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Ficou assim acordado e, no dia seguinte, Dionísio, acompanhado dos amigos, dos libertos e dos mais fiéis dos seus

No documento Cáriton: Quéreas e Calírroe Autor(es): (páginas 103-108)

Cáriton

V. 1. Ficou assim acordado e, no dia seguinte, Dionísio, acompanhado dos amigos, dos libertos e dos mais fiéis dos seus

é que falaste? Diz-me a verdade. O barco, não o viste?” “Ver não vi, patrão, mas ouvi falar”. “Pronto, já sei. Foi uma das Ninfas ou das Nereides que saiu das águas do mar. De facto acontece que, em certas alturas determinadas pelo Destino, até os deuses são forçados a viverem entre os homens. É isto que nos contam poetas e prosadores». 9. Dionísio deixava-se levar pelo prazer de exaltar a mulher e de a colocar num pedestal acima do comum dos mor-tais. Leone, desejoso de agradar ao patrão, ia dizendo: “Quem ela é, senhor, é coisa que nem nos deve preocupar. Vou-ta levar, se quiseres, e não te tortures como se te fosse proibido o amor”. 10.

“Não posso aceitar uma coisa dessas”, contrapôs Dionísio, “antes de saber quem a mulher é e de onde veio. Logo de manhã vamos procurar saber por ela a verdade. Não a vou chamar aqui, para não levantarmos suspeitas de qualquer violência; que o encontro seja no sítio onde a vi pela primeira vez. Que a nossa conversa decorra sob o patrocínio de Afrodite!”

V. 1. Ficou assim acordado e, no dia seguinte, Dionísio,

Foi longo o silêncio que se fez, só tarde e a custo Dionísio ergueu a voz: “Tudo o que me diz respeito, mulher, é claro para ti. Sou Dionísio, o primeiro cidadão de Mileto e por assim dizer de toda a Iónia, conhecido pela piedade e compreensão humana que pratico. 5. É portanto justo que também tu nos contes a ver-dade no que te toca. Quem te vendeu disse que eras de Síbaris e que terias sido vendida, numa crise de ciúmes, pela tua senhora».

Calírroe fez-se vermelha, baixou a cabeça e disse em voz branda:

«É esta a primeira vez que me venderam. E Síbaris, nunca lá estive». 6. “Eu não te dizia”, exclamou Dionísio voltando-se para Leone, “que ela não é escrava? Calculo mesmo que seja de origem nobre. Conta-me então todos os pormenores, mulher, a começar pelo teu nome”. “Calírroe”, respondeu ela (e até o nome agradou a Dionísio), e a seguir calou-se. Mas perante a in-sistência dele, a jovem suplicou: “Por favor, senhor, permite-me que guarde segredo sobre o meu destino. 7. Sonho e lenda, é o que é o meu passado; agora sou aquilo em que me tornei, escrava e estrangeira”. Ao dizer estas palavras bem procurava disfarçar, mas as lágrimas corriam-lhe pelas faces. Também Dionísio não pôde impedir-se de chorar, bem como todos os que pre-senciavam a cena. Mesmo Afrodite parecia ter assumido uma expressão mais triste. Dionísio, cada vez mais curioso, insistia:

“É este o primeiro favor que te peço. 8. Conta-me a tua história, Calírroe. Não é a um estranho que vais falar. Existe entre nós uma afinidade de caráter. Não tenhas receio, nem mesmo que tenhas cometido qualquer crime”. Perante esta suspeita, Calírroe sentiu-se beliscada: “Não me insultes, não tenho nada de repro-vável a pesar-me na consciência. 9. Mas como há mais distinção na minha origem do que na situação em que me encontro, não quero dar-me ares de presumida, nem pôr-me a contar histórias fantásticas a um auditório desprevenido. O testemunho do meu passado contradiz a minha existência atual”. Dionísio estava

maravilhado com o bom-senso da jovem: “Já estou a perceber”, disse ele, “nem que não fales. Mas fala, mesmo assim. Nada do que possas dizer a teu respeito será mais espantoso do que o que nos salta à vista. 10. Qualquer história, por fantástica que seja, ficará aquém da tua pessoa”. Finalmente Calírroe, não sem custo, lá começou o seu relato: “Sou filha de Hermócrates, o general de Siracusa. Quando perdi a fala em consequência de uma queda inesperada, os meus pais sepultaram-me com toda a pompa. Os arrombadores de sepulturas abriram o túmulo e encontraram-me a voltar à vida. Trouxeram-me para cá e Téron, num lugar isolado, entregou-me a Leone aqui presente”. 11.

Contou tudo, omitindo apenas qualquer referência a Quéreas.

“Mas peço-te, Dionísio (tu que és grego, de uma cidade com princípios humanísticos e educado), que não procedas como os violadores de túmulos: não me mantenhas afastada da pátria e da família. Para um homem rico como tu, pouca importância tem libertar um escravo. Nem o valor que pagaste por mim vais perder, se me entregares ao meu pai. Hermócrates não é homem para ficar a dever favores. Todos admiramos Alcínoo41 e sentimos simpatia por ele, que conduziu, de regresso à pátria, o seu suplicante. Também eu te suplico. Salva uma cativa, que é orfã. 12. Se não posso viver como uma mulher de condição nobre, prefiro morrer em liberdade”. Perante estas palavras, Dionísio chorava, na aparência por Calírroe, em realidade por si próprio. Bem sabia que a paixão que o dominava se lhe que-brava nas mãos. “Tem calma, Calírroe, anima-te. Não vais ver

41Alcínoo, o rei dos Feaces, cuja hospitalidade e receção a Ulisses náufrago ocupam os cantos VII-XIII da Odisseia, tornou-se paradigma da simpatia e generosidade para com um suplicante em perigo. Depois de receber Ulisses no seu palácio, de o mimosear com acolhimento e presentes generosos e de se comover com o relato das suas aventuras, concedeu-lhe um barco e uma equipagem, que o conduziram de regresso a Ítaca.

recusado o teu pedido - que Afrodite seja minha testemunha.

Entretanto terás, entre nós, um tratamento mais de senhora do que de escrava”. VI. 1. Ela saiu dali convencida de que nada lhe aconteceria contra sua vontade, enquanto Dionísio regressava, amargurado, aos seus aposentos.

Chamou então Leone, em particular, e comunicou-lhe:

“Tenho todos os motivos para me considerar um infeliz e perse-guido pelo Amor. A minha mulher enterrei-a e escapa-se-me esta, acabada de comprar, que eu tinha esperança que fosse uma graça de Afrodite. Uma mulher que me prometia uma vida mais feliz do que a de Menelau, o marido da espartana. Pois nem Helena, imagino eu, era tão formosa42. Além da sedução das palavras que profere. 2. Sou um homem liquidado. No dia em que Calírroe deixar esta terra, eu deixo a vida”. Leone reagiu logo: “Isso não, senhor, nada de maldições contra ti próprio. O amo és tu, tens a existência dela na mão, de modo que, com vontade ou sem ela, terá de fazer o que tu decidires. De resto paguei por ela um talento”. 3. “Compraste-a, desgraçado? Uma mulher de condição nobre? Não ouves falar de Hermócrates, general de toda a Sicília, uma figura por demais conhecida, que o rei dos Persas admira e estima e a quem manda, todos os anos, presentes, por ter vencido, em batalha naval, os Atenienses, inimigos dos Persas? E vou eu exercer tirania sobre uma criatura livre, eu Dionísio, elogiado pela moderação, vou violentar, contra sua vontade, uma mulher, que nem Téron, o salteador, ousaria violentar?!” 4. Foram estas obser-vações que fez a Leone, sem, no entanto, desanimar de convencer Calírroe. O Amor é, por natureza, otimista, confia nas atenções para obter o que pretende.

42 Dionísio retoma os exemplos da tradição épica, agora Helena e Menelau, como símbolo do casal a quem a beleza sedutora da mulher não garantiu, apesar das aparências, a esperada felicidade.

Mandou chamar Plângon e disse-lhe: “Tens-me dado sobe-jas provas da tua dedicação. Por isso te vou encarregar do maior e mais precioso dos meus bens, a estrangeira. Quero que lhe não falte nada, que seja mesmo rodeada de luxo. 5. Considera--a a tua senhora, cuida dela, trata de a arranjar, conquista-lhe, para nós, o afeto. Vai fazendo, diante dela, o meu elogio sem-pre que puderes, conta-lhe aquelas histórias que sabes contar.

Toma cuidado para não dizeres ‘o patrão’”. Plângon percebeu as instruções que lhe davam, mulher de seu natural diligente como era. Sem dar nas vistas, tomou a peito o assunto, com um empenho constante. Pôs-se à disposição de Calírroe, sem lhe dar a perceber que a atendia para cumprir ordens, antes lhe mostrando uma dedicação de amiga. Pretendia, com os seus conselhos, ganhar-lhe a confiança.

VII. 1. Entretanto eis o que aconteceu. Dionísio permanecia na sua propriedade, com um pretexto ou outro, mas na realida-de por não conseguir afastar-se realida-de Calírroe, nem querer levá--la consigo. A simples aparição bastaria para a tornar célebre, a beleza que possuía ia subjugar a Iónia inteira, o eco da sua fama havia de chegar até mesmo ao Grande Rei. 2. Durante a estadia, ia-se informando com grande minúcia do estado dos seus assuntos e chegou até a censurar a gestão de Focas, seu procurador. Censura que, de resto, não foi muito longe, porque não passou de palavras. Plângon encontrou aí, porém, o pretex-to de que precisava: correu espavorida ao encontro de Calírroe, de cabelos desgrenhados, abraçou-lhe os joelhos e bradou: “Por favor, senhora, salva-nos. Dionísio está furioso com o meu marido. Por feitio é tão violento, quanto sabe ser compreensivo.

3. Ninguém nos pode salvar, a não seres tu. Mas a ti Dionísio vai conceder com gosto esse favor, que é o primeiro que lhe pedes”. Calírroe hesitava em dirigir-se a Dionísio; mas perante a insistência do pedido, não pôde recusar, tanto mais que se sentia

amarrada pelas atenções de que fora objeto. Para não parecer ingrata prometeu: “Também sou escrava e nem direito de falar eu tenho, mas se achas que posso ter alguma influência, estou disposta a ir lá contigo pedir. Que a sorte nos acompanhe!” 4.

Quando chegaram, Plângon disse ao porteiro para anunciar ao senhor a presença de Calírroe. Aconteceu que Dionísio estava acabrunhado de tristeza e até o corpo se lhe definhava. Ao ouvir dizer que Calírroe estava ali, ficou sem fala e a custo se recom-pôs. “Ela que entre”, ordenou. 5. Calírroe parou junto dele, de cabeça baixa, e começou por corar até à raiz dos cabelos. Com dificuldade, porém lá conseguiu dizer: “Tenho uma dívida de gratidão para com Plângon, que me trata como uma filha. Peço--te por isso, senhor, que desistas dessa irritação contra o marido dela. Por favor, concede-lhe o perdão”. Queria dizer mais qualquer coisa, mas não foi capaz. 6. Dionísio, que percebeu a artimanha de Plângon, respondeu: “Estou bem irritado com ele e ninguém me demoveu de matar Focas e Plângon pelo que fize-ram. Mas por ti, concedo-lhes de bom grado o perdão. Fiquem vocês a saber que foi graças a Calírroe que se salvaram”. Plângon abraçou-se-lhe aos joelhos, mas Dionísio aconselhou: “São os joelhos de Calírroe que devem abraçar, foi ela que vos salvou”.

7. Quando Plângon viu a alegria de Calírroe e o prazer pelo favor recebido, comentou: “Então és tu quem deve agradecer a Dionísio em nosso nome”; e, ao mesmo tempo, empurrou-a para ele. A jovem desequilibrou-se, de modo que foi esbarrar na mão de Dionísio; e ele, como se não fosse cortês estender-lhe apenas a mão, puxou-a para si e beijou-a; de seguida, largou-a logo, para evitar qualquer suspeita de uma armadilha.

VIII. 1. Depois da partida das duas mulheres, o calor do

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