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De volta ao senhor José Maria Fernandes

Abordagens historiográficas produziram silêncios sobre importantes aspectos na formação das classes trabalhadoras assalariadas brasileiras – quando se optou por interpretar as experiências dos trabalhadores a partir das organizações sindicais; quando elegeram para protagonistas de suas análises os trabalhadores imigrantes; quando escolheram o “chão das fábricas” de grande porte –, resultando no esquecimento das contribui- ções dos trabalhadores nacionais e escravizados neste processo. Os novos caminhos que vêm sendo percorridos por respeitáveis estudiosos da his-

tória do trabalho e da escravidão asseguram que eles estavam lá.66 Faziam

parte das opções de escolha dos empregadores e/ou de seus recrutadores de mão de obra.

Subjaz, na finalização desse trabalho, o interesse de acompanhar estes trabalhadores no momento em que se apresentam atendendo ao anúncio. Circunscrevendo a arena de luta, interessa questionar: que tipo de nego- ciação seria possível ao trabalhador no momento da suposta contratação? Até que ponto haveria flexibilidade por parte do contratante? Transitaria o indivíduo por quais ofertas? A falta de mão de obra levaria os emprega- dores a que tipos de adequação nas suas exigências? Estas questões gerais

que se somam a outras mais específicas,67 não cabem no espaço de um ar-

tigo. Entretanto, propô-las enquanto reflexão, além de ratificar a propos- ta deste trabalho – de chamar atenção para a complexidade dos mundos do trabalho carioca nas últimas décadas do século XIX –, colabora com um último exercício: tentar imaginar as possibilidades de escolhas do senhor José Maria Fernandes a partir das circunstâncias.

Se levarmos em conta as preferências manifestadas pelos agenciadores da Agência Portuguesa, as expectativas de experiência de trabalho tra- zidas com a política de imigração e os números do Censo de 1872 – que arrolou os trabalhadores estrangeiros entre aqueles empregados nas pro- fissões mais qualificadas –, podemos supor que o estrangeiro branco era o modelo de trabalhador que Fernandes procurava, afinal estes eram “civili- zados”, peritos em sua arte. No entanto, sabendo que foi facultado às em- preiteiras participar na política de imigração, sendo-lhes possível o recru- tamento fora do país de braços estrangeiros e que o número de imigrantes não atendia as demandas no início da década de 1870, é bem provável que este “procurador” estivesse utilizando um periódico que circulava na cidade do Rio de Janeiro para recrutar trabalhadores que lhe interessaria entre os nacionais, demonstrando assim confiança na qualificação e, so- bretudo, na adaptação do trabalhador nacional às novas relações de traba- lho, no que se refere à capacidade técnica e à disciplina. Obviamente, pode indicar simplesmente que ele ou a firma que ele representava não tinham cacife para cobrir as despesas da imigração. Ou, ainda, que ele julgava ser possível uma “repescagem” na qual pudesse localizar alguns daqueles tra- balhadores imigrantes disponíveis na Praça do Rio de Janeiro.

Acreditando ser possível que José Maria Fernandes de fato confiasse na qualidade do trabalho exercido pelo trabalhador nacional, ele poderia estar interessado em que o anúncio que mandou publicar fosse lido por vários indivíduos, afinal os jornais cumprem estes objetivos. Assim sen- do, operando dentro da lógica do período, os cavouqueiros, pedreiros e canteiros, que se apresentariam atendendo ao anúncio seriam indivíduos de diversas cores, condições sociais e naturalidade que, aproveitando- -se das oportunidades criadas, principalmente nas relações de trabalho, adquiriram habilidades, enquadrando-se nessas categorias socioprofis- sionais procuradas por esse contratador. Homens que poderiam em al- gum momento de seu percurso histórico perceber a comunidade de seus 67 Pensar os papéis sociais dos diversos sujeitos que contribuíram na conformação do perfil das no-

vas classes de trabalhadores, que se “faziam” no Rio de Janeiro nas décadas finais do século XIX, está entre os principais objetivos da minha tese de doutoramento. Interessa-me não só recuperar aspectos da história do operariado, mas, sobretudo, lançar luz sobre o seu caráter heterogêneo e sobre as interseccionalidades que permeavam as relações sociais em termos de classe, gênero e raça. Com o título A negação da herança social. Africanos e crioulos no âmbito de uma economia em expansão. Rio de Janeiro 1870-1900. O trabalho vem sendo desenvolvido junto ao programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia, com bolsa concedida pelo Programa Internacional de Bolsas de Pós-Graduação da Fundação Ford.

interesses, virem a se organizar e reivindicar junto ao senhor José Maria Fernandes, ou a quem ele representasse, o alargamento de seus direitos.

Conclusão

Este estudo trabalhou com uma amostragem de anúncios de jornal das colunas “procura-se”. Com essas informações, foi possível estabelecer a composição social do conjunto da população que negociava a sua força de trabalho nas áreas urbanas do Rio de Janeiro no período analisado. Primeiramente tentei mostrar que tal negociação dependeria da conjuga- ção de uma série de fatores. A preferência explicitada pelos anunciantes poderia ser informada em visão de mundo muito particular, articulada com possibilidades circunstanciais. Por exemplo, em atenção à expansão da economia, dispor da reserva de mão de obra disponível, provavelmente era a alternativa dos empregadores, priorizando, entretanto, o indivíduo capaz de realizar o trabalho com desenvoltura e eficiência.

A “proficiência” era um recurso que, independentemente da cor/condi- ção de seu possuidor, determinava a participação do indivíduo nos mun- dos do trabalho. E, desde a instalação de manufatura com alguns níveis de especialização, indivíduos escravizados provaram estarem nas “cir- cunstâncias” de substituírem os artesãos livres em suas artes mecânicas. Imigrantes e nacionais livres, muitos dos últimos com estreitas relações com o passado escravista, juntos, tiveram de, na experiência do trabalho, aprender a qualificar sua mão de obra para atender as demandas por um trabalhador mais especializado. Assim, diferentes sujeitos, diferenciados a partir de critérios jurídicos, de cor, nacionalidade e por suas habilidades manuais, participaram, como trabalhadores escravizados e livres, assala- riados ou não, na economia urbana do Rio de Janeiro nas décadas finais do século XIX.

Indubitavelmente, ainda que a condição social, a naturalidade e a na- cionalidade interferissem na definição do lugar social ocupado pelo indi- víduo também nas relações de trabalho, a cor era a marca mais premen- te, aquela da qual não podia se distanciar. Se o silêncio sobre a cor teve significados de liberdade em contextos históricos específicos, o fato de Marcelo Badaró Mattos considerar que o racismo “espraiou-se” “de tal forma nas relações sociais do pós-Abolição que seria difícil não encontrá-

-lo como parte do “senso comum” da época”,68 indica que os significados

de liberdade operados por esse sigilo não resultaram em relações sociais mais igualitárias. Não apagaram os significados da escravidão. Daí a ne- cessidade de se desnaturalizar este “senso comum”.

68 MATTOS, Marcelo Badaró. Escravizados e livres: experiências comuns na formação da casse operá-