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Era opinião geral que mais valia esperar a época pro- pro-pícia à navegação e partir aos primeiros sinais de primavera

No documento Cáriton: Quéreas e Calírroe Autor(es): (páginas 127-130)

Cáriton

V. 1. Era opinião geral que mais valia esperar a época pro- pro-pícia à navegação e partir aos primeiros sinais de primavera

De facto era ainda inverno e parecia de todo impossível fazer a travessia do Iónio. Quéreas, porém, tinha pressa; pressionado pela paixão, estava disposto a fazer-se ao mar numa jangada e a deixar-se levar pelos ventos. 2. Nem tão pouco os embaixadores pretendiam adiar a partida, por deferência para com o jovem, mas sobretudo para com Hermócrates. Por isso empreenderam--se os preparativos para a viagem. Os Siracusanos enviaram então uma missão a expensas públicas, o que dava maior peso à embaixada. 3. Puseram a navegar a famosa trirreme do almi-rantado, ainda com as insígnias da vitória. Quando chegou o dia marcado para a partida, a multidão acorreu ao porto, não apenas os homens, mas mulheres e crianças também; houve, ao mesmo tempo, preces, lágrimas, soluços, exortações, temores, coragem, desespero, esperança. 4. Aríston, o pai de Quéreas, que a velhice extrema e a doença obrigavam a ser transportado, lançou-se ao pescoço do filho e, suspenso dele, repetia-lhe entre lágrimas: “A quem me confias, meu filho, velho como sou e com a morte por perto? É claro que não te voltarei a ver. 5. Espera, nem que seja meia dúzia de dias, que eu morra nos teus braços.

Faz-me o funeral e depois vai”. A mãe, por seu lado, lançou-se--lhe aos joelhos e suplicou: “Peço-te, meu filho, não me deixes aqui sozinha. Embarca na trirreme esta carga que é leve. E se

eu me tornar um peso ou um empecilho, atira-me ao mar por onde navegares”. 6. Ao dizer estas palavras, rasgou o vestido e, mostrando-lhe os seios, insistia: “Filho, respeita estes seios e tem piedade também de mim, que um dia te dei o peito que liberta de cuidados”48.

Quéreas, dilacerado com as súplicas dos pais, atirou-se do navio à água, para se matar. Assim escapava àquela alternativa:

ou não procurar Calírroe ou fazer sofrer os pais. Sem perdas de tempo, os marinheiros saltaram também, mas só com dificul-dade o retiraram da água. 7. Então Hermócrates fez dispersar a multidão e ordenou ao piloto que partisse. Deu-se também, nes-se momento, outra cena de amizade, a que não faltou elevação.

Policarmo, o companheiro de Quéreas, durante todo este tempo não foi visto entre os presentes; de resto, tinha até declarado aos pais: “Sou amigo de Quéreas, um amigo de verdade, mas não a ponto de correr tamanhos riscos com ele. Por isso, até ele partir, vou-me manter afastado”. 8. Mas quando o barco se distanciou de terra, acenou-lhes um adeus da popa, para que já o não pudessem reter.

9. Ao sair do porto, Quéreas fitou a superfície marinha e disse: “Conduz-me, ó mar, pela mesma rota por onde condu-ziste Calírroe. Suplico-te, Posídon, que ou ela volte connosco ou que eu não volte aqui sem ela. Se não conseguir recuperar a minha mulher, então prefiro partilhar a escravatura com ela”.

VI. 1. Um vento favorável impelia a trirreme, que corria, como se seguisse o sulco do barco. Em igual número de dias chegaram à lónia e atracaram no mesmo promontório, na propriedade de Dionísio. 2. Enquanto os outros, estafados da viagem, desce-ram a terra para tratarem da sua acomodação, montarem as tendas e prepararem uma refeição, Quéreas, em companhia

48 Ilíada 22. 82-83.

de Policarmo, foi dar uma volta de reconhecimento. “E agora”, disse ele, “como havemos de encontrar Calírroe? O meu maior receio é que Téron nos tenha mentido e que a coitada esteja morta. Mas se realmente foi vendida, quem é que pode saber onde? A Ásia é tão grande!” 3. Nas suas andanças, acabaram por ir ter ao templo de Afrodite. Decidiram então prestar honras à deusa; Quéreas rojou-se-lhe aos pés e orou: “Tu, senhora, foste a primeira a mostrar-me Calírroe, na tua festa. Pois cabe-te também agora devolver-ma, essa mulher que recebi como uma graça tua”. E naquele momento, ao erguer a cabeça, viu junto da deusa a efígie de Calírroe, em ouro, prenda de Dionísio.

“Fraquejaram-lhe os joelhos e o coração”49.

4. E caiu, tomado de uma vertigem. A sacerdotisa do tem-plo, que tinha estado a apreciá-lo, trouxe-lhe água e, a tentar reanimá-lo, disse: “Coragem, meu filho. Já a muitos outros a deusa atingiu também. Ela costuma fazer aparições e revelar-se sem rebuços. Esse é o sinal de uma grande felicidade. Estás a ver essa efígie em ouro? Pois essa mulher não passava de uma escrava e Afrodite fez dela a senhora de todos nós”. 5. “Quem é ela?”, perguntou Quéreas. “É a dona destas terras, meu filho, a mulher de Dionísio, o primeiro dos Iónios». Policarmo, ao ouvir aquela informação, com o seu bom senso habitual, não permitiu que Quéreas adiantasse mais conversa; agarrou-lhe num braço e levou-o lá para fora: não queria que a sua identidade fosse conhecida, antes que pudessem planear tudo em pormenor e tomar uma decisão conjunta. Na presença da sacerdotisa, 6.

Quéreas não avançou mais nada, obrigou-se a manter silêncio, sem no entanto evitar que algumas lágrimas brotassem espon-taneamente. Mas quando se viu longe, sozinho, atirou-se ao chão e bradou: “Ó mar compassivo, porque me deixaste chegar

49 Ilíada 21. 114.

são e salvo? Para, depois de uma boa viagem, eu ver Calírroe casada com outro? Não podia admitir que tal acontecesse nunca, nem mesmo depois da minha morte. 7. E agora que hei de fazer, coitado de mim? Esperava libertar-te das mãos de um senhor, confiava em que, com um resgate, convenceria quem te comprou. Mas acabo agora de descobrir que és rica, até talvez rainha. Quanto mais feliz não ficaria se te encontrasse mendiga!

Como hei de dirigir-me a Dionísio para lhe dizer: “Devolve-me a minha mulher”? Quem pode dizer tal coisa a um marido? 8.

Nem que dê de caras contigo posso abordar-te, ou até mesmo saudar-te, como é o mais normal entre compatriotas. Arrisco--me, quem sabe, a correr perigo de vida, por ser amante da minha mulher”. Perante estes lamentos, Policarmo procurava confortá-lo.

VII. 1. Entretanto Focas, o administrador de Dionísio,

No documento Cáriton: Quéreas e Calírroe Autor(es): (páginas 127-130)

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