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São conduzidos os litigantes, no meio de um silêncio a que não falta apreensão. Logo de manhã Mitridates foi o

No documento Cáriton: Quéreas e Calírroe Autor(es): (páginas 161-165)

Cáriton

III. 1. Apresentaram-se a Estatira, a esposa do monarca, as mulheres dos Persas de maior distinção e uma delas disse:

7. São conduzidos os litigantes, no meio de um silêncio a que não falta apreensão. Logo de manhã Mitridates foi o

pri-meiro a chegar, escoltado por amigos e parentes, sem pompa ou circunstância, mas com um ar abatido, de quem vai prestar contas. Seguiu-se-lhe Dionísio, vestido à maneira grega, com uma túnica milésia, e com as cartas na mão. 8. Quando entra-ram, prostraram-se diante do rei. Logo este ordenou ao escrivão que lesse as cartas, a de Fárnaces e a que ele mesmo escreveu em resposta, para informar o tribunal da instrução do processo.

Lida a última carta, um grande coro de elogios se fez ouvir, a marcar o apreço pela prudência e equidade do rei. 9. Fez-se de novo silêncio e coube a Dionísio, como acusador, usar da palavra em primeiro lugar; todos os olhares se voltaram para ele.

Mas Mitridates interrompeu: “Não estou a antecipar a minha defesa, senhor, porque conheço as regras. Mas é conveniente que, antes das intervenções, compareçam todas as pessoas in-dispensáveis ao processo. Por exemplo, onde está a mulher que

64 Ilíada 4. 1.

constitui o objeto deste litígio? Tu próprio reconheceste, na tua carta, que ela era imprescindível e lhe escreveste a mandá-la vir.

E por isso ela está aí. 10. Que portanto Dionísio não esconda a essência e a causa de toda a questão”. A esta intervenção Dio-nísio respondeu: “Mesmo esse pedido é típico de um amante, que a mulher de outrem seja trazida a público contra a vontade do marido, sem ser acusação ou acusada. 11. Se ela tivesse sido seduzida, teria de comparecer para prestar contas. Mas o que realmente se passou foi que tu atentaste contra uma criatura inocente, pelo que não me vou servir da minha mulher nem como testemunha, nem como defesa. Porque é então necessário que compareça quem nada tem a ver com o processo?” Apesar de justa, a argumentação de Dionísio não convenceu ninguém.

Todos queriam ver Calírroe. 12. E como o rei sentia pejo em dar aquela ordem, os amigos serviram-se da carta por ele escrita como pretexto: a verdade é que Calírroe tinha sido convocada como pessoa indispensável ao processo. “Que sentido faz”, disse um deles, “ter vindo da Iónia e, uma vez em Babilónia, não comparecer em tribunal?” 13. Decidiu-se portanto fazer vir também Calírroe; só que Dionísio não a tinha prevenido de nada, antes lhe tinha escondido até ao fim o motivo da viagem a Babilónia. Receoso de a ver, assim de repente, levada a tribunal sem estar ao corrente da questão (era natural que ela ficasse pro-fundamente ofendida por se ver enganada), fez adiar o processo para o dia seguinte.

V. 1. Interrompeu-se então a sessão. Chegado a casa, Dio-nísio, que era um homem sensato e polido, dirigiu-se à mulher nos termos mais convincentes que arranjou e expôs-lhe todos os pormenores da questão com elegância e delicadeza. Não foi sem lágrimas que Calírroe o ouviu; ao nome de Quéreas desfez-se em pranto e acolheu muito mal a ideia do processo. 2. “Só me faltava mais essa desgraça”, lastimou-se ela, “ter de ir a tribunal.

Já morri, fui enterrada, assaltaram-me o túmulo e fui vendida como escrava. E aqui tens, ó Sorte, agora sou julgada. Não te bastou acusar-me injustamente a Quéreas, ainda foste criar em Dionísio a desconfiança de que eu o enganava. 3. Por uma calú-nia, outrora levaste-me ao sepulcro e, desta vez, ao tribunal do rei. Tornei-me numa lenda, da Ásia e da Europa. Com que cara irei enfrentar o juiz? Que palavras terei de ouvir? Beleza maldi-ta, que com um único fim me foste dada pela natureza, para me cobrires de calúnias! 4. A filha de Hermócrates vai ser julgada e não tem o pai para a defender. Toda a gente que vai a tribunal procura ganhar simpatia e favor; só eu tremo de agradar ao juiz”. 5. Abatida, passou o dia inteiro com estas lamentações e, mais do que ela, Dionísio. Chegada a noite, teve um sonho, em que se viu, ainda donzela, em Siracusa, a dirigir-se ao templo de Afrodite; à saída, via Quéreas. Era o dia do casamento: a cidade inteira coberta de grinaldas e ela levada em cortejo, pelo pai e pela mãe, para a casa do noivo. 6. Ia dar um beijo a Quéreas, quando acordou do sonho. Chamou Plângon (Dionísio já se tinha levantado antes para tratar do processo) e contou-lhe o sonho. Plângon aconselhou: “Coragem, senhora, anima-te!

Tiveste um belo sonho. Vais-te ver livre de todas as preocupa-ções. Como no sonho, assim será na realidade. 7. Dirige-te ao tribunal do rei como se fosse o templo de Afrodite. Lembra-te do que eras dantes e retoma a tua beleza de noiva”. Enquanto falava, ia vestindo e arranjando Calírroe, que sentia uma alegria espontânea invadir-lhe o coração, como se adivinhasse o que estava para acontecer.

8. Logo de manhã era uma afluência enorme em volta do palácio, as entradas, até cá fora, atravancavam-se de gente.

Todos acorriam, na aparência para assistirem ao processo, mas na realidade para verem Calírroe. Parecia-lhes que agora se superava a si própria, como antes superara as outras mulheres.

9. Ela entrou no tribunal qual Helena, como diz o divino poeta, perante os anciãos, “Príamo, Pântoo e Timeto”65; ao verem-na foi o espanto e o silêncio. “Por todos foi formulado um único voto: o de se reclinar no seu leito”66.

Se Mitridates tivesse de ser o primeiro a usar da palavra, não teria tido nem voz. Como se estivesse perante uma relíquia de amor, voltou a sentir, com mais violência, a chicotada de uma velha paixão. VI. 1. Dionísio começou assim a sua intervenção:

“Dou-te graças, senhor, pela honra que me dispensas, a mim, à honestidade e ao casamento em geral. Pois não admitiste que um simples particular fosse vítima das ciladas de um senhor poderoso. Pelo contrário, chamaste-o à tua presença, para o punires do ultraje e da insolência exercidos contra mim, de modo a prevenir casos futuros. 2. A própria qualidade de quem o cometeu exige, para este ato, um castigo exemplar. Mitrida-tes, que não era para mim um inimigo, mas um hóspede e um amigo, armou-me uma conspiração. E não era um qualquer dos meus bens que ambicionava, mas aquele que me é mais caro do que corpo e alma: a minha mulher. 3. Um homem que, em caso de qualquer agressão de que eu fosse vítima, devia acorrer em minha defesa, se não por mim, como seu amigo, ao menos por ti, como seu soberano, porque o investiste do poder supre-mo! Mas ao mostrar-se indigno desse poder, causou desonra e atraiçoou quem lhe tinha confiado a autoridade. 4. As súplicas de Mitridates, a influência que tem, as manobras de que se tem servido neste litígio - de onde resulta não nos encontrarmos em pé de igualdade -, nem a mim sequer passam despercebidas.

Mas eu confio, senhor, na tua justiça, no matrimónio e nas leis, que tu aplicas, a todos, com equidade. 5. De facto se o vais

65 Ilíada 3. 146.

66 Odisseia 1. 366, sobre o apreço dos pretendentes por Penélope.

absolver, melhor fora não o teres convocado. Até agora todos temiam, por saberem que qualquer ultraje seria punido, se fosse a tribunal. Daqui para o futuro será o desprezo pela lei, se quem for julgado na tua presença não receber castigo.

O que tenho a dizer é claro e breve. Sou o marido de Calírroe aqui presente e mesmo o pai de um filho seu. Já a não desposei donzela, porque tinha tido um primeiro marido, de nome Qué-reas, há muito falecido, cujo túmulo fica até na nossa cidade. 6.

Mitridates esteve em Mileto e viu a minha mulher, devido ao cumprimento da hospitalidade. Após o que não agiu nem como amigo, nem como homem de senso e de equilíbrio, como devem ser, segundo o teu desejo, aqueles que encarregas do governo das cidades. Bem pelo contrário, mostrou-se insolente e violento.

7. Por conhecer o bom senso e a dedicação conjugal da minha

No documento Cáriton: Quéreas e Calírroe Autor(es): (páginas 161-165)

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