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A trirreme que transportava Quéreas topou com o barco, que andava à deriva; primeiro mantiveram-se ao largo, por

No documento Cáriton: Quéreas e Calírroe Autor(es): (páginas 122-125)

Cáriton

III. 1. Os arrombadores de túmulos tinham fechado o jazi- jazi-go sem qualquer cuidado, com pressa de aproveitarem a noite

13. A trirreme que transportava Quéreas topou com o barco, que andava à deriva; primeiro mantiveram-se ao largo, por

pensa-rem que era uma embarcação de piratas. Mas quando perceberam que navegava sem piloto, levada ao acaso pelo embate das ondas, alguém gritou da trirreme: “Não tem tripulação. Não precisamos

de ter medo. Aproximemo-nos para investigarmos este caso es-tranho”. 14. O piloto concordou. Quéreas, no fundo do navio, de rosto velado chorava. Quando se aproximaram, chamaram primeiro pelos ocupantes. Mas como ninguém respondesse, um homem saltou da trirreme para o barco, onde nada mais viu senão ouro e cadáveres. Fez o seu relato aos marinheiros. A notícia dei-xou-os felizes, por julgarem que tinham encontrado um tesouro no mar. 15. Perante o alarido, Quéreas tratou de averiguar-lhe a causa. Depois de o informarem, quis ver com os próprios olhos o achado. Ao reconhecer as oferendas fúnebres, rasgou as vestes e com voz forte, que ressoou ao longe, gritou: “Ai de mim, Calírroe!

Estas são as tuas oferendas; a coroa, que eu próprio te pus na cabeça, este aqui, um presente do teu pai, aquele outro da tua mãe; e aqui está o vestido de noiva. O teu sepulcro foi afinal este navio. 16. O que te pertence estou a vê-lo, mas tu, onde estás? Das oferendas só falta a morta”. Téron, que ouvia estas lamentações, jazia como se fosse também cadáver, e de facto estava semimorto.

Por largo tempo decidiu não soltar um único som nem se mexer.

Pois o que lhe aconteceria não era difícil de adivinhar. Só que o ser humano tem o instinto natural da sobrevivência e, nem nas piores circunstâncias, perde a esperança numa mudança para melhor. O deus que nos criou implantou, em todos, esta ilusão, para que o homem não escape à desgraça. 17. Enfim, sob o domínio da sede, lá soltou primeiro esta palavra: “Água”. Depois de lha trazerem e de o rodearem de todos os cuidados, Quéreas veio sentar-se junto dele e perguntou-lhe: “Quem são vocês? Para onde se dirigem?

Onde arranjaram esta carga? Que fizeram vocês da dona dela?”

Téron não se esqueceu da sua malícia natural e respondeu: «Sou cretense, em viagem para a Iónia. Procuro o meu irmão que anda em campanha. 18. Fui abandonado pela tripulação do barco em Cefalénia, de onde rapidamente se fizeram ao largo. Embarquei então neste navio que, por feliz acaso, navegava por ali. Mas a

força dos ventos desviou-nos para este mar. Depois fez-se uma tal calmaria, que todos morreram de sede; só eu me salvei graças à minha piedade”. Ao ouvir esta história, Quéreas mandou amarrar o barco à trirreme, até atingirem os portos de Siracusa.

IV. 1. Precedeu-os a Fama, que é por natureza veloz, apressa-da em comunicar toapressa-das estas noviapressa-dades extraordinárias. Todos acorreram por isso à beira-mar; assistia-se à manifestação dos sentimentos mais variados: lágrimas, espanto, curiosidade, desconfiança. O inesperado da história deixara-os abalados.

2. Depois de ver as oferendas, a mãe de Calírroe largou-se em lamentações: “Reconheço tudo. Só faltas tu, minha filha. Que comportamento estranho o destes violadores de túmulos! Guar-daram as vestes e o ouro e só roubaram a minha filha”. A costa e os portos ressoavam com os golpes que as mulheres se infligiam, inundando terra e mar de gemidos. 3. Hermócrates declarou, com todo o seu poder de comando e experiência: “Não é aqui que se deve investigar. Convém fazer uma indagação mais de acordo com a lei. Vamos à assembleia. Quem sabe se não haverá até necessidade de juízes?”

4. Mal tais palavras eram ditas e já o teatro estava repleto.

Naquela reunião participaram até as mulheres. Os ânimos populares estavam exaltados; Quéreas foi o primeiro que avançou para falar, vestido de negro, pálido, enxovalhado, como no dia em que levou a mulher a sepultar. Não quis subir à tribuna, mas, de pé cá em baixo, chorou primeiro durante longo tempo, incapaz de pronunciar uma palavra, mau grado os esforços que fazia.

A multidão gritava: “Vamos, coragem! Fala!” 5. Por fim, com dificuldade, lá levantou os olhos e disse: “Este não é momento para discursos, mas para luto. No entanto, o mesmo dever me obriga a falar e a viver, até que desvende o desaparecimento de Calírroe. Foi esse o motivo por que parti daqui e realizei uma viagem que não sei se foi feliz ou infeliz. 6. Vimos um barco

à deriva em águas calmas, cheio de uma tempestade interior e submerso em calmaria. Surpreendidos, aproximámo-nos. Julguei que estava a ver o túmulo da minha pobre mulher, com tudo que lhe pertencia, menos ela. Cadáveres havia-os ali aos montes, mas todos de gente estranha. Este indivíduo encontrámo-lo no meio deles, semimorto. À força de cuidados, reanimei-o para o trazer à vossa presença”. 7. Entretanto, funcionários do estado conduziam Téron para o teatro, amarrado, seguido de uma escolta muito adequada a ele. Acompanhavam-no de facto uma roda, um cavalete, o fogo e os chicotes; era a Providência que lhe retribuía o prémio das suas façanhas. 8. Logo que chegou à presença dos magistrados, um deles interrogou-o: “Quem és tu?”

“Demétrio”. “De onde vens?” “De Creta”. “O que tens a dizer?”

“Navegava eu para a Iónia, ao encontro do meu irmão, quando fui abandonado pelo barco em que seguia; depois vim a embarcar num navio que passava por ali. Na altura depreendi que se tratava de comerciantes, mas agora vejo que eram violadores de túmulos.

9. Andámos no mar tempos sem fim, todos os outros morreram

No documento Cáriton: Quéreas e Calírroe Autor(es): (páginas 122-125)

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