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Imaginemos, para maior clareza, uma economia com apenas dois indiví- duos interagindo - uma “robisonada”, diria Marx*. O indivíduo A necessita de um software. Pode gastar recursos materiais e o seu próprio tempo para desenvolvê- lo, mas pode recorrer ao indivíduo B, que já fez o trabalho e possui o resultado. Se B cobrar pelo software o equivalente ao que A teria gasto em material e tem- po, por conta própria, este deverá preferir realizar o trabalho ele mesmo. Se, no extremo oposto, B aceitasse entregar aquele resultado sem nada cobrar, A teria valorizado em 100% o seu tempo poupado (voltamos ao paradoxo do vidente, discutido no Capítulo 4). Logo, é na média entre esses dois extremos que poderá * “A Economia Política gosta de robisonadas”, anotou Marx, numa referência à tendência dos economistas para explicarem os fenômenos sociais através das motivações de um único indivíduo, isolado de qualquer relação social concreta5.

ser negociado o valor do tempo de trabalho de remoção da incerteza realizado por um e poupado a outro: nem A logrará se apropriar de todo o valor de seu não- tempo, nem B se apropriará de todo o valor de seu tempo de trabalho, o que reve- la o limite neguentrópico do sistema em seu conjunto, exprimindo a lei universal que subordina a neguentropia obtida por um subsistema ao aumento da entropia em outro subsistema, ou no ambiente como um todo. Ambos os subsistemas pas- sam, por isto, a se empenhar em absorver ao máximo a neguentropia do outro. Se puder, B imporá, através da força, o que julga ser o seu direito: somente entregará o software, se A aceitar as suas exclusivas condições. A reação de A será direta- mente proporcional: se lhe for possível, tratará de usar o programa e nada pagará por isto. Terá desvalorizado em 100% o trabalho informacional realizado por B, ou - o que dá na mesma - valorizado em 100% o seu ganho de tempo. A isto, B, muito irritado, acusará de “pirataria”...

É claro que, na vida real, onde os agentes não se encontram nessa situação tão individualizada, um amplo universo de interações - ou de “ruídos” - possi- bilitam múltiplas compensações neguentrópicas. Cada indivíduo ou empresa é um nível de organização gerando ruídos sociais que provocam a reorganização e crescimento do sistema social e econômico como um todo. Então, acordos social- mente pactuados equalizam ou deve riam equalizar os ganhos e perdas mútuos. Mas como, no concreto da sociedade capitalista, a apro priação da informação social lhe é inerente, a “pirataria” vem a ser o seu oposto e propõe-se como um comportamento legítimo para a ressocialização da informação.

As dimensões alcançadas pela “pirataria” nesta sociedade nos sugerem en- faticamente que não a podemos tratar como um fenômeno marginal ou anômalo. Ela exprime o pólo oposto de uma mesma racionalidade, ela é inerente à lógica do capital-informação. Uma pequena nota na Gazeta Mercantil de 8 de agosto de 1991, nos informa que, entre 1987 a 1991, os produtores norte-americanos de programas de computador perderam, cumulativamente, cerca de US$ 10 bilhões, num cálculo conservador, por conta da “pirataria”, apenas nos Estados Unidos6.

A nota deixa claro que a estimativa se refere ao uso não licenciado de software por parte de empresas e grandes corporações, permitindo-nos inferir que aquele montante poderia ser bem maior se o levantamento incluísse milhões de usu- ários residenciais, profissionais liberais, pequenos e médios empresários, não somente nos Estados Unidos, mas em todo o mundo*.

* O tempo tratou de demonstrar que a “pirataria” não era um fenômeno marginal ou anômalo, mas à época (pri- meira metade da década 1990), era escasso, não raro desprezado ou até ignorado, sobretudo neste nosso Brasil, o debate sobre a contradição entre a natureza socialista da informação e as pressões por sua privatização capitalista. Atingida a segunda década do século XXI, os números conhecidos são muito mais dramáticos, sobretudo após o amplo desenvolvimento da internet (ainda incipiente àquela época), dos equipamentos domésticos de reprodução digital e dos sistemas P2P. E junto com o avanço da “pirataria”, avançam também as leis repressivas, dentre estas o ACTA (Anti-Couterfeiting Trading Agreement), em negociação no momento em que esta nota está sendo redigida. (N2011).

A “pirataria” não atinge apenas programas de computador. Projetistas de circuitos integrados, produtores de fitas de vídeo e de discos, proprietários de marcas de roupas, canetas e de outros utensilhos cujo uso também exprime simbolicamente status - um vasto conjunto de setores cujas rendas se baseiam em alguma representação material de informação apropriada - sofrem pesados prejuízos com os “piratas”. A “pirataria” raramente envolve produtos específicos, destes que relacionam um ou poucos subsistemas geradores e, também, um ou poucos subsistemas receptores, como, por exemplo, grandes projetos tecnoló- gicos ou de engenharia. Ela atinge, sobretudo, os produtos dirigidos à massa de consumidores. A “pirataria” também requer, em geral, facilidade de replicação (baixíssimo custo de tempo), incluindo a disponibilidade de suportes físicos sim- ples e relativamente baratos (por exemplo, um jogo de disquetes; fitas de vídeo etc.). Como é da natureza do capitalismo, uma parte dos “piratas” busca obter rendas informacionais “subsidiárias” (no conceito de Bates), replicando produtos de sucesso no “mercado”. Mas grande parte dos indivíduos se interessa apenas por desfrutar dos valores de uso contidos nos suportes físicos comercializados pelos apropriadores da informação social: são os casos típicos da reprodução, por parte de milhões de pessoas, dos mais populares programas aplicativos de computador; da cópia de livros através de máquinas fotocopiadoras etc.

A “pirataria” já estava explicada e até parecia prevista na teo ria marginalista do valor, conforme a discutimos no Capítulo 4: se o custo marginal de uma “peça de informação” é zero, por que alguém pagaria por ela?, conforme bem entenderam Kenneth Arrow e Benjamin Bates. Verificamos agora que também uma teoria do valor-trabalho, conforme a estamos sugerindo e desenvolvendo neste nosso es- tudo, demonstra a racionalidade social e econômica da “pirataria” nos marcos do capital-informação, na medida em que, ao invés de acordos socialmente pactuados que regulem a partilha das rendas informacionais mutuamente geradas pelo tra- balho com informação, o que se está expandindo nas sociedades capitalistas são mecanismos políticos, jurídicos e econômicos que impõem a apropriação dessas rendas por apenas um dos pólos da interação: o pólo detentor do capital.