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Leone, quando achou o momento oportuno, dirigiu- dirigiu--se a Dionísio nestes termos: “Já há muito que não visitas a tua

No documento Cáriton: Quéreas e Calírroe Autor(es): (páginas 99-103)

Cáriton

III. 1. Leone, quando achou o momento oportuno, dirigiu- dirigiu--se a Dionísio nestes termos: “Já há muito que não visitas a tua

propriedade à beira-mar, senhor, e todos desejam a tua presença.

Tens de ir ver os gados e as safras, agora que as colheitas estão próximas. 2. Faz uso do conforto da casa que se construiu sob as tuas ordens. Até esse teu luto se vai tornar lá mais fácil de suportar, se te distraíres com a paz do campo e a administração da quinta. E se quiseres recompensar algum boieiro ou pastor, podes-lhe dar de presente a tal mulher comprada há pouco”.

A ideia agradou a Dionísio, que marcou a partida para um determinado dia. 3. Mal que a ordem foi dada, iniciaram-se os preparativos: cocheiros ocupados com os carros, os palafreneiros com os cavalos, os marinheiros com os barcos. Convidava-se os amigos a tomarem parte na viagem e uma multidão de libertos.

De seu natural Dionísio era generoso. 4. Quando tudo ficou

pronto, foi dada ordem para que as bagagens e a maior parte da comitiva fossem por mar, enquanto os carros deviam seguir após a sua partida - por se entender que a um homem de luto não ficam bem grandes escoltas. Logo de manhã, antes que a população se desse conta, Dionísio montou a cavalo, em compa-nhia de mais quatro cavaleiros; entre eles estava Leone.

5. Enquanto Dionísio cavalgava para o campo, Calírroe, que tinha visto Afrodite em sonhos naquela noite, decidiu fazer à deusa novas orações. Estava ela em pé, numa prece, quando Dionísio saltou do cavalo e entrou no templo, à frente dos com-panheiros. Ao ruído de passos, Calírroe voltou-se para ele. Ao vê-la, o recém-chegado bradou: 6. “Sê-me propícia, Afrodite, que a tua aparição me seja benfazeja!” E preparava-se para se prostrar, quando Leone, agarrando-o, avisou: “É ela, senhor, a mulher que comprámos. Não te deixes perturbar. E tu, mulher, vem cá ao teu senhor». Calírroe, à palavra «senhor», baixou a cabeça e largou-se em pranto, porque era já tarde demais para desaprender a liberdade. Dionísio deu um toque a Leone e admoestou: 7. “Blasfemo! Falas aos deuses como se fossem homens? Dizes tu que compraste a dinheiro esta mulher? É claro que não podias encontrar o vendedor. Nunca ouviste o que Homero nos ensina:

“Os deuses, sob forma de estrangeiros vindos de longe, vigiam a insolência e a justiça humanas!”39.

Só então Calírroe ergueu a voz: “Pára de troçares de mim, a chamares deusa a quem nem a felicidade humana possui”. 8.

Quando ela falou, a voz pareceu a Dionísio divina. Era música o som que produzia, soava como uma cítara. Muito pertur-bado, envergonhado de tardar ali por mais tempo, Dionísio dirigiu-se para casa, já fulminado pela paixão. Não muito

39 Odisseia 17. 485-487.

depois chegou da cidade a comitiva e depressa a novidade se espalhou. 9. Todos ansiavam por ver a mulher, sob pretexto de adorarem Afrodite. Acanhada diante da multidão, Calírroe não sabia o que fazer. Tudo lhe era estranho, não via nem sequer a amiga Plângon, ocupada a receber o patrão. 10. O tempo foi passando e ninguém seguia para casa; deixavam--se todos ficar ali, fascinados. Leone, que percebeu o que se passava, dirigiu-se ao templo e trouxe Calírroe de volta. Ficou bem claro que é a natureza que faz os reis, como nos enxames de abelhas; pois todos a seguiam, automaticamente, como se, por mérito da beleza que possuía, a tivessem proclamado sua senhora.

IV. 1. Dirigiu-se ela para o quarto que habitualmente ocupava. Dionísio, por seu lado, continuava perturbado, mas procurava dissimular o golpe, como homem bem educado e de princípios que era. Com a intenção de não parecer aos escravos um miserável qualquer, nem um garoto aos amigos, aguentou firme todo o serão; julgava ele que disfarçava, mas o silêncio ainda o denunciava mais. Pegou num prato do jantar e ordenou:

2. “Levem este prato à estrangeira. Não lhe digam ‘vem da parte do senhor’, mas ‘vem da parte de Dionísio’”. Foi arrastando as bebidas o mais que podia. Tinha a certeza de que não ia pregar olho. Preferia portanto ficar a pé, na companhia dos amigos. 3.

Já a noite ia alta, separaram-se, sem que ele conseguisse conciliar o sono. Todo o seu ser se voltava para o templo de Afrodite, recordando cada pormenor, o rosto, o cabelo, como ela se vol-tou, como olhou, a voz, o porte, as palavras. As lágrimas, então, queimavam-no. 4. Era o combate entre a razão e a paixão que se travava. Embora inundado de desejo, como homem distinto que era, tentava dominar-se. Como quem resiste a uma vaga, levantava a cabeça e dizia para si: “Não tens vergonha, Dionísio, tu o mais distinto dos Iónios pelo valor e reputação que tens,

que sátrapas40, reis e cidades respeitam, de te comportares como um garoto? Um simples olhar e ficas apaixonado, quando ainda estás de luto, antes mesmo de deixares repousar a alma da tua infeliz esposa? 5. Foi isso que te fez vir ao campo, celebrares um casamento vestido de negro, e um casamento com uma escrava, que se calhar até nem te pertence? Nem o contrato de venda tu tens!” Mas o Amor adorava lutar contra a sensatez destas reflexões; orgulho era o que lhe pareciam aqueles escrúpulos.

Por isso, tanto mais incendiava aquele coração, todo entregue à filosofia do amor.

6. Incapaz de continuar um diálogo consigo próprio, Dionísio mandou chamar Leone. Quando o chamaram, este compreendeu logo a razão, mas fingiu que não percebia e a fazer-se surpreen-dido: “Porque é que ainda estás acordado, senhor? Será que é a saudade da tua falecida mulher que te faz de novo sofrer?” “De uma mulher, sim”, confessou Dionísio, “mas não da falecida. Para ti não tenho segredos, pela simpatia e confiança que me inspiras.

Sou um homem perdido, Leone. E a culpa é tua. 7. Introduziste uma fogueira nesta casa, e sobretudo no meu coração. E mais, perturba-me profundamente o mistério que envolve esta mulher.

Tu vens-me com a história de um traficante com asas, que não sabes nem de onde veio, nem para onde foi. Mas quem é que, possuidor de uma tal beldade, a iria vender num local isolado, e por um talento, quando ela vale os tesouros do Rei? Terá sido um deus que te pregou uma partida? 8. Pensa bem e procura recordares-te do que se passou. Quem foi que tu viste? Com quem

40 Os sátrapas funcionavam, dentro do império persa, como governa-dores de província. Apesar de gozarem de uma grande autoridade local, estavam na dependência do Grande Rei, a quem tinham de prestar contas da sua administração. Mais informação sobre a organização do império persa em satrapias pode obter-se em The Cambridge Ancient History, IV, 1988: 87-91.

é que falaste? Diz-me a verdade. O barco, não o viste?” “Ver não vi, patrão, mas ouvi falar”. “Pronto, já sei. Foi uma das Ninfas ou das Nereides que saiu das águas do mar. De facto acontece que, em certas alturas determinadas pelo Destino, até os deuses são forçados a viverem entre os homens. É isto que nos contam poetas e prosadores». 9. Dionísio deixava-se levar pelo prazer de exaltar a mulher e de a colocar num pedestal acima do comum dos mor-tais. Leone, desejoso de agradar ao patrão, ia dizendo: “Quem ela é, senhor, é coisa que nem nos deve preocupar. Vou-ta levar, se quiseres, e não te tortures como se te fosse proibido o amor”. 10.

“Não posso aceitar uma coisa dessas”, contrapôs Dionísio, “antes de saber quem a mulher é e de onde veio. Logo de manhã vamos procurar saber por ela a verdade. Não a vou chamar aqui, para não levantarmos suspeitas de qualquer violência; que o encontro seja no sítio onde a vi pela primeira vez. Que a nossa conversa decorra sob o patrocínio de Afrodite!”

V. 1. Ficou assim acordado e, no dia seguinte, Dionísio,

No documento Cáriton: Quéreas e Calírroe Autor(es): (páginas 99-103)

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