Durante os mais de três séculos de tráfico atlântico, um total de
1.217.521 africanos desembarcou no porto da cidade do Rio de Janeiro.1
Deste total estima-se que quase um milhão de africanos foi vendido no mercado do Valongo. Não temos números precisos a respeito da quan- tidade de escravos comercializados no Valongo. Não encontramos escri- turação contábil ou recibos de compra e venda das operações realizadas nas diversas lojas desse imenso mercado. Baseamo-nos na documentação oficial de entrada de escravos nos porto do Rio de Janeiro, embora saiba- mos que muitos escravos poderiam ser vendidos logo no porto. Segundo determinação do Marquês do Lavradio, a partir de 1774, após a chamada “visita da saúde”, sem saltarem em terra, todos os escravos novos deve- riam ser levados ao Valongo. A documentação da Provedoria Mor da Saúde depositada no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro e a Representação dos Proprietários de escravos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro confir-
mam as palavras do marquês.2
1 Ver o banco de dados The Trans-Atlantic Slave Trade Database, disponível em: <www.slavevoyages.
org/tast/index.faces>.
2 Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, doravante BN/RJ, seção de manuscritos, II-34,26,19: Repre-
sentação dos proprietários, consignatários e armadores de resgate de escravos a Sua Alteza Real, reclamando dos altos preços dos aluguéis cobrados pelos proprietários dos armazéns da Gamboa e do Valongo, destinados ao desembarque e venda de escravos. Ver Cláudio HONORATO, Cláudio de Paula. Valongo: o mercado de escravos do Rio de Janeiro, 1758-1831. Dissertação (Mestrado)–Pro- grama de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2008. Segundo dados do The Trans-Atlatinc Slave Trade Database, entre 1751 e 1830 entraram pelo porto do Rio de Janeiro, 972.009 escravos novos. Florentino diz que no período de 1790-1830 desembarcaram no porto do Rio de Janeiro 687305 escravos novos (FLORENTINO, Manolo Garcia. Em Costas Negras: uma história do tráfico atlântico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995. p. 51). Karasch estima que entre 1800-1851 entraram no porto do Rio de Janeiro cerca de 900 a 950 mil africanos novo (KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 67, 513.
Desde o início do século XVIII, Minas Gerais importou grande parte
dos escravos africanos desembarcados no porto do Rio de Janeiro.3 Entre
1824 e 1830 a capitania/província de Minas Gerais absorveu 22,6% dos
escravos novos que entraram no porto carioca.4 No interior da capitania
do Rio de Janeiro foram três os mais importantes núcleos de demanda de mão de obra africana. Desde o século XVII a cidade do Rio de Janeiro e o recôncavo da Guanabara; principalmente a partir do século XVIII também
a região de Campos dos Goitacazes;5 e por fim, já no século XIX, a região
cafeeira do Vale do Paraíba.6 Na segunda metade do século XVIII, particu-
larmente a partir de 1763, quando a cidade do Rio de Janeiro passou a ser a capital do Brasil e sede do vice-reinado, aumentou consideravelmente a população da cidade, assim como a demanda por mão de obra e o movi-
mento do porto. A cidade tornou-se o maior centro comercial do Brasil.7
Entre 1760 e 1780, sua população cresceu 29%; entre 1799 e 1821, esse índice foi ainda maior, alcançando o percentual de 160%. Em toda a capi- tania e depois província, observa-se que a população passou de 169 mil
habitantes em 1789 para 591 mil em 1830, um crescimento de 250%.8
Não há dúvida de que a entrada de escravos africanos na cidade contri- buiu sensivelmente para este aumento populacional. Segundo Karasch,
em 1834 os escravos representavam 57% da população urbana.9
3 FLORENTINO, Manolo Garcia. Em Costas Negras: uma história do tráfico atlântico de escravos
entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995. p. 38-39.
4 MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa: a Inconfidência Mineira: Brasil e Portugal, 1750-1808.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. p. 300-301. De acordo com o autor em 1786 os escravos re- presentavam 47,9% da população total da capitania e em 1823 representavam 27%, p. 302. Cf. FLORENTINO, Manolo Garcia. Em Costas Negras: uma história do tráfico atlântico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995. p. 39, 51; FRAGOSO, João; FERREIRA, Roberto. Alegrias e artimanhas de uma fonte seriada: os có- dices 390, 421, 424 e 425: despachos de escravos e passaportes da Intendência de Policia da Corte, 1819-1833. In: FRAGOSO, João Luis (Coord.). Tráfico interno de escravos e relações comerciais no Centro-Sul, séculos XVIII e XIX. Brasília, DF: IPEA; Rio de Janeiro: UFRJ, LIPHIS, 2000. 1 CDROM. p. 7.
5 LARA, Sílvia Hunold. Campos de violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro,
1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 134-139.
6 Em determinadas áreas dessa zona, a população passou de 292 habitantes em 1789 para 15.700
em 1840, um crescimento de cerca de 530%, sendo o café o grande responsável por essa grande explosão demográfica, pois sua produção passou de 160 arrobas em 1792 para quase 2 milhões em 1830 e alcançaria o total de 3.237.190 em 1835 (FLORENTINO, Manolo Garcia. Em Costas Negras: uma história do tráfico atlântico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995. p. 41; STEIN, Stanley J. Grandeza e decadência do café no Vale do Paraíba. São Paulo: Brasiliense, 1961. p. 53).
7 CAVALCANTI, Nireu. O comércio de escravos novos no Rio setecentista. In: FLORENTINO, Mano-
lo (Org.). Tráfico, cativeiro e liberdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 22.
8 FLORENTINO, Manolo Garcia. Em Costas Negras: uma história do tráfico atlântico de escravos
entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995. p. 40.
9 KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das
A esta altura o comércio de escravos africanos desembarcados no por- to do Rio de Janeiro já era controlado por negociantes estabelecidos na cidade, tendência que se acelerou depois de 1760. Como argumentam os historiadores Manolo Florentino e João Fragoso, os negociantes envol- vidos no comércio de escravos dispunham de recursos para aquisição ou aluguel de embarcações e para a compra dos escravos a serem vendidos na cidade, demonstrando que tal comércio exigia financiamentos vulto- sos e crescentes, em particular entre 1790 e 1830. Embora caracterizada por altos investimentos, comerciantes de menor porte também estiveram vinculados a essa atividade, interessados nos lucros que ela podia pro-
porcionar.10 Se os grandes negociantes já têm sido estudados, existe ain-
da uma lacuna a ser preenchida para um melhor detalhamento do perfil dos pequenos investidores e comerciantes que estiveram vinculados ao
comércio atlântico de escravos.11
Nesse comércio de grandes e pequenos havia muitos conflitos e diver- gências entre consumidores, fornecedores e autoridades locais que, quase sempre, acabavam em reclamações ao governador e até mesmo denúncias ao próprio rei, como ocorreu no ano de 1722. Através de uma carta envia- da ao rei de Portugal, um grupo de senhores de engenho e agricultores (de comum acordo com os vereadores da cidade) denunciou alguns vendedo- res de escravos. Segundo eles, esses pequenos negociantes “atravessam os escravos que vem de Angola e Costa da Mina e mais partes donde costu- mam vir para os revenderem ao povo, privando aos senhores de engenho e lavradores de que os comprem”. Na verdade o que acontecia era que os comerciantes localizados junto ao porto estavam mais bem informados sobre a chegada das embarcações e os desembarques de escravos e logo acorriam ao porto, e mesmo à bordo, onde compravam os melhores es- cravos a melhor preço. Depois de trazidos para a cidade eram revendidos como alegam a “preços exorbitantes” aos senhores de engenho. Essa com- pra direta feita nas embarcações aos capitães antes do desembarque era facilitada aos atravessadores, mas não aos compradores individuais, por isso só restava aos senhores do Recôncavo a compra dos escravos nas ca- sas comerciais da cidade ou nas mãos dos próprios atravessadores, onde pagavam preços mais altos, e muitas vezes, se chegavam tarde, por escra-
vos de pior qualidade.12
10 FRAGOSO, João. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio
de Janeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. p. 174, 206-208, 227, 356; FLORENTINO, Manolo Garcia. Em Costas Negras: uma história do tráfico atlântico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995. p. 115-116, 152-53, 148, 184.
11 Para um interessante estudo de caso ver: BEZERRA, Nielson Rosa. Mosaicos da escravidão: identida-
des africanas e conexões atlânticas do Recôncavo da Guanabara (1780-1840). Tese (Doutorado)– Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010. Cap. 3, 4.
12 CAVALCANTI, Nireu. O comércio de escravos novos no Rio setecentista. In: FLORENTINO, Mano-
Num acordo entre a Câmara e o ouvidor geral, o desembargador José de Siqueira tentou coibir a ação dos atravessadores estabelecendo que “toda pessoa que atravessasse os ditos negros pagaria 50 cruzados [dois
contos de réis] e teria um mês de prisão”.13 Esta foi a primeira iniciativa
no sentido de coibir a ação desses atravessadores. Tudo indica não ter o desembargador obtido o resultado esperado, pois em 1756, a Câmara de Vereadores fez nova denúncia. A polêmica chegou ao rei de Portugal que pediu ao governador do Rio de Janeiro, Gomes Freire de Andrade, que emitisse seu parecer sobre o assunto. Antes de fazê-lo o governador ouviu um dos maiores negociantes de escravos da praça, Antonio Pinto de Miranda, que a pedido do mesmo emitiu parecer favorável aos “atraves- sadores”. Em sua opinião eles eram de suma importância para o bom fun- cionamento do comércio de escravos africanos da cidade, pois sem eles seria maior o risco dos grandes negociantes, e maiores seus prejuízos. O negociante afirma:
A venda dos escravos que vêm a esta cidade, não só de Angola e Costa de Mina mas também transportados da Bahia e Pernambuco assim que che- gam e são despachados na Alfândega, se faz pública e comum para todos aqueles que o procuram ou querem comprar a fim de satisfazerem com o seu produto não só os Direitos Reais mas também os fretes e letras que se costuma passar sobre os ditos escravos. Entre este número de pessoas sucede, e ao mesmo tempo, haver também outras que compram a dinheiro e fiado para tornar a vender alguns daqueles que são bons, mas comumen- te só fazem no resto da carregação, a que se chama refugo ou incapazes de reterem pronta saída em razão do estabelecimento que tem cada um destes na sua casa para custear e tratar deles [...], depois disto os vendem por decurso de tempo a quem lhos procura na cidade a dinheiro e nos re- côncavos dela aos senhores de engenho, lavradores e roceiros, para onde os conduzem e vedem não só fiado mas também a troco dos seus efeitos recebendo assim o prêmio de seu trabalho e risco a que se expõem quando os juntaram na primeira mão. [...] não são poderosos os que se ocupam de semelhante negociação, mas sim pobres que não têm outro modo de vida. Destes compradores se não segue prejuízo a nenhum daqueles referidos por público para todos a venda dos escravos, não só quando chegam mas no dilatado tempo que sucede haver, repetidas vezes sem se poder ajustar a conta de venda de qualquer carregação. Antes são convenientes e mui úteis a este grande comércio semelhantes compradores, como meio eficaz de se conservarem os comerciantes e traficantes dele, porque chegando a esta com os ditos escravos tendo pronta saída nos mesmos, cuidam logo em voltar ao resgate ou compra de outros e não tendo forçosamente se hão
13 Arquivo Histórico Ultramarino, doravante AHU, códice, 226. p. 249. Cf. CAVALCANTI, ibidem, p.
de arruinar com a demora por causa da mortalidade que experimentam por inseparáveis do seu tráfico a falta de comodidade de os custear.14
Com base no relatório de Antonio Pinto de Miranda, referendado pelo governador Gomes Freire de Andrade, o rei negou o pedido dos vereado- res. Mas os senhores de engenho e lavradores do Recôncavo da Guanabara não desistiram de seu intento, e em 1765, voltaram a atacar. Através de carta denunciaram novamente à Câmara de Vereadores “o dano gravís- simo que recebiam o exorbitante preço e carestia, a que tinha subido os escravos, que de Angola, Benguela, Costa da Mina e outros presídios vi- nham a vender nesta, por causa dos atravessadores”. Alegavam que o alto preço dos escravos era responsável pela decadência das fazendas e que isso afetava diretamente os dízimos reais. Mais uma vez a atitude dos vereadores foi de apoiar os senhores de engenho e lavradores contra os negociantes.
Em 9 de março de 1765 os vereadores e senhores de engenho enviaram uma carta ao já então vice-rei Conde da Cunha, solicitando a proibição do comércio abusivo praticado pelos atravessadores; e em 6 de novembro de 1765 enviaram uma carta ao próprio rei de Portugal. Em resposta en- viada ao rei de Portugal em 4 de fevereiro de 1767, com base no relatório de Antonio Pinto de Miranda, o vice-rei Conde da Cunha foi totalmente favorável ao negócio dos atravessadores:
O requerimento que os senhores de Engenho e lavradores de cana do re- côncavo desta cidade fizeram ao Senado da Câmara assenta sobre um prin- cípio e motivo falso, pois alegam o dano gravíssimo, que recebiam do exor- bitante preço e carestia a que tinham subido os escravos que de Benguela, Angola, Costa da Mina e outros presídios vinham a vender a este porto; isto se vê que não é verdade, pois que cada dia com o excessivo número de escravatura que aqui entra se vai diminuindo o seu valor, com tal excesso, que muitos homens, que os trazem da África, os tornam a navegar para os outros portos do Brasil, por não terem saída; estão sempre tantos por es- tas ruas a venderem, que são inumeráveis. Se não houvesse os negociantes a que os mesmos suplicantes chamam de atravessadores, morreriam todos os que aqui vem doentes e magros, pois que estes não compram os senho- res de engenho e lavradores de cana, e muito menos os mineiros, só sim os pobres, que deste gênero de negocio vivem, tratando deles e curando-os com maior trabalho; que se proibisse esta útil negociação, nem haveria quem fosse resgatar à Costa da África, nem se achariam venda se não pe- los grandes preços que tiveram nos tempos em que não havia ainda esta pequena negociação com os que não tem valor pelos sobreditos motivos;
e perderia a Real Fazenda de V. Majestade a maior parte da utilidade, que tem nos Direitos, que os mesmos escravos produzem.15
Essa polêmica revela que na cidade existiam interesses divergentes en- tre os diversos setores envolvidos no comércio de escravos africanos que chegavam à cidade, fossem eles compradores, intermediários, represen- tantes da Câmara ou mesmo autoridades. Pode-se perceber a existência de pelo menos quatro grupos distintos: os grandes comerciantes que com- pravam à vista em dinheiro; os chamados “senhores” que queriam esco- lher os melhores escravos pelo melhor preço; os comerciantes estabeleci- dos na cidade donos de lojas; e os atravessadores, compradores de menor poder aquisitivo que compravam o “refugo”, aí incluídos os escravos do- entes, aleijados, as crianças e velhos. Como dão a perceber Antonio Pinto de Miranda e Conde da Cunha, os grandes comerciantes que financiavam o comércio atlântico defendiam os atravessadores porque ao viabilizar a venda dos escravos de menor qualidade eles reduziam os prejuízos do co- mércio atlântico.
Esses atravessadores constituíam uma rede de especialistas em recu- perar escravos enfraquecidos e doentes para a revenda a preços que com- pensavam os investimentos aplicados nesse negócio. Apesar dos protestos dos senhores de engenho e lavradores de cana do recôncavo, com o apoio do Senado da Câmara, eles conseguiam manter seu negócio. O apoio das autoridades se justificava, entre outros argumentos pelo fato de que se- gundo as palavras do vice-rei Conde Cunha, o negócio dos atravessadores evitava transtornos à saúde da cidade e aumentava os dízimos reais, “coi- sa que não ocorria antes de sua existência”, além de evitar perdas maiores
e manter equilibrados os preços dos escravos na cidade.16