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Juliana Barreto Farias

Em 5 de março de 1845, um anúncio publicado no Diário do Rio de

Janeiro alertava para o desaparecimento do escravo alugado por um mo-

rador da rua da Cadeia, na freguesia de São José. Seu senhor, ou quem so- licitou seus serviços, não sabia ao certo se ele era de “nação” Moçambique ou Quilimane. De todo modo, garantia que o africano tinha 30 anos, era baixo, cheio de corpo, com alguns sinais de bexiga no rosto, dois dedos aleijados na mão direita e um corte nas orelhas; e estava bem acostumado a dar escapulidas pela cidade e seus arredores. Já fora visto na praia da Saúde e no Valongo, “feito pombeiro, no traje de pretos-minas”. Do outro lado da baía da Guanabara, andava como mascate pela Engenhoca, em São Gonçalo, “com boas roupas e calçado”. Ou mesmo “vestido à forma de marinheiro de embarcações de guerra”. Ainda podia ser encontrado pelas

bandas do Recôncavo, no Porto das Caixas ou em Iguassú.1

Como tantos cativos que percorriam as ruas do Rio carregando ou vendendo mercadorias, este africano, chamado de Manuel e também de Joaquim, tentava ganhar uns “trocados” extras para seus negócios e sua própria sobrevivência. E não media esforços para se ocultar dos olhares senhoriais e das autoridades: dizia-se forro; mudava de nome e de roupa a cada fuga; procurava proteção e ocupação junto a outros senhores e luga-

res.2 Quase sempre estava envolvido com o pequeno comércio, ora empre-

gando-se como mascate ou vendeiro, ora como pombeiro. À primeira vista, esses termos pareciam indicar uma mesma atividade exercida em ruas, mercados e praias. Só que um exame mais atento de diversos registros 1 Diário do Rio de Janeiro, 5 de março de 1845; 27 de agosto de 1845.

2 Sobre fugas de escravos na cidade do Rio de Janeiro, ver: GOMES, Flávio S. Jogando a rede, reven-

do as malhas: fugas e fugitivos no Brasil escravista. Tempo, Rio de Janeiro, v. 1, abr. 1996; GOMES, Flávio S.; SOARES, Carlos E. L. Em busca de um ‘risonho futuro’: seduções, identidades e comu- nidades em fuga no Rio de Janeiro escravista (século XIX). Locus, Juiz de Fora, v. 7, n. 13, p. 9-21, 2001; FARIAS, Juliana Barreto; GOMES Flávio S.; SOARES Carlos E. L. Identidades fugidias numa cidade labirinto, 1810-1830. In: . No labirinto das nações: africanos e identidades no Rio de Janeiro, século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005.

oitocentistas revela diferentes estratégias, nuances e divisões entre as ca- tegorias. Vejamos mais de perto o caso dos pombeiros.

Ainda tão desconhecidos no Rio de Janeiro, esses vendedores ambu- lantes circulavam diariamente pela capital carioca e por regiões próximas, oferecendo produtos – sobretudo peixe fresco – em samburás (cestos de

palha), tabuleiros e tábuas.3 Impedidos de estacionar em alguns pontos

comerciais da cidade, como o grande Mercado da Candelária, corriam pe- los logradouros das freguesias urbanas e rurais. Como o escravo Joaquim Moçambique, que parecia “muito pernóstico” e costumava andar pelas praias da cidade e estradas da roça “feito pombeiro”. Ou Carlos, de “nação Mina Sauté”, que comprava peixe em Jacarepaguá, na Tijuca e na Lagoa e ia vender na cidade Nova. Já o mina José preferia realizar o ofício na Praia

do Peixe, vestindo “calça branca, camisa de morim e rosário ao pescoço”.4

Mas não eram somente os escravos que se ocupavam do “negócio de

pombear”. Desde as primeiras décadas do século XIX, libertos africanos e

crioulos, imigrantes portugueses, italianos e até mesmo chineses também se dedicavam à atividade. Nos anos 1820 e 1830, por exemplo, pelo me- nos 16 portugueses indicaram, em seus registros de entrada no Brasil, o

ofício de pombeiro como ocupação principal.5 Mas esses homens livres es-

tavam unidos – ou separados – dos cativos nas ruas do Rio? Que relações estabeleciam com outros trabalhadores também dedicados ao pequeno comércio? E com as autoridades municipais? Será que tradições africanas ainda marcavam de alguma forma a categoria?

3 Nas obras historiográficas dedicadas à escravidão no Rio de Janeiro oitocentista, os pombeiros são

citados apenas pontualmente. Há referências em documentos nos trabalhos de SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). Cam- pinas, SP: Ed. Unicamp, 2002; FARIAS, Juliana Barreto et al. Cidades negras: africanos, crioulos e espaços urbanos no Brasil escravista do século XIX. 2. ed. São Paulo: Alameda, 2008. p. 45. Para outras cidades brasileiras, há citações para Recife no trabalho de SILVA, Luiz Geraldo. A faina, a festa e o rito: uma etnografia histórica sobre as gentes do mar (sécs. XVII ao XIX). São Paulo: Papirus, 2001. p. 91. Já na região sul, as análises são mais acuradas. Para a capital gaúcha no sécu- lo XIX, temos o artigo recente de ALADRÉN, Gabriel, Ratoneiros, formigueiros e atravessadores: trabalho e experiências sociais de libertos em Porto Alegre nas primeiras décadas do século XIX. In: MATTOS, Marcelo Badaró (Org.). Faces do trabalho: escravizados e livres. Niterói: EdUFF, 2010. No prelo. E para Santa Catarina, os trabalhos de: CARDOSO, Paulino de Jesus Francisco. Negros em desterro: experiências de populações de origem africana em Florianópolis, 1860/1888. Tese (Dou- torado)– Programa de Pós-Graduação em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2004; SILVA, Haroldo Sillis Mendes da. Carroceiros, quitandeiras, marinheiros, pombeiros e outras agências: trabalho e sobrevivência de africanos e afrodescendentes em Desterro na década da abolição. Monografia de bacharelado defendida junto ao Departamento de História da UESC, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2001; SANTIAGO, Carina dos Santos. Um lugar chamado Figueira: experiências de africanos e afrodescendentes nas duas últimas décadas do século XIX. Monografia de bacharelado apresentada ao Departamento de História, Universida- de do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2005.

4 Esses três escravos foram descritos como pombeiros nos anúncios de fuga publicados por seus se-

nhores. Cf. Diário do Rio de Janeiro, outubro, 1830; 6 de julho de 1835 e 12 de fevereiro de 1845.

5 Arquivo Nacional, Códices “Polícia da Corte” (1808-1842), acessados em Movimentação de portu-

gueses no Brasil (1808-1842), disponível em: <http://www.arquivonacional.gov.br/cgi/cgilua.exe/ sys/start.htm>; acesso em: 12 maio 2010.

Investigar essas questões é justamente um dos objetivos deste artigo. Embora esses mercadores ambulantes ainda continuem praticamente au- sentes dos estudos históricos sobre o Rio de Janeiro oitocentista, diver- sos documentos, entre os quais licenças para comércio de peixe, abaixo- -assinados, requerimentos e relatórios de fiscais apresentados à Câmara Municipal, revelam diferentes faces de seu trabalho, suas trajetórias e conflitos. Assim, pretendo tanto avaliar a composição étnica, as formas de identificação e organização desses trabalhadores na corte imperial, como examinar as disputas em que estiveram envolvidos desde pelo me- nos o século XVIII.