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Alguns significados de cor, condição e profissão

Uma vez enunciado que o item cor era um dos componentes que infor- mava o critério de escolha dos empregadores, é importante saber alguns dos sentidos de determinados termos que compunham este juízo crítico. De acordo com Sheila de Castro Faria, os critérios de cor no Brasil foram

extremamente elásticos. Termos como “negro”, “preto”, “pardo”, “mulato”

e “cabra” tiveram vários sentidos que foram utilizados para designar in- divíduos dependendo da época e da região. Sendo seus significados in- formados, sobretudo até a primeira metade do século XIX, pela condição

jurídica, e não preferencialmente pela cor da pele.50

Interpretando a condição social como representação que separava e definia os indivíduos segundo a sua situação jurídica – livre, liberto ou escravo –, procurarei seguir de perto as argumentações de Faria. Segundo verifica a pesquisadora em suas análises sobre as relações escravistas na sociedade brasileira do período anterior a 1850, as hierarquias se es- truturavam menos em torno da cor da pele do que da condição social. Ressalta que os termos designadores da cor/condição tinham operacio- nalidade para demarcar diferenças entre os mundos de livres e escravos. Eram chaves de leitura das etiquetas que diferenciavam as duas realida- des. Por exemplo, os termos “negro”, “preto” e “crioulo” eram operados sobretudo no mundo dos escravos. O termo “negro” agregava sentidos que remetiam essencialmente a experiência da escravidão, podia ser as- sim percebido e se perceber aquele indivíduo como cativo, nunca um li-

berto ou livre.51 Sentidos análogos foram percebidos em relação ao termo

“crioulo”: segundo Sheila de Castro Faria, designaria o escravo nascido no Brasil. Entretanto, os termos “preto” e “crioulo” marcariam, também, efe- tivas diferenças de origem de nascimento; referiam-se, respectivamente, ao africano e à sua descendência. Sendo chamados crioulos os filhos de africanos nascidos no Brasil, independentemente da cor de sua pele e de

sua condição social.52

50 Em sua análise, a autora examina registros paroquiais de batismo, casamentos e óbitos de livres e

libertos, mapeamentos populacionais por domicílios e testamentos e inventários post-mortem de forros em diferentes regiões brasileiras (Faria Sheila de Castro. Cotidiano do negro no Brasil escra- vista. In: ANDRÉS-GALLEGO, José (Org.). Tres grandes cuestiones de la historia de iberoamérica. v. 1. Madrid: Fundación Mapfre Tavera: Fundación Ignacio Larremendi, 2005. v. 1, p. 1-163).

51 Observação que pode causar estranhamento aos que aderiram à apropriação e ressignificação do

termo feita pelo movimento negro que, no afã de atribuir “empoderamento” a este conjunto da população, classifica como negros o somatório da população preta e parda no Brasil.

52 Segundo Hebe M. Mattos, “a designação ‘crioulo’ era exclusiva de escravos e forros nascidos no

Brasil e o significante preto, até a primeira metade do século, era referido preferencialmente aos africanos. A designação de ‘negro’ era mais rara e, sem dúvida, guardava uma componente racial, quando aparecia nos censos da época, qualificando a população livre” (MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudoeste escravista – Brasil século XIX. Rio de Ja- neiro: Arquivo Nacional, 1995. p. 30). Neste trabalho, temporalmente situado na segunda metade do século XIX, utilizo o termo “crioulo” no sentido mais abrangente, designando subsequentes gerações de descendentes de africanos nascidos no Brasil.

Movendo-se em direção aos mundos dos livres, o termo ‘pardo’ desig- naria preferencialmente os filhos de mães libertas. Não traduzia a priori uma possível mestiçagem, antes marcava distanciamento da experiência escrava e africana. A designação criava uma condição social intermediá- ria entre os dois mundos. Pardo designaria aos que não eram africano ou

crioulo na escravidão, e aos filhos dos alforriados, na liberdade,53 ou um não

branco que não vivenciou a experiência do cativeiro na interpretação de Hebe Mattos. Segundo esta,

A designação de ‘pardo’ era usada, antes, como forma de registrar uma diferenciação social, variável conforme o caso, na condição mais geral de não-branco. Assim, todo escravo descendentes de homem livre (branco) tornava-se pardo, bem como todo homem nascido livre, que trouxesse a marca de sua ascendência africana – fosse mestiço ou não.54

Faria observou ainda que a designação “forro”, alcunha daqueles in- divíduos que haviam alcançado a liberdade, sendo agregada à de “pardo” por casais africanos, proprietários de escravos, que almejavam suas crias distanciadas das experiências do cativeiro, denominando-as de “pardos forros”. Mesmo o termo “branco” não tinha sentido em si mesmo, mas significados de liberdade. Por ostentar esta condição, vários filhos de indi- víduos livres teriam assim sido assentados nos registros de batismo ainda que a cor de sua pele não fosse condizente. Em resumo: “a cor da pele, o passado escravo ou sua descendência e a propriedade de escravos tiveram

de se organizar para fazer uma pessoa branca, negra ou parda”.55

Ponderando que esses eram códigos também entendidos pelos em- pregadores, ou que pelo menos estas noções ainda estavam presentes no imaginário social do Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX, po- demos rever, nestes termos, outros sentidos para os critérios de escolha da mão de obra observados no Jornal do Commercio. Antes, porém, veja- mos algumas das consequências do “reflexo da nova conjuntura” observa- das por Sheila Castro Faria que resultaram em mutações na qualificação por cor/condição.

Ancorada nas análises sobre as “cores do silêncio” de Hebe M. Mattos,56

Faria argumenta que o critério cor/condição perdeu muito dos seus sen- tidos nos anos finais da escravidão. A conjunção de circunstâncias – o au- mento gradativo no número de alforrias e a impossibilidade de se adquirir escravos devido à alta do seu valor de compra – rearranjou as designações 53 Faria Sheila de Castro. Cotidiano do negro no Brasil escravista. In: ANDRÉS-GALLEGO, José

(Org.). Tres grandes cuestiones de la historia de iberoamérica. v. 1. Madrid: Fundación Mapfre Tavera: Fundación Ignacio Larremendi, 2005. p. 66.

54 MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudoeste escravista -

Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995. p. 30.

55 Faria Sheila de Castro, ibidem, p. 73. 56 MATTOS, ibidem.

das categorias de status. Aqueles critérios baseados menos na cor do que na condição social não davam mais conta das diferenciações sociais. Sobressai dessas análises a fragilidade da identidade branca que perdia a supremacia no que diz respeito a dar significado à acepção de liberdade, que por sua vez não era mais embasada pela identidade senhorial. Assim,

o silêncio sobre a cor/condição, tanto de brancos quantos de negros e mes- tiços libertos, significou que a liberdade não era mais somente branca e que a propriedade de escravos, cada vez mais restrita a um pequeno grupo, não era mais um objetivo a ser esperado.57

Engendrando novos campos de sentidos para “além da escravidão”, outros significados estavam sendo produzidos e se organizavam em torno das relações de trabalho livre e assalariado. O que possibilita inferir que, para as classes trabalhadoras despossuídas, sobretudo de títulos honorífi- cos legais ou informais, as qualificações profissionais despontariam como recursos diferenciadores dos lugares ocupados pelo indivíduo nos mun-

dos do trabalho, designando status sociais.58

Voltando então para os anúncios de “procura-se” nas páginas do Jornal

do Commercio, uma coisa chamou a atenção na análise do mês de janeiro

de 1873: o fato de que, entre a totalidade de 3.554 anúncios analisados, os que informavam a preferência por diversas categorias socioprofissio- nais, não necessariamente especializadas – 1.161 dos casos (32,7%), so- mente uma ínfima parcela dos recrutadores fizeram referência à cor do procurado: 37 casos. As ocorrências podem ser destacadas: caixeiro (1), chacareiro (2), cigarreiro (1), colchoeiro (2), copeiro (10), costureira (16), feitor (1), trabalhador de masseira (1) e vendedor (2). Nenhum outro dos 1.124 anúncios que procuravam por mão de obra especializada ou semies- pecializada mencionava a cor do procurado. Diferentemente dos casos em que não se exigia especialização alguma, como por exemplos, criados e diversas atividades executadas no âmbito doméstico. Nesses casos, ainda que sobressaísse a exigência de qualificação, são utilizados vários crité- rios definidores da escolha. Ou seja, cor, condição e nacionalidade ten- dem a influir na decisão de empregar um indivíduo nas atividades não especializadas.

57 FARIA Sheila de Castro. Cotidiano do negro no Brasil escravista. In: ANDRÉS-GALLEGO, José

(Org.). Tres grandes cuestiones de la historia de iberoamérica. v. 1. Madrid: Fundación Mapfre Tavera: Fundación Ignacio Larremendi, 2005.

58 Este rearranjo de sentido é observado por Hebe Mattos no que se refere à identidade socioprofis-

sional dos homens livres proprietários de lavouras, feitorias e escravos em oposição aos cativos, segundo a historiadora nas regiões por ela pesquisada, após 1850, “a qualificação socioprofissional começa a tornar-se designadora de status social (além, obviamente, dos títulos honorários legais ou informais, como ‘comendador’, patentes da Guarda Nacional, dona e outros), desconstruindo- -se a igualdade que o ‘viver de’ emprestava” (MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os signi- ficados da liberdade no sudoeste escravista - Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995. p. 96).

Os dados poderiam apontar para uma “democracia racial” no topo da hierarquia socioprofissional, no caso desta amostra, se não fossem in- terpretados à luz das análises esboçadas anteriormente. Tudo indica que os indivíduos com qualificação profissional já começariam a se perceber como uma categoria que se diferenciava por suas habilidades manuais e assim seriam reconhecidos na sociedade. Daí a não referência a cor da pele ou condição para recrutá-los – sendo a especialização o critério defi- nidor de sua distinção.

No entanto, se as designações socioprofissionais indicavam prestígio social naquele contexto, também escamoteavam as classificações raciais e mesmo as condições sociais dos indivíduos que comporiam as classes tra- balhadoras daquela sociedade. Os trabalhadores com especialização com- partilhavam experiências com outros recrutados “livremente” através dos anúncios e, que recebiam outras designações antes de serem reconhecidos socialmente pelas suas habilidades profissionais. Nos anúncios eram de- nominados “moços”, “homens”, “trabalhadores”, “pequenos”, “meninos”, “pessoas” e, constituem 16% do total (528 casos). São trabalhadores que muito provavelmente representariam a composição social da população urbana do Rio de Janeiro e que aprenderiam o ofício na prática, obser- vando os mais qualificados, representantes também daquela composição social. São exemplos destes tipos de anúncios:

Precisa-se de aprendizes para ofício de chapéus de sol, moços de 14 a 18 anos, que de fiador a sua conduta, pagando-lhes ordenados; na Rua da Quitanda, n. 114.(1873)

Precisa-se de dois aprendizes de funileiro que já trabalham, ou mesmo que nada saibam, na Rua da Princesa dos Cajueiros n. 1 – loja. (1873)

Precisa-se de um menino, dos últimos chegados, para aprender o ofício de ferreiro; na Rua Nova do Livramento, n. 56. (1873)

Precisa-se de uma pessoa que saiba ou queira aprender a trabalhar em coletes de homem, e também se anime a coser em máquina, na Rua da Imperatriz. 35, sótão.59 (1873)

“Querer aprender”, “animar-se” em aprender, também atenderia às necessidades dos novos arranjos organizados em torno das relações de

trabalho. Os homens e mulheres60 proprietários de estabelecimentos ma-

nufatureiros, fabris e industriais, providenciavam meios de qualificarem a mão de obra necessária às suas demandas. Afinal, muito provavelmente ocorreu no Rio de Janeiro o que Marcelo Mac Cord observou nas suas aná- lises para o Recife do Oitocentos, onde não verificou “contundentes ini- ciativas oficiais que substituíssem processos de aprendizagem das ditas 59 Jornal do Commercio, 3/1/1873, 19/1/1873/ 22/1/1873 e 30/1/1873, respectivamente.

60 Foram localizados nos anúncios endereços de oficinas de costuras com nomes de algumas “mada-

‘artes mecânicas’”, ficando as medidas desta ordem “somente no campo

das ideias”.61

A utilização de categorias profissionais na hierarquização das relações sociais de trabalho, enquanto designadoras de status, não se deu somente no que alguns historiadores chamariam de “atividades de porta a fora”,

nas “atividades de porta adentro”,62 naquelas realizadas no âmbito do-

méstico, esta diferenciação também foi operada. O termo “criado” que de acordo com Olívia Maria Gomes da Cunha, encobria as mais diversas

modalidades e relações de trabalho,63 foi ressignificado para dar conta de

nomear aqueles trabalhadores que não necessariamente executavam ati- vidades domésticas, mas que trabalhavam na “órbita” do lar, recebendo para isto um salário. Ou seja: estando as categorias de trabalho se mo- vendo em direção à designação de status; tendo aumentado o número de trabalhadores que realizavam atividades remuneradas de “porta adentro” (mesmo na condição de cativos), os legisladores representantes do poder público, que percebiam as mudanças conjunturais nas relações sociais de trabalho, interfeririam nas relações intermediárias entre privado e públi- co. Em Santa Catarina, por exemplo, em 8 de junho de 1883 foi decretado o seguinte:

É considerado criado ou criada, para todos os efeitos desta postura quem quer que, sendo de condição livre ou escrava, tiver ou tomar, mediante salário, a ocupação de moço de hotel, casa de pasto e hospedaria, ou de co- zinheiro, copeiro, cocheiro, hortelão, ou de ama de leite, ama seca, lacaio, e, em geral, o de qualquer serviço domestico.64

O assalariamento no plano doméstico, ainda que as atividades como cocheiro, moço de hotel, casa de pasto e hospedaria aparentem atividades além da domiciliar, seria a referencialidade desta que agora seria oficial- mente reconhecida como uma nova categoria de trabalho. O fato de ser uma categoria que nomeava trabalhadores do mundo de trabalho escravo e livre, pode ser esclarecedor de ser esta a que mais aparece entre as pro- curadas numa sociedade que traz ambiguidades diversas nas suas relações de trabalho. Na amostra do mês de janeiro de 1873, que vem sendo mais explorada neste trabalho, dez anos antes do Decreto-lei 1.039, de Santa 61 Mac Cord, Marcelo. Andaimes, casacas, tijolos e livros: uma associação de artífices no Recife, 1836-

1880. Tese (Doutorado)–Programa de Pós-Graduação em História, Universidade de Campinas, Campinas, SP, 2009. p. 13

62 As atividades realizadas no âmbito doméstico eram em alguns casos assim denominadas, a exem-

plo do anúncio de 22/1/1873: “Precisa-se de uma negrinha de 14 a 16 anos para o serviço de portas adentro, na Rua da Assembléia n. 64, sobrado”.

63 Cunha, Olívia Maria Gomes. Criadas para servir: domesticidade, intimidade e retribuição. In:

CUNHA, Olívia Maria Gomes; GOMES, Flávio dos Santos (Org.). Quase cidadão: história e antro- pologias da pós-emancipação no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2007. p. 379-380.

64 Lei n. 1039 de 8 de junho de 1883. Legislação. Decretos, leis e resoluções. Caixa 04. Centro de

Catarina, criadas e criados representariam mais de 20,% da amostra. Neste curto período são publicados 709 anúncios. Confirmando nestes casos a diversidade das preferências e/ou a necessidade dos donos dos estabelecimentos ou domicílios, 58% dos anúncios especificam a prefe- rência no que se refere também à cor, condição, nacionalidade e/ou alfa- betização. São 483 referências em 413 anúncios. Os dados demonstram também que o termo já era operado para agregar diferentes tipos de traba- lhadores. Criados, criadas e domésticas – no caso dos anúncios à procura de domésticas, 75% traziam especificação, foram 176 referências em 156 anúncios – são as atividades nas quais os critérios de escolha mais oscilam (ver tabelas 4 e 5) São nesses anúncios onde mais se observa a diversidade racial do conjunto de trabalhadores da província do Rio de Janeiro. O que não significa que estas diferenciações não fossem expressas nas outras formas de relações sociais de trabalho na sociedade. O fato de um escravo ou um indivíduo dito “de cor” possuir um ofício, por si só não garantiria distinção social, o domínio de outros códigos sociais de distinção deveria ainda ser agregado e, importa destacar: não garantiria o apagamento e o

peso da sua cor e/ou condição.65

Serviu, no entanto, para apagar a participação de certos elementos na formação da classe trabalhadora, a saber: africanos, crioulos – pensados aqui como a descendência dos africanos escravizados – e os nacionais livres.

Tabela 4 – Anúncios de “procura-se” por criada(o)s

Total de anúncios 709

Anúncios sem especificação 296

Anúncios que fazem referência à cor

Preta 70 14,5%*

Parda 24 5,0%

Branca 102 21,1%

Qualquer cor 89 18,4%

Anúncios que fazem referência à condição

Escravo 18 3,7% Livre 91 18,7% Qualquer condição 59 12,2% Outras especificações Estrangeiro 30 6,2% Aprendiz - - Alfabetizado 1 0,2%

Fonte: BN/RJ, Jornal Commercio, janeiro de 1873

* Os percentuais foram computados a partir do total de 483 referências a cor, condição, nacionalidade, aprendizado e alfabetização verificados em 413 anúncios.

65 ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O jogo de dissimulação: abolição e cidadania

Tabela 5 – Anúncios de “procura-se” por doméstica

Total de anúncios 206

Anúncios sem especificação 50

Anúncios que fazem referência à cor

Preta 84 47,8%*

Parda 8 4,5%

Branca 18 10,2%

Qualquer cor 20 11,4%

Anúncios que fazem referência à condição

Escravo 18 10,2% Livre 5 2,8% Qualquer condição 20 11,4% Outras especificações Estrangeiro 3 1,7% Aprendiz 2,2% Alfabetizado 1 0,2%

Fonte: BN/RJ, Jornal Commercio, janeiro de 1873

Os percentuais foram computados a partir do total de 179 referências a cor, condição, nacionalidade, aprendizado e alfabetização verificados em 156 anúncios.