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Quanto a Calírroe, uns eunucos encarregaram-se de a levar à presença da rainha, sem que ninguém a tivesse

No documento Cáriton: Quéreas e Calírroe Autor(es): (páginas 170-175)

Cáriton

IX. 1. Quanto a Calírroe, uns eunucos encarregaram-se de a levar à presença da rainha, sem que ninguém a tivesse

pre-venido. É que os enviados do rei não se fazem anunciar. Face a esta aparição inesperada, Estatira saltou do leito convencida de que tinha Afrodite na sua frente. A verdade é que votava à deusa uma veneração especial e, por isso, prosternou-se. 2.

O eunuco percebeu o engano e esclareceu: “Esta é Calírroe.

Foi o rei que a mandou, para que fique à tua guarda até ao julgamento”. Estatira ouviu esta mensagem com prazer; pôs de lado qualquer ressentimento feminino e mostrou-se simpática para com Calírroe, pela honra que tal incumbência representa-va. Sentia-se homenageada pela custódia que lhe era confiada.

3. Pegou-lhe na mão e disse: “Ânimo, amiga, não chores mais.

O rei é honesto. Hás de ter o marido que desejas. Depois do julgamento, o teu casamento vai fazer-se com mais dignidade.

Vai descansar agora, que estás esgotada, nota-se bem, e o teu coração está perturbado”. Foi com prazer que Calírroe ouviu a sugestão, desejosa que estava de isolamento.

4. Já deitada, quando enfim relaxou, pousou as mãos nos olhos e perguntou: “Será que vocês realmente viram Quéreas?

Aquele era o meu Quéreas, ou apenas mais uma ilusão? Pode bem ter acontecido que Mitridates, forçado pelo processo, lhe tenha evocado o fantasma. Dizem que na Pérsia feiticeiros não faltam. 5. Mas ele falou e tudo o que disse era de quem estava informado. Como conseguiu ele evitar lançar-se nos meus

braços? Acabámos por nos separar sem mesmo termos trocado um beijo». Estava ela nestas cogitações, quando ouviu o barulho de passos e vozes de mulheres. Acorriam em bando à presença da rainha, convencidas de que teriam todas as possibilidades de ver Calírroe. Mas Estatira opôs-se: «Deixemo-la sossegada, que ela não está bem. 6. Ainda temos quatro dias para a ver, para a ouvir e falar com ela”. Lá se foram embora pesarosas, mas voltaram logo no dia seguinte pela manhã. E todos os dias, rigo-rosamente, repetiu-se a cena, de modo que o palácio real estava sempre a abarrotar de gente. 7. O próprio rei vinha aos apo-sentos das mulheres com mais frequência, aparentemente para ver Estatira. Mandavam a Calírroe presentes magníficos, que ela não aceitava, vindos de quem quer que fosse. Mantinha uma atitude de mulher infeliz, vestida de preto, sem qualquer enfeite, prostrada. O que a tornava ainda mais fulgurante. Quando a rainha lhe perguntou qual era o marido que preferia, Calírroe não respondeu, limitou-se a chorar.

8. Tal era a situação de Calírroe. Por seu lado Dionísio pro-curava suportar as novas circunstâncias com dignidade, apoiado no seu equilíbrio natural e na educação cuidada que tivera. A estranheza daquela infelicidade tinha todas as condições para lhe derrubar o ânimo. 9. Sentia-se ainda mais inflamado do que em Mileto. Nos primeiros tempos da sua paixão, era apenas a beleza que o subjugava; mas entretanto muitas outras coisas vieram atear o amor que sentia, a convivência, a benção dos filhos, a ingratidão, o ciúme, mas sobretudo o imprevisto. X. 1.

De repente pôs-se a gritar repetindo vezes sem conta: Quem é esse Protesilau67 que ressuscitou para se pôr contra mim? Que

67 Protesilau, um tessálio, foi o primeiro dos Aqueus a pisar solo troiano e a arremeter contra o inimigo na invasão da cidade de Príamo;

mas também lhe coube ser o primeiro a tombar às mãos dos defensores da cidadela. A esposa de Protesilau, Laodamia, sofreu tanto com o seu

mal fiz eu a qualquer dos deuses do inferno para me ver con-frontado, como meu rival no amor, com um morto? E eu que tenho o túmulo dele! Afrodite soberana, tramaste uma cilada contra mim, tu que eu instalei na minha propriedade e a quem me não canso de fazer sacrifícios. Porque me mostraste Calírroe, se não a ias conservar em meu poder? Porque me fizeste pai, se nem marido chego a ser? 2. Ao mesmo tempo abraçava o filho e dizia-lhe, em pranto: “Pobre filho, a felicidade que eu senti pelo teu nascimento e como o acho agora inoportuno! Vejo em ti a herança da tua mãe e a recordação de um amor desgraçado. 3.

És uma criança, mas não de todo alheia ao sofrimento do teu pai. Que triste viagem viemos fazer! Quanto melhor não fora ficar em Mileto! A Babilónia foi a nossa desgraça. Deste, que foi o meu primeiro julgamento, saí derrotado e foi Mitridates que me pôs na pele do acusado. Quanto ao segundo, maior é a minha apreensão. Não que o risco seja maior, mas os anteceden-tes da questão deixam-me desesperançado. 4. Mesmo sem ter havido ainda julgamento, vejo-me separado da minha mulher e obrigado a lutar por ela contra um outro homem. E pior do que tudo o mais, não sei qual Calírroe prefere. Mas tu, meu filho, podes sabê-lo porque ela é tua mãe. Vai lá já e suplica-lhe afastamento, que, após a partida, mandou fazer, em cera, uma estátua do marido, com quem passou a partilhar o leito. Com a saudade agravada pela notícia da morte do esposo, a viúva suplicou dos deuses a graça de um último encontro, mesmo se por escassas horas. Reencarnado na está-tua, Protesilau rogou a Laodamia que não tardasse em segui-lo, pelo que, terminado o encontro, ela acedeu, pelo suicídio, a esta súplica de apai-xonado. Outra tradição dizia que o pai de Laodamia pretendia forçá-la a novo casamento, contra sua vontade; a jovem viúva passava as noites com a estátua de Protesilau, até ser descoberta por um escravo que a entreviu pela porta, em companhia do que pensou ser um amante. Descoberta a verdade, o pai mandou queimar a estátua; mas Laodamia apaixonada atirou-se às chamas e, no mesmo braseiro em que a imagem do saudoso marido se apagava, pereceu. Para mais pormenores, vide Graves 1977: I, 195 sq.

em favor do teu pai. 5. Chora, beija-a e diz-lhe: “Mãe, o meu pai ama-te”; mas sem lhe dirigires a menor censura, isso nunca.

O que achas, precetor? Será que não nos vão deixar entrar nos aposentos reais? Ó insuportável tirania! Fecham a porta ao filho que o pai envia, como seu emissário, à mãe”.

6. Até ao julgamento, Dionísio levou o tempo a travar um combate entre paixão e razão. Quanto a Quéreas, uma inquie-tação angustiante o afligia. Fingindo-se doente, pediu a Poli-carmo que acompanhasse Mitridates, como benfeitor de ambos que era. Quando ficou sozinho, fez um nó numa corda e, no momento de se pendurar, disse: “Feliz era eu se tivesse morrido, depois de subir à cruz que uma falsa acusação me preparou, no tempo em que era prisioneiro na Cária. Teria então partido des-ta vida com a ilusão de ser amado por Calírroe; enquanto agora perdi não só a vida, como aquilo que me tornava doce a morte.

7. Calírroe viu-me sem correr ao meu encontro, nem um beijo me deu. Eu, ali ao lado, e ela cheia de respeito por outro. Mas escusa de se preocupar, que eu vou-me antecipar a esse julga-mento. Recuso-me a esperar um desfecho que me traga desonra.

Reconheço que sou um triste opositor de Dionísio, estrangeiro, pobre e já um estranho. Sê feliz, mulher. Ainda te considero minha mulher, embora ames outro. Quanto a mim retiro-me, não quero perturbar o teu casamento. Que vivas na riqueza, no luxo e na opulência da Iónia. 8. Fica com o homem que prefe-res. Mas agora, que Quéreas vai estar morto de verdade, peço--te, Calírroe, um último favor. Quando eu morrer, aproxima-te do meu cadáver e, se fores capaz, verte algumas lágrimas. Esse gesto valerá para mim mais que a própria imortalidade. Depois inclina-te sobre a pedra do meu túmulo e diz, ainda que o teu marido e filho estejam a assistir: “Desta vez, Quéreas, partiste de verdade. Agora estás morto mesmo. E eu que, no tribunal do rei, era a ti que escolheria!” 9. E eu hei de ouvir-te, mulher.

Talvez até acredite em ti. E assim me darás mais prestígio aos olhos dos deuses infernais.

Ainda que, no Hades, se esquecessem os mortos, eu, mesmo lá, me hei-de recordar, minha amada, de ti68. Com estes lamentos cobria de beijos a corda. “És o meu conforto, o meu defensor. Graças a ti, a vitória é minha. Foste--me mais devotada do que Calírroe». 10. E já se erguia, passava a corda em volta do pescoço, quando surgiu Policarmo, o ami-go. Dominou Quéreas, como se fosse um louco, sem encontrar palavras para o consolar. Chegava já o dia marcado para o julgamento.

68 Ilíada 22. 389-390.

Livro VI

I. 1. Na véspera do dia em que o rei ia decidir se Calírroe

No documento Cáriton: Quéreas e Calírroe Autor(es): (páginas 170-175)

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