-de ser a própria mãe a matar um filho salvo do túmulo e dos ladrões? 5. Quantos filhos de deuses e reis, segundo a lenda, não nasceram na escravidão e vieram a recuperar o prestígio dos pais? Veja-se Zeto, Anfíon ou Ciro44. Quem sabe navegarás, para minha salvação, meu filho, para a Sicília. Hás-de procurar o teu pai e o teu avô e contar-lhes a história da tua mãe. Será de lá enviada uma frota em meu socorro. Serás tu, meu filho, a devolver os teus pais um ao outro”. 6. Com estes pensamen-tos levou a noite inteira, mas o sono acabou por a vencer por instantes. Apareceu-lhe então a imagem de Quéreas, em tudo semelhante à real,

“era a sua estatura, a beleza dos olhos,

a voz e, a envolver-lhe o corpo, as mesmas vestes”45.

rhesis da Medeia euripidiana. Apenas o desfecho será oposto, porque o tom próprio do romance não comportaria a violência de um filicídio.

44 Zeto, Anfíon e Ciro são, todos eles, protagonistas da história tradi-cional do nascimento de um soberano, exposto e perseguido pelos seus, que virá a ocupar um trono e assim chamar a si, de forma violenta, o poder do reino que legitimamente lhe pertence. Logo após o nascimento, qualquer deles foi abandonado nas montanhas e miraculosamente salvo por um pastor, que o criou, para vir a cumprir o seu destino. Zeto e Anfíon, nascidos de uma união entre Zeus e a tebana Antíope, virão a ocupar o trono da sua cidade materna, depois de expulso o tirano que o detinha e vingada sua mãe pelas perseguições de que fora vítima por parte de familiares seus. Sobre a história de Zeto e Anfíon, vide Graves 1977:

256 sqq. Ciro, na versão consagrada por Heródoto (Histórias 1. 107-22), cumpria destino semelhante: perseguido por seu avô Astíages, rei dos Medos, que temia nele o usurpador do seu poder, Ciro viria mais tarde, quando já monarca da Pérsia, a dominar a Média e a exigir o trono de que era herdeiro, com que alargou o seu império então ainda embrionário.

45 Ilíada 23. 66-67, onde o fantasma de Pátroclo aparece a Aquiles adormecido.

Perfilada na sua frente, a aparição falou assim: “Confio-te, mulher, o nosso filho”. E preparava-se para continuar a falar, quando Calírroe, de um salto, fez menção de a abraçar. Por pensar que essa era a vontade do marido, a jovem decidiu então criar o filho.

X. 1. No dia seguinte, submeteu a Plângon, quando ela apareceu, a sua decisão. Esta não deixou de lhe frisar os incon-venientes da opção tomada: “É-te impossível, mulher, criares um filho entre nós. O nosso amo, que está apaixonado por ti, pode até não te forçar, contra tua vontade, por respeito e sentido da dignidade; mas, por ciúme, não vai consentir que cries um filho. Vai-se sentir insultado, ao ver o teu empenho por um ausente, face ao desprezo que manifestas por ele, aqui presente. 2. Acho melhor, no teu próprio interesse, que essa criança morra antes de nascer do que depois de nascida. Só tens a lucrar dores de parto inúteis e uma gravidez em vão. É como amiga que te dou estes conselhos, que são a pura verdade”.

Foi com pesar que Calírroe ouviu estas palavras; atirou-se aos pés da serva e pediu-lhe que encontrasse uma forma de ela poder criar o filho. 3. Plângon enumerou-lhe todos os contras e adiou a resposta dois ou três dias. Tanto mais Calírroe re-forçava o ardor das súplicas e redobrava de confiança. Fez-lhe então jurar que não contava a ninguém o estratagema; depois, franziu os sobrolhos, esfregou as mãos e começou: “Amiga, para grandes males, grandes remédios. Pois eu, por dedicação para contigo, vou atraiçoar o meu patrão. 4. Pensa bem, das duas uma: ou se mata a criança e pronto, ou ela vai nascer para se tornar o mais rico dos Iónios, herdeiro da casa mais ilustre que cá existe. E assim te há de fazer feliz, a ti, a mãe.

Escolhe lá, o que preferes”. “Quem seria tão estúpido”, foi a resposta, “que preferisse à felicidade a morte de um filho? No entanto, o que dizes parece-me impossível, inacreditável; tens

de me explicar tudo com mais pormenor”. 5. Ao que Plângon perguntou: “Quanto tempo de gravidez achas que tens?” “Dois meses”. “Sendo assim, o tempo está do nosso lado. Podes bem fazer crer que dás à luz, de sete meses, um filho de Dionísio”.

Perante tal proposta, Calírroe bradou: “Antes a morte!” 6. Mas Plângon com ironia respondeu-lhe: “Estás cheia de razão, se é o aborto que preferes. Vamos fazê-lo então. É menos arriscado do que enganar o senhor. Põe de lado qualquer lembrança da tua nobreza, acaba com a esperança de voltar à pátria. 7.

Contenta-te com a sorte atual e torna-te uma escrava a sério”.

Estes conselhos de Plângon não despertaram suspeitas em Calírroe, uma moça de família, sem experiência das manhas dos escravos. Mas quanto mais pressionada se sentia ao aborto, tanto mais se apiedava do filho que trazia no ventre. “Dá-me tempo para pensar”, pediu por fim. “Trata-se de uma escolha de muita responsabilidade: a minha virtude ou o meu filho”.

8. Plângon voltou a aprovar esta preocupação de não fazer uma escolha leviana: “Há razões de peso para cada uma das hipóteses. Numa pesa a lealdade da esposa, na outra o amor de mãe. Mas o momento não é para grandes demoras; amanhã, impreterivelmente, é preciso tomar uma decisão, antes que a tua gravidez se perceba”. Assim combinado, lá se separaram.

XI. 1. Calírroe subiu ao andar de cima, fechou a porta,

No documento Cáriton: Quéreas e Calírroe Autor(es): (páginas 108-113)

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