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Diante da situação exposta anteriormente, coube à Coroa intervir no poder eclesiástico. As disposições aplicadas visavam restringir a parti- cipação dos religiosos na jurisdição administrativa do governo, a curto e longo prazos. O exemplo disso foi a expulsão da Companhia de Jesus (cuja consequência exigiu uma ampla reforma religiosa e educacional), a subordinação do Tribunal da Santa Inquisição ao Estado, as várias ten- tativas para obter o controle das propriedades eclesiásticas e a proibição da renovação dos claustros. Essa última medida acarretou na escassez de religiosos e é a partir dela que estudo o início de um conjunto de deter- minações que condicionaram uma série de acontecimentos descritos em registros e outras produções monásticas como desfavoráveis ao cotidiano das propriedades beneditinas.

O Capítulo Geral era a assembléia de dignitários eclesiásticos que tratavam dos assuntos referentes à organização e a unificação dos mos- teiros. A partir de 1829, dois anos após a constituição da Congregação Beneditina do Brasil, essa reunião era formada apenas por abades, que ocupavam as funções de relator, vogais, definidores, procurador, visita-

dores e presidentes,9 monges conhecidos como capitulares eleitos a cada

três anos. A referência para essa estrutura organizacional provinha do Conselho Beneditino Português, a quem a província brasileira esteve sujei- ta por 246 anos. Portanto, todas essas cadeiras estavam submetidas a um superior, o abade geral, também eleito nessa reunião. Os resultados des- sas assembléias eram as Atas dos Capítulos Gerais e das Juntas Capitulares, mantidas na Abadia de São Sebastião da Bahia e encaminhadas aos mos- teiros, onde cada secretário deveria fazer uma cópia. Inicialmente tra- balhei com as Atas Capitulares e o Livro de Provimento da Ordem de São 9 Presidentes: abades responsáveis pelos mosteiros autônomos que possuíam um número de mon-

Bento do Rio de Janeiro, em seguida com uma crônica publicada em 1879,

produzida por Benjamim Flanklim Ramiz Galvão. Assim aparece a deter- minação para a feitura das cópias enviadas ao Rio de Janeiro, por mim consultadas:

Manda o presente Capítulo, em conformidade do que determinou o pas- sado, que o Secretário mande tirar duas cópias das Atas do Capítulo Geral, um que mandará para o Rio de Janeiro, que depois de escriturada no Livro competente remeterá ao mais vizinho, este fará o mesmo, e o passará a outro Mosteiro, e assim por diante a última Presidência; outra mandará para Pernambuco, que fará o mesmo, que fica determinado.10

O objetivo desse “regulamento capitular” foi o de registrar as ações do governo geral da Congregação, o regimento interno pertinente a situação de cada mosteiro, “as eleições, tratarem e resolverem [de] tudo o que [for

para o] bem do regime e aumento”11 da Congregação. Os assuntos trata-

dos foram distribuídos por sessões, no primeiro momento ocorriam as eleições e uma sindicância para averiguar se o monge estava ou não hábil a ocupar tal função. Em seguida, era realizada a leitura dos Estados, relató- rios trienais realizados ao final de cada governo ao qual resumia a conta- bilidade geral dos mosteiros e das suas propriedades rústicas, do Guião do

Estado e a eleição de cinco definidores para então ser tratado das questões

relativas ao espiritual e temporal de toda a Congregação.

O Livro de Provimento constitui uma documentação distinta. A sua fun- ção era controlar a distribuição das roupas e panos, provimentos, dados a cada três anos aos monges e escravos do mosteiro do Rio de Janeiro. Assim, essa fonte está dividida em duas partes, na primeira está a relação dos religiosos e o que eles receberam, além de diversos recibos de com-

pra de material fornecidos aos beneditinos;12 na segunda, referente aos

triênios correspondentes entre os anos de 1819 e 1842, encontram-se os “provimentos repartidos pelos escravos”, neste caso, baeta, algodão, li- nho, olanda e pano. O que torna essa fonte importante para esse estudo é a maneira como foram organizadas as informações. Os cativos foram

registrados de acordo com a propriedade na qual se encontravam,13 sendo

organizados por idade e sexo; em alguns casos foi especificado o estado civil e os ofícios que praticavam. Ao quantificar os dados contidos nesse livro foi possível levantar o número de escravos, homens e mulheres, que 10 AMSB/RJ. códice 1143. Livro de Atas dos Capítulos Gerais e das Juntas Capitulares, 1829-1866, fl.

20v.

11 Ibidem.

12 Dentre os recibos estão pares de meias, retros e linhas, chapéus e tecidos como linho, baeta (tecido

de lã), algodão e chita.

13 Neste caso, foram descritas as propriedades do Mosteiro (dividas em Guindaste, Horta e Enferma-

ria), Iguaçu (composta pelas fazendas do Tijolo, Gônde e Telha), Fazenda do Outeiro, Maricá, Ilha do Governador, Camorim, Vargem Pequena, Vargem Grande, Cabo Frio e Campos.

atuaram em todas as propriedades beneditinas. Assim como no Quião, re- latórios que resumem as despesas, dívidas, criações de animais, licenças, cartas de liberdade, venda de escravos, alforrias votadas e uma relação geral de escravos referente aos últimos anos que antecederam a concessão compulsória de 1871, são assuntos a serem tratado mais adiante.

Uma fonte que introduz a temática da escassez de religiosos nos claus- tros beneditinos é a publicação do Dr. Benjamim Franklin Ramiz Galvão,

Aponctamentos Históricos sobre a Ordem Benedictina em Geral.14 Dividida

em duas partes, a obra se dedicou à Ordem de São Bento instalada no Brasil. Ramiz Galvão foi médico, professor, filólogo, biógrafo e orador e atuou nas principais instituições brasileiras do Império e da República. Foi presidente da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, sendo responsável pela publicação dos Anais; diretor da Academia Brasileira de Letras, onde sucedeu Carlos de Laet, em 1928; e também dirigiu o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro. Lamentavelmente ainda não encontrei sua ligação com a Ordem, de modo a justificar seu interesse por um tema tão particu- lar aos anseios desse grupo religioso. A primeira parte apresenta uma bio- grafia do patriarca Bento de Núrcia, durante a construção e instituição da

Regra Beneditina a partir do desenvolvimento da vida monacal na Europa.

A segunda, que mais nos interessa aqui, está dividida em duas seções, ambas tratando do Mosteiro de Nossa Senhora de Monserrate, no Rio de Janeiro. A divisão proposta por Ramiz Galvão não é cronológica, mas pau- tada pelos “primeiros sinais de animosidade contra as ordens regulares

em Portugal.”15 A dita “animosidade” pode ser entendida como as medi-

das restritivas que tinham como objetivo controlar o poder exercido pelas ordens. Essa segunda seção trata das consequências das medidas aplica- das no século XVIII e das novas relações estabelecidas entre a Ordem e o governo Imperial, no período de 1808 a 1869. A narrativa utilizada parte de um sentimento escatológico para com o cotidiano monástico, no qual identifiquei que a publicação de Ramiz Galvão atuou como uma reivindi- cação para a situação da Ordem, denunciando o constante interesse do governo sobre os bens dos beneditinos.

O fim do chamado período pombalino não possibilitou a completa revogação da medida que restringiu a entrada de noviços nos claustros brasileiros, como esperavam os religiosos. Ao assumir o trono de Portugal em 1777, D. Maria I revogou este e alguns outros avisos instituídos. Em 1780, pela assinatura de um decreto, entraram os primeiros novatos após a interdição. Uma “conquista” – na visão dos religiosos – que não pas- sou de 1789, quando foi instituída a Junta do Exame do Estado Atual 14 GALVÃO, Benjamim F. R. Aponctamentos históricos sobre a Ordem Benedictina em Geral e em parti-

cular sobre o Mosteiro de N. S. do Monserrate da Ordem do Patriarcha S. Bento d’esta cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Typ. de G. Leuzinger & Filhos, 1879.

15 GALVÃO, Benjamim F. R. Aponctamentos históricos sobre a Ordem Benedictina em Geral e em parti-

cular sobre o Mosteiro de N. S. do Monserrate da Ordem do Patriarcha S. Bento d’esta cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Typ. de G. Leuzinger & Filhos, 1879. p. 66.

e Melhoramento Temporal das Ordens Regulares. Esta Junta, que deve- ria se encarregar de melhorar o desempenho das ordens diante da nova organização do Estado e da sociedade, “alimentou a crítica de seus de- tratores que a acusavam de se autoperpetuar, quando tinha sido criada como comissão temporária, e de se imiscuir em matérias que não eram

da sua alçada.”16 Laurinda Abreu, professora da Universidade de Évora,

cuja produção acadêmica restringe-se à análise social, política e religiosa do século XVIII, trabalhou com o Resumo das consultas especiaes da Junta (sic). Essa fonte caracteriza-se por ser uma síntese, um relatório, da Junta que avaliava o estado temporal das ordens e propunha soluções para a sua sobrevivência. Segundo a pesquisadora, em 1834 um plano geral de reestruturação previu a

redução dos encargos pios e a substituição dos dotes por prestações regu- lares, passando a exercer um controle direto sobre os religiosos, nomeada- mente em relação à entrada de noviços, aos processos de secularização e às estadas fora dos conventos.17

Tais medidas acarretaram a “racionalização de recursos, a contenção dos gastos, o equilíbrio do número de casas e de religiosos que as ocupa- vam, a moralização de hábitos e o respeito por compromissos sociais as-

sumidos, nomeadamente em relação ao ensino”.18 A Junta atuou de 1789

a 1834. Com o seu processo de extinção, entre os anos de 1829 a 1834, a medida foi novamente revogada voltando a ser autorizado o ingresso de noviços. A razão indicada por Ramiz Galvão para esse ato foi o reconheci- mento da Coroa pelos serviços prestados pela Ordem beneditina, durante as invasões francesas a Portugal (1807-1810).

Segundo a historiadora Maria Rachel Fróes da Fonseca dos Santos, hou- ve um intento do governo Imperial para a formação de um clero nacional. Para tal, havia sido determinado que “as ordens religiosas deveriam se des- vincular de suas ‘matrizes’ européias, para assim poderem permanecer no

país”.19 Para os beneditinos essa medida não traria desvantagens por duas

razões: esta separação já havia sido objetivada em 1656, quando alguns monges da Província expuseram que as suas necessidades distinguiam-se 16 ABREU, Laurinda. Um parecer da Junta do Exame do Estado Actual e Melhoramento Temporal das

Ordens Regulares nas vésperas do decreto de 30 de Maio de 1834. In: ESTUDOS em homenagem a Luís Antônio de Oliveira Ramos. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2004. p. 119-120.

17 ABREU, Laurinda. Um padecer da Junta do Exame do Estado Actual e Melhoramento Temporal

das Ordens Regulares nas vésperas do decreto de 30 de Maio de 1834. In: ESTUDOS em homena- gem a Luís Antônio de Oliveira Ramos. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2004. p. 119.

18 Ibidem, p. 120.

19 SANTOS, Maria Rachel Fróes da Fonseca. Contestação e defesa: a Congregação Beneditina Brasileira

no Rio de Janeiro (1830-1870). Dissertação (Mestrado)–Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1986. p. 15.

das que envolviam o Reino. Por conseguinte, com o direito de se auto- -governarem, os religiosos acreditavam no restabelecimento do número de monges nos seus claustros. Com essa iniciativa, a partir de 1826, os monges iniciaram o processo de separação entre a Província Beneditina Brasileira e a Congregação Portuguesa. Não cabe nesse artigo apresentar

uma análise mais detalhada acerca desse processo.20 Entretanto, é rele-

vante saber que a Congregação de São Bento do Brasil só foi instituída em novembro de 1827, quando chegaram às mãos de frei Antonio Carmo as autorizações da Santa Sé, a bula Inter Gravíssimas Curas, e o Beneplácito do Império. O Beneplácito, que custou para os monges 504$401 réis – relativos às despesas do ministro em Roma, para a expedição do docu- mento – dava plenos direitos ao exercício das atividades religiosas dessa Ordem.

Sua Magestade o Imperador foi servido mandar-nos pela Secretaria de Estado dos da justiça e Eclesiásticos, munida com o seu Imperial Beneplácito, uma Bulla do Sumo Pontífice Leão XII, ora Presidente na Santa Igreja Católica, pela qual Sua Santidade houve por bem separar esta nossa antiga Província Beneditina da Congregação de S. Bento de Tibães, criando nela a nova Congregação de S. Bento do Brasil, o que tudo será presente a Vossa Reverendíssima, logo que se imprima a referida Bulla, e Beneplácito Imperial. [...] e formalizem um regulamento capitular, análo- go ao nosso estado presente para nos dirigirmos na celebração deste pri- meiro Capítulo Geral, [...].21

Todo esse investimento serviu para a construção de uma administração desvinculada dos interesses da Ordem portuguesa. Para tal, o Mosteiro do Rio de Janeiro atuou como intermediário entre a Ordem de São Bento e o governo Imperial. Além do seu destaque econômico, já que possuía uma renda maior do que a produzida pela abadia da Bahia, foi aprovada em Capítulo a sua promoção para ocupar o “segundo lugar entre os mais

da Congregação”,22 ou seja, entre os demais mosteiros. Na realização do

primeiro Capítulo Geral, em junho de 1829, a assembléia contou com um número reduzido de monges. Neste caso, houve a preocupação quanto às tarefas que seriam distribuídas pelos 11 conventos que constituíram a nova Congregação Beneditina do Brasil, dentre eles: sete abadias (Abadia de S. Sebastião da cidade de Salvador, de Nossa Senhora do Monserrate 20 Para uma análise mais detalhada do assunto consulte: PACHECO, Paulo Henrique Silva. Moral e dis-

ciplina: monges e escravos no espaço beneditino da Corte Imperial. Dissertação (Mestrado)–Pro- grama de Pós-Graduação em História, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.

21 LEÃO BISPO. Bulla do S.P. Leão XII. Inter Gravissimas Curas de 1 de julho de 1827 relativa à Separa-

ção da Província do Brasil da Congregação Beneditina de Portugal. In: MOSTEIRO DE SÃO BENTO DO RIO DE JANEIRO. Abbadia Nullius de N. S. do Monserrate: o seu histórico desde a fundação até o anno de 1927. Rio de Janeiro: Papelaria Ribeiro, 1927. p. 271.

do Rio de Janeiro, de Olinda – Pernambuco, da Paraíba, de Nossa Senhora Assunção da cidade de São Paulo, de Nossa Senhora da Graça – Bahia – e de Nossa Senhora das Brotas – vizinha da Vila de S. Francisco na mes- ma região), e quatro presidências, mosteiros com número de monges su- perior a cinco membros, (Mosteiro da Vila de Santos, em Sorocaba, em Jundiaí e na Paraíba).

Uma medida de regularização dos claustros ocorreu apenas em 1835, quando foi concedido às ordens religiosas um ato adicional da Constituição, autorizando a admissão de 30 noviços. Estes deveriam ser divididos igual- mente entre os mosteiros de São Bento, São Francisco e Nossa Senhora do Carmo. Porém, em 1855, foi decretado o Aviso do Ministro da Justiça, José Thomaz Nabuco de Araújo, que cassava as licenças outorgadas: “S. M. o Imperador há por bem cassar as licenças concedidas para a entrada de noviços nessa Ordem Religiosa até que seja resolvida a Concordata que à

Santa Sé vai ao Governo Imperial propor.”23

Ainda não encontrei informações referentes à convenção do Estado com a Igreja, mencionada na referida licença. A determinação que, tinha o seu caráter intermitente, passou a ser definitiva. Em 1868, todos os 11 mosteiros da Congregação possuíam 41 religiosos. Sobre esse perío- do, dom Joaquim Granjeiro de Luna, um cronista beneditino, afirmou que apenas duas abadias conseguiram, com muitas limitações, manter a vida regular monástica, era “a do Rio de Janeiro, que contava com quinze monges e a da Bahia, onze; na de Olinda havia só quatro e nas outras

abadias e presidências apenas um ou dois.”24 A falta de monges nos claus-

tros beneditinos comprometeu significativamente o cotidiano monástico nas fazendas e também no mosteiro, instaurando um processo de crise. Tal afirmação toma como base a documentação já mencionada, o Livro de

Provimentos e as Atas Capitulas, que permite analisar as consequências

dessa medida, mesmo quando ainda era intermitente no início do século XIX.

A partir de agora caberá analisar como a maior dependência do traba- lho escravo e as ações do governo contra os bens monásticos geraram um crescente estado de decadência na organização da Congregação benediti- na, especificamente à Fazenda do Iguaçu no Rio de Janeiro.