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Mas não se trata apenas de delegar ao progresso científico e tecnológico, es- pontaneamente, essa tarefa de promover a libertação e felicidade de homens e mu- lheres. A evolução do modo de produção capitalista deveria ampliar o tempo livre de toda a sociedade mas tal seria uma condição necessária, porém não suficiente, para a plena realização de toda a potencialidade intelectual e histórica do ser humano.

Há um outro importantíssimo aspecto, talvez decisivo, porém freqüente- mente olvidado, a bloquear a humanização do Homem: o trabalhador - o ser hu-

mano produtor da sua própria natureza nas sociedades modernas - veio sendo alienado pelo capital, tanto do resultado, quanto do seu próprio trabalho*.*

O que constitui a alienação do trabalho? Primeiramente, ser o trabalho externo ao trabalhador, não fazer parte de sua na- tureza e, por conseguinte, ele não se realizar em seu trabalho mas negar a si mesmo, ter um sentimento de sofrimento em vez de bem-estar, não desenvolver livremente suas energias mentais e físicas mas ficar fisicamente exausto e mentalmente deprimido [...] Seu trabalho não é voluntário, porém imposto, é trabalho forçado. Ele não é a satisfação de uma necessidade, mas apenas um meio para satisfazer outras necessidades. [...] Por fim o caráter exteriorizado do trabalho para o trabalha- dor é demonstrado por não ser o trabalho dele mesmo mas trabalho para outrem, por no trabalho ele não se pertencer a si mesmo mas sim a outra pessoa49.

Tendo sempre em mente que Marx não está falando de um trabalhador qual- quer, mas de um indivíduo social concebido tácita e teoricamente como produtor imediato de valores de uso e do conhecimento (para a produção e para o consumo) incorporado nesses valores de uso, encontramos no processo de alienação o germe da progressiva absorção daquele conhecimento pelo capital e, conseqüentemente, da progressiva desqualificação do trabalhador, da sua redução a indivíduo redun- dante, excedente, fungível, subordinado. O produto do seu trabalho não mais lhe pertence, mas “pertence a outro homem que não é o trabalhador”50.

Assim, graças ao trabalho alienado o trabalhador cria a re- lação de outro homem que não trabalha e está fora do pro- cesso de trabalho, com o seu próprio trabalho. A relação do trabalhador com o trabalho também provoca a relação do capitalista [...] com o trabalho. A propriedade privada é, portanto, o produto, o resultado inevitável, do trabalho alie-

* É verdade que a discussão direta da alienação, tão presente no “jovem Marx”, quase que desaparece nas suas

obras mais maduras. Porém, concordamos com Harrington quando diz que “sua visão, seus valores fundamentais, persistiram por toda a vida”48. A alienação, bem como outras categorias melhor desenvolvidas nos manuscritos

produzidos por Marx antes de mergulhar, com quase exclusividade, no estudo da Economia Política, está subjacente a conceitos fundamentais expostos em O Capital. Orientou, no geral, as suas análises, embora não precisasse ser a todo instante relembrada. Se ninguém pode afirmar com segurança, podemos ao menos nos questionar sobre quais teriam sido os rumos teóricos do chamado “marxismo” se obras como os Manuscritos..., a Ideologia alemã, os Grundrisse, entre outras, tivessem sido estudadas por Kautski, Rosa Luxemburgo, Lênin, Lukács, Gramsci, Bernstein etc. As polêmicas, obviamente, não teriam sido evitadas, mas o que veio a consolidar-se como o paradigma marxista seria provavelmente diferente.

nado, da relação externa do trabalhador com a natureza e

consigo mesmo. [A propriedade privada é] produto do tra- balho alienado, por outro lado, o meio pelo qual o trabalho é alienado, a realização dessa alienação51.

Se o trabalho é condição natural da existência, a propriedade privada torna- se o meio de sobrepor condições a esta condição. Basicamente, ela torna escasso o instrumento e o objeto do trabalho. Ela impõe a alguém que peça “licença” a ou- trem para poder trabalhar. A concessão da “licença” define as condições do traba- lho. Como esclarece Robert Heilbroner, “a essência do trabalho é que a realização das tarefas esteja subordinada ao direito de alguns membros da sociedade em re- cusar o acesso de outros aos recursos vitais”52. Por isto, se por um lado, o desenvol-

vimento científico-técnico irá progressivamente liberando o homem do trabalho imediato, por outro, poderá criar uma nova dependência alienada, se não se fizer acompanhar da supressão da propriedade privada. Assim como o servo libertou-se da dominação feudal apenas para cair, transformado em operário, sob o domínio do capital industrial, o trabalhador industrial não poderia vir a ser um indivíduo social pleno em alguma outra sociedade futura, se nesta subsistissem os direitos de alguns para conceder, ou não, os meios de sobrevivência a outros.

A propriedade privada reduz o homem a “simplesmente um trabalha- dor”53 – e o itálico de Marx, aqui, é significativo. Não mais o trabalhador, o homem

no gozo de todas as suas potencialidades, mas um trabalhador, o homem venal, reduzido à utilidade que lhe é dada pelo capital e cujas necessidades, portanto, “reduzem-se à necessidade de mantê-lo durante o trabalho, de molde a não se extinguir a raça dos trabalhadores”54.

Quer nos parecer que, nas suas obras mais maduras, sobretudo n’O Capital, Marx nada mais fará (e este “nada mais” é demais!) do que demonstrar e documentar, empírica e teoricamente, todo o processo de animalização, ou ins- trumentalização, ou - com licença para o neologismo - “sintatização”, do homem trabalhador, processo este que, ao mesmo tempo, dialeticamente, deveria ser uma etapa histórica necessária à própria libertação do Homem, pela superação objetiva (determinada pela lógica inerente ao capital), da sua “aristotélica” con- dição de instrumento vivo de trabalho. Mas esta libertação exigiria, em algum momento, a Revolução, a intervenção consciente do Homem nos rumos da sua História. Caso contrário – mas Marx não parece querer dizê-lo - de instrumento ainda necessário, o trabalhador, vale dizer, o Homem ele mesmo, acabaria redu- zido, ou se reduzindo... a sucata.

A crítica de Marx à Economia Política reside substancialmente aí: Smith, Ricardo e outros perceberam o trabalho como fato central da economia e da so-

ciedade industrial então emergente, mas não avançaram, em suas análises, até o exame da apropriação pelo capital da dimensão semântica do trabalho, expres- sa na desqualificação do trabalhador como produtor de saber, de conhecimento científico-técnico. Intelectuais orgânicos do capital, precisavam justificar a con- dição à qual o trabalho fôra reduzido ao longo dos séculos XVIII e XIX:

O fato de o aumento das necessidades e dos meios de satis- fazê-las resultar em uma falta de atendimento das neces- sidades e meios de satisfazê-las, é demonstrado de várias maneiras pelo economista [...]. Primeiramente, reduzindo as necessidades do trabalhador às míseras exigências dita- das pela manutenção de sua existência física e reduzindo as atividades dele aos movimentos mecânicos mais abstratos, o economista assegura que o homem não tem necessidade de atividade ou prazer além daquelas; [...] ele transforma o trabalhador em um ser destituído de sentidos e necessida- des [...] Sua tese principal é a renúncia à vida e às necessi- dades humanas[...] Quanto menos se for, quanto menos se exprimir nossa vida, tanto mais se terá, tanto maior será a nossa vida alienada e maior será a economia de nosso ser alienado. Tudo o que o economista tira da gente sob a forma de vida e humanidade, devolve sob a de dinheiro e riqueza [...] O trabalhador deve ter apenas o que lhe é necessário para desejar viver, e deve desejar viver para ter isso55.