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Buscando a genealogia da palavra pombeiro, encontramos os termos quimbundos pumbelu e mpumbu, designando os pontos de confluência de rotas comerciais, onde se montavam grandes mercados de escravos e produtos trazidos do interior das regiões centrais do continente africano. Conforme destaca Willy Bal, pombeiro era o nome atribuído aos mercado- res ambulantes de Portugal e também a seus emissários (cativos ou liber-

tos), que frequentavam as feiras e mercados dos Mpumbu.6

Também há indicações de que a expressão Pombo poderia ter dado origem ao vocábulo. De acordo com o físico holandês Olfert Dapper, em sua Descrição dos países africanos (1688), alguns negros e portugueses mo- radores de Loango, Congo e Luanda costumavam educar seus escravos nas artes do comércio e enviá-los aos mercados que ficavam em Pombo. Pelos seus cálculos, essa região estava localizada a mais de cem milhas em direção ao interior, “a partir da costa ou da cidade dos Abissínios”. Talvez também fosse constituída “de vários reinos e países”, nas proxi- midades “de um certo grande lago”. De uma forma ou de outra, segundo Dapper, os escravos que iam negociar ali acabavam conhecidos como pom-

beiros.7 Mais tarde, Raphael Bluteau, em seu Vocabulário portuguez e latino (1712-1728), continuaria seguindo as pistas do holandês e concluiria que

a província africana de Pombo ficava a “cento & sessenta legoas da cidade de Lovango [Loango]”. E seus moradores, “negros da Costa de Cafraria”,

6 BAL, Willy, Portugais pombeiro ‘Comerçant Ambulant do ‘Sertão’. Afro-Romantica Studia, [S.l.], v.

1, p. 82-84, 1979; MILLER, Joseph C. Way of death: merchant capitalism and the Angolan Slave Trade, 1730-1830. Madison: The University of Wisconsin Press, 1988. p. 189-190. Citados em: ZE- RON, Carlos Alberto. Pombeiros e tangosmaos, intermediários do tráfico de escravos na África. In: COLLOQUE PASSEURS CULTURELS – MEDIADORES CULTURAIS, LAGOS (PORTUGAL), 1997, Lisboa. Actes... Lisboa: Fundação Callouste Gulbenkian, 1998. p. 16.

7 Olfert Dapper, Naukeurige des Afrkaensche Gewesten, Amsterdam, 1668, p. 593 apud ZERON, Car-

los Alberto. Pombeiros e tangosmaos, intermediários do tráfico de escravos na África. In: COLLO- QUE PASSEURS CULTURELS – MEDIADORES CULTURAIS, LAGOS (PORTUGAL), 1997, Lisboa. Actes... Lisboa: Fundação Callouste Gulbenkian, 1998. p. 21.

diziam que os portugueses chamavam de pombeiros os “escravos crioulos”

que partiam dali para comprar e catequizar negros.8

Seja como for, desde o século XVI a expressão nomeava agenciadores ne- gros, mestiços e brancos que percorriam o interior da África, comprando es- cravos e mercadorias de chefes locais. De Benguela ou Luanda, eles partiam para as regiões ao norte de Angola e do Congo, acompanhados de carregadores de tecidos e bebidas – produtos que usavam nas trocas. Quando retornavam ao litoral, traziam na bagagem cativos, marfim, cera, goma, copal, urzela, gado

e mantimentos. Dali, boa parte dos carregamentos seguia para as Américas.9

Segundo Dapper, alguns chegavam a ter sob seu comando mais de cem es- cravos transportando os produtos sobre suas cabeças. Às vezes, as viagens le- vavam até dois anos. E os pombeiros mais fiéis nem retornavam: do interior, continuavam mandando homens e mulheres escravizados para seus donos,

enquanto estes lhes remetiam novas mercadorias.10

Como destaca Jaime Rodrigues, as relações entre esses mercadores e os comerciantes da costa dependiam de muita confiança. Nada garantia que, uma vez abastecido, o pombeiro regressasse com as encomendas. Num ofício de 1632, por exemplo, Fernão de Sousa, governador de Angola, comunicou a El-Rei de Portugal que alguns escravos “resgatadores ou compradores” ficavam com a fazenda de seus senhores, “movidos com o interesse da liberdade e cobi- ça das fazendas, [...], e a tudo se atrevem por se verem tão ausentes de seus se-

nhores; e nisto recebem muito grandes perdas para os homens de negócio”.11

8 BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de

Jesus, 1712-1728. v. 6, p. 588-590. Disponível em: <http://www.brasiliana.usp.br/dicionario/edi- cao/1>. Acesso em: 12 maio 2010, Jaime Rodrigues assinala que as indicações de outros estudiosos vão no mesmo sentido. Em 1799, o “copiador de Angola” anotou que pombeiro era um “vocábulo derivado de Pumbo ou Pombo, antiga feira de escravos do Congo”. Cf. ALMEIDA, Pedro Ramos de. Portugal e a escravatura na África: cronologia (sécs. XVI-XX). Lisboa: Imprensa Universitária: Estampa, 1978. p. 67. Já Afonso d’E. Taunay afirmava que a expressão procede de “Pombo ou Mpumbu, onde viviam as Bavumbus em Quicongo”. (TAUNAY, Afonso d’E. Subsídios para a história do tráfico africano no Brasil. São Paulo: IMESP, 1941. p. 111). Citados em: RODRIGUES, Jaime. De costa a costa: escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola ao Rio de Janei- ro (1780-1860). São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 337.

9 RODRIGUES, Jaime. De costa a costa: escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negrei-

ro de Angola ao Rio de Janeiro (1780-1860). São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 98-99. Ver também os trabalhos de Beatrix Heintze, como por exemplo Pioneiros africanos: caravanas de carregadores na África Centro-Ocidental (entre 1850 e 1890). Lisboa: Caminho; Luanda: Nzi- la, 2004 HEINTZE, Beatrix. Long distance caravans and communication beyond the Kwango (c. 1850-1890). In: HEINTZE, Beatrix; OPPEN, Achim von (Ed.). Angola on the move: transport routes,communications = Angola em movimento: vias de transporte, comunicação e história. Frank- furt am Main: Lembeck, 2008. Neste mesmo volume, ver também o artigo de CANDIDO, Mariana P. Trade, slavery and migration in the interior of Benguela: The case of Caconda, 1830-1870. In: HEINTZE, Beatrix; OPPEN, Achim von (Ed.). Angola on the move: transport routes,communications = Angola em movimento: vias de transporte, comunicação e história. Frankfurt: Lembeck, 2008.

10 Dapper, citado em ZERON, Carlos Alberto. Pombeiros e tangosmaos, intermediários do tráfico de

escravos na África. In: COLLOQUE PASSEURS CULTURELS – MEDIADORES CULTURAIS, LAGOS (PORTUGAL), 1997, Lisboa. Actes... Lisboa: Fundação Callouste Gulbenkian, 1998. p. 21.

11 “Relação de Fernão de Souza a El-Rei”, 23/12/1632, MMA, VIII, p. 243 apud ZERON, Carlos Alber-

to. Pombeiros e tangosmaos, intermediários do tráfico de escravos na África. In: COLLOQUE PAS- SEURS CULTURELS – MEDIADORES CULTURAIS, LAGOS (PORTUGAL), 1997, Lisboa. Actes... Lisboa: Fundação Callouste Gulbenkian, 1998. p. 29.

Além do mais, suas caravanas corriam riscos em meio às condições físicas ad-

versas e os combates que assolavam as áreas atravessadas.12

Por isso mesmo, esses agenciadores se destacavam por certas qualidades, como astúcia, sutileza e habilidade retórica. Ainda que quase sempre fossem marginalizados pela sociedade portuguesa, o conhecimento que detinham sobre o “sertão” africano, seus povos e costumes, rotas e caminhos os torna- va poderosos. Percorrendo lugares muitas vezes interditados aos funcioná- rios da Coroa, criavam hábitos de comércio regular. E ainda permitiam que as conquistas estabelecidas no litoral sobrevivessem como pontos de trocas comerciais abastecidos pelo interior através de suas ações. Se, por qualquer motivo, as caravanas de pumbagem escasseavam e os produtos trocados desa- pareciam, os povos interioranos achavam meios alternativos para comerciar e continuar exportando cativos. Assim, mesmo que constantemente estivesse no centro dos problemas, o pombeiro tornava-se fundamental para a domina-

ção portuguesa exercida sobre Angola.13

Só que suas estratégicas de negociação e movimentação tanto produziam tensões constantes entre portugueses e africanos do interior, como acirravam conflitos entre administradores da metrópole e colonos brancos e mestiços ligados ao tráfico negreiro. Sabendo da importância que tinham nesse circuito, os pombeiros luso-africanos acabavam ascendendo a postos militares e admi- nistrativos a partir da Câmara Municipal de Luanda e angariavam um con- junto de benefícios que os tornava prioritários no comércio negreiro. Mesmo aqueles que não alcançavam tais posições negociavam vantagens com os ocu- pantes dos cargos, formando uma espécie de “‘aristocracia’ negra e mestiça que vivia nas regiões dominadas pelos portugueses e que enriquecera atra- vés do envolvimento no tráfico e de exploração do trabalho escravo em

terras de sua propriedade”.14

E nem mesmo a perspectiva de extinção do comércio transatlântico de escravos ou do tráfico ilegal diminuiu a atividade desses agenciadores. Em 12 RODRIGUES, Jaime. De costa a costa: escravos e tripulantes no tráfico negreiro (Angola – Rio de

Janeiro, 1780-1860). Tese (Doutorado)–Programa de Pós-Graduação em História, Universida- de de Campinas, Campinas, SP, 2000. p. 99; Dapper apud ZERON, Carlos Alberto. Pombeiros e tangosmaos, intermediários do tráfico de escravos na África. In: COLLOQUE PASSEURS CULTU- RELS – MEDIADORES CULTURAIS, LAGOS (PORTUGAL), 1997, Lisboa. Actes... Lisboa: Fundação Callouste Gulbenkian, 1998. p. 21.

13 RODRIGUES, Jaime. De costa a costa: escravos e tripulantes no tráfico negreiro (Angola – Rio de

Janeiro, 1780-1860). Tese (Doutorado)–Programa de Pós-Graduação em História, Universidade de Campinas, Campinas, SP, 2000. p. 103.

14 Ibidem, p. 101. Segundo a historiadora Jill Dias, “estes indivíduos constituíam a elite de uma mi-

noria de agricultores-comerciantes, negociantes e artesãos que haviam emergido em resposta ao crescimento de Luanda como centro administrativo do tráfico de escravos”, concentrando-se nas proximidades dos rios Bengo e Dande e “nas comunidades comerciais luso-mbundo das regiões do baixo Kwanza e Lukala, onde a maioria possuía terras independentes da autoridade dos sobas e dos anciãos das linhagens” e ampliaram sua influência especialmente a partir da década de 1830 (DIAS, Jill. Mudanças no padrão de poder no ‘hinterland’ de Luanda: o impacto da colonização so- bre os mbundu (c.1845-1940). Penélope, [S.l.], v. 14, p. 43-91, dez. 1994). Cf. RODRIGUES, Jaime. De costa a costa: escravos e tripulantes no tráfico negreiro (Angola – Rio de Janeiro, 1780-1860). Tese (Doutorado)–Programa de Pós-Graduação em História, Universidade de Campinas, Campi- nas, SP, 2000. p. 338, nota 19.

meados do século XVIII, algumas medidas tomadas pelo governo de Angola – seguindo diretrizes pombalinas para o controle do comércio na região – ten- taram coibir sua atuação. Contudo, como é possível perceber em memórias e fontes oficiais de períodos posteriores, eles ainda continuaram com suas

negociações nas primeiras décadas do Oitocentos.15 Além disso, conforme

destaca Willy Bal, a palavra pombeiro não ficou circunscrita à sua área de ori- gem, generalizando-se pela África portuguesa e chegando até o Brasil, “onde o comércio se praticava em condições análogas”. Só que aqui ganhou novos contornos.

No Rio de Janeiro, localizei referências à presença de pombeiros já no sé- culo XVIII, em relatos de cronistas, ofícios e relatórios do Senado da Câmara. Em 1780, por exemplo, vendeiros de peixe estabelecidos com bancas próprias nas marinhas da cidade enviaram uma petição à Câmara, solicitando mudan- ças no pagamento do foro para ocupação daquele terreno. Ao final da súpli- ca, pediam que novas licenças fossem concedidas “somente para venderem o peixe ao povo nas bancas destinadas sem que se admitam atravessadores, e

pombeiros, ficando sujeitos à condenação da Postura”.16 Antes disso, porém,

os senadores já haviam tomado providências para defender o público desses “atravessadores gananciosos”.

Segundo o cronista Vivaldo Coaracy, em Memórias da Cidade do Rio de

Janeiro, eles pediram a Gomes Freire a necessária licença – já que as terras

eram da Coroa – para construir uma casa para o almotacé se encarregar de fiscalizar a venda do pescado na Praia do Peixe. Na época, a praia – que no século XIX abrigaria a Praça do Mercado da cidade – compreendia toda a face do terreiro do Carmo (depois chamado de Largo do Paço) voltada para o mar. E, de acordo com Coaracy, estava tomada por bancas de peixe, onde comercia- vam os pombeiros, “intermediários que se atravessavam entre os pescadores

e o consumidor, como sempre acontece no comércio de todos os tempos”.17

Embora lacunares, esses primeiros registros indicam que, no Rio de Janeiro setecentista, os pombeiros dedicavam-se especialmente ao comércio de peixe e, quase sempre, atuavam como atravessadores. No século XIX, outras ima- gens iriam se juntar a essas. Antonio Moraes da Silva, em seu Dicionário da

língua portuguesa (1813), apontava que o pombeiro era tanto o escravo que

seguia pelos sertões do Brasil, fazendo “comércio por autoridade, em pro- veito do senhor, e talvez ainda comprando escravos”, como também aquele

que vendia peixe nas ribeiras e partia os lucros com o senhor.18 Na década

de 1830, Luiz Maria da Silva Pinto também registraria, no seu Dicionário da 15 RODRIGUES, ibidem, p. 100.

16 Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (doravante AGCRJ), Códice 61-3-12: Auto dos vendeiros

de peixe da banca desta cidade, 1780.

17 COARACY, Vivaldo. Memórias da Cidade do Rio de Janeiro. 3. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo:

Edusp, 1988. p. 59.

18 SILVA, Antonio Moraes. Diccionario da lingua portugueza: recompilado dos vocabularios impressos

ate agora, e nesta segunda edição novamente emendado e muito acrescentado. Lisboa: Typogra- phia Lacerdina, 1813. v.2, p. 466. Disponível em: <http://www.brasiliana.usp.br/dicionario/2/ pombeiro>. Acesso em: 12 maio 2010.

Língua Brasileira, que esses cativos ou iam negociar nos sertões, “em proveito

de seu senhor”, ou ofereciam peixe e dividiam os ganhos com seu dono. Só não mencionou as possíveis relações – aludidas por Moraes – com o comércio

de escravos.19 Talvez porque, nesse período, a prática já não contasse entre as

suas atribuições.

Ainda assim, um ofício do chefe de polícia da Corte, citado por Carlos Eugênio Líbano Soares em seu estudo sobre capoeira e outras tradições rebeldes na cidade, parece indicar que, em 1845, os pombeiros continua- vam ligados a esses pequenos negócios com cativos, ou pelo menos com sua sedução. Ao tratar da fuga de escravos no Rio, Eusébio de Queirós di- zia que os responsáveis por tal prática eram os negros forros, “principal- mente minas, que com um insignificante negócio que chamam ‘pombear’ ou casa de vender angu atraem aí os pretos e os seduzem, prometendo- -lhes risonho futuro. Agenciadas pois as peças, são elas entregues aos condutores que as levam, voltando os sedutores para novas tarefas. [...] há cativos também coniventes e cúmplices, sobre os quais tenho dado

providências”.20

Aqui, o chefe de polícia estabelece uma associação entre pombear e manter casas de vender angu. Mesmo sem atentar para as especificidades do primeiro “negócio”, acaba fornecendo pistas importantes para as ativi- dades dos pombeiros. Durante a década de 1840, conforme assinala Líbano Soares, as “casas de vender angu” – espécies de moradias coletivas onde homens e mulheres se reuniam em busca de proteção, amizade, festas ou religiosidades – foram acusadas de serem pontos obrigatórios das “sedu- ções”, fugas agenciadas por cativos ou libertos para remeter escravos da

cidade para o campo, ou vice-versa.21 Certamente, com o conhecimento

que tinham dos “sertões cariocas”, os pombeiros podiam estar à frente dessas redes, ajudando escravos a trocarem de senhor, ou mesmo agindo como intermediários para outros proprietários urbanos que não tinham renda para ingressar no cobiçado mercado de “africanos novos”. E nada mais corriqueiro que escondessem os homens e mulheres “seduzidos” nos locais em que frequentemente se encontravam com outros escravos, li- bertos, africanos e crioulos.

Em Porto Alegre, também parecia ocorrer situação semelhante. Ao analisar experiências de libertos nas primeiras décadas do Oitocentos, Gabriel Aladrén destaca trajetórias de africanos que se ocupavam como

pombeiros e quitandeiros na Rua da Praia, principal ponto de comércio

19 PINTO, Luiz Maria da Silva. Diccionario da Lingua Brasileira. Na Typographia de Silva, 1832. Dispo-

nível em: <http://www.brasiliana.usp.br/dicionario/3/pombeiro>. Acesso em: 12 maio 2010.

20 Arquivo Nacional, doravante AN, Ij6-204, maio-dez., 1845, Ofício do chefe de polícia ao Ministro

da Justiça, 12/6/1845 apud SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). Campinas, SP: Ed. Unicamp, 2002. p. 384.

21 SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro

(1808-1850). Campinas, SP: Ed. Unicamp, 2002. Ver também do mesmo autor: Zungu: rumor de muitas vozes. Rio de Janeiro: Arquivo do Estado do Rio de Janeiro, 1998.

da capital gaúcha nessa época. Navegando em pequenas canoas pelos rios e lagos que circundavam a cidade, eles compravam e vendiam gêne- ros alimentícios e outros produtos, por sua própria iniciativa, a serviço de terceiros ou “alugados”. Neste grupo, estava o preto Angola Antonio Angria, vulgo “Guerrilha”, que foi acusado de ser “ladrão ratoneiro” em março de 1826. Durante o processo criminal aberto contra ele, Angria disse que costumava trabalhar alugado e, quando ninguém o chamava, “andava pelas ruas vendo algum carreto e de noite se recolhia em uma casa na quitanda aonde existem outros pretos pombeiros de frente da qui- tanda, forros e cativos”. Embora insistisse que não tinha residência certa, Joaquim Ferreira Alfama revelou que, “tendo um quartinho alugado ao pé do Couto”, o africano “dava asilo às escravas cativas donde ele testemunha tirou uma de Luis Caetano morador no distrito da Capela há dois meses

para mais [...]”.22

Para Aladrén, esse depoimento sugere que Antonio Angria integrava uma rede comercial de venda de escravos. Provavelmente alguns proprie- tários de regiões próximas a Porto Alegre deixavam seus cativos com o preto forro, morador no centro da cidade, para serem oferecidos e vendi- dos. Isso colocava Angria – assim como outros pombeiros – numa posição ambígua: ao mesmo tempo em que participavam como intermediários na venda de homens e mulheres escravizados, também eram acusados de

acoitar escravos fugidos.23 O que os aproximava dos pombeiros do Rio de

Janeiro, que “seduziam” escravos e os levavam para as “casas de angu”. Contudo, enquanto na capital gaúcha esses mercadores negociavam gêne- ros diversos (como lenha, por exemplo) e não se diferenciavam dos qui- tandeiros – segundo Aladrén, ali os dois termos eram intercambiáveis –, na corte, iam cada vez mais se especializando no comércio de peixe.

Na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, diversos requerimentos, abaixo-assinados, petições e relatórios de fiscais e de outros trabalhado- res do pequeno comércio apresentavam detalhes sobre as atividades dos

pombeiros e, sobretudo, sobre os conflitos em que estiveram envolvidos

ao longo do século XIX. Em alguns registros, há referências à negociação com outros gêneros em pontos específicos da cidade. É o caso da solici- tação do preto mina Benedicto, escravo de José Gonçalves da Silva, que “há bastantes anos vende como pombeiro na Praia dos Mineiros”, e por isso implorava para continuar com sua barraca oferecendo frutas e gali-

nhas.24 Pelas bandas da Praia de D. Manoel, desde princípios da década de

1830 o fiscal da freguesia de São José vinha tentando remover algumas bancas que serviam de “couto de vadios e perversos”. Para ele, “nenhum 22 ALADRÉN, Gabriel. Ratoneiros, formigueiros e atravessadores: trabalho e experiências sociais

de libertos em Porto Alegre nas primeiras décadas do século XIX. In: MATTOS, Marcelo Badaró (Org.). Faces do trabalho: escravizados e livres. Niterói: EdUFF, 2010. No prelo.

23 Ibidem..

pombeiro” devia negociar lenha nas praias, “quem quisesse vende-la tives-

se casa para isso”.25

Não obstante essas indicações, a maior parte dos registros enviados à municipalidade do Rio – e mesmo documentos de outra natureza, como anúncios de fuga de escravos e relatos de cronistas – associavam a catego- ria aos negócios com pescado. Em 1839, o fiscal da freguesia da Glória fa- lava da “absoluta necessidade” de uma banca de peixe na Lagoa, no lugar chamado Piaçaba, para que os moradores dali se livrassem “dos abominá- veis atravessadores e pombeiros”, que “astuciosamente praticam continu- adas tiranias contra os pescadores, mormente os pobres, que os trazem

em uma verdadeira escravidão”.26 Na Praia do Peixe – mais tarde, Praça

do Mercado e Praça das Marinhas – eles não podiam estacionar em qual- quer local e por isso tantas vezes acabavam criando estratégias para enga- nar fiscais e outras autoridades. Uma das saídas era, em associação com pescadores, tirar licenças para pesca na Capitania do Porto mesmo sem estarem efetivamente habilitados para o ofício. Em outros casos, muitos arrendatários das bancas do interior do mercado compravam o produto diretamente dos pescadores, vendiam em leilão aos pombeiros que, por

sua vez, os revendiam ao público.27 Como veremos mais adiante, esses

ardis acabavam provocando muitos conflitos e reclamações.

De qualquer maneira, ainda que os registros oitocentistas nem sempre sejam coincidentes, é possível traçar uma pequena caracterização desses trabalhadores. Na capital carioca, eles até comercializavam aves, frutas, verduras ou lenhas, mas pareciam preferir o pescado. Em alguns pontos da cidade, podiam armar barracas ou colocar seus cestos e tabuleiros. Só que costumavam perambular por praças, ruas e vielas das áreas urbanas