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* É verdade que, já no século XXI, iniciativas como o “Creative Commons”, o movimento GNU-Linux e similares começaram a expressar a crescente tomada de consciência, pela sociedade, dos processos em curso de apropriação da informação, pelo capital. Em meados da década 1990, porém, estas ainda não eram questões muito debatidas, sobretudo no Brasil (N2011).

** Nessa mesma época, o governo brasileiro, curvando-se à sua dependência ante o poder imperial norte-americano, fez abortar o trabalho de engenharia reversa realizado pela firma nacional Unitron, que resultou numa replicação do mesmo Macintosh desvendado pela Liga de Prometeu.

Se uma grande parte da reprodução e disseminação não autorizada de produtos informacionais é instantânea e, mesmo, racional, tendo por objetivo a apropriação bem capitalista dos valores “subsidiários” da informação, uma ou- tra parte começa a se apresentar de forma politicamente consciente, através de agentes sociais que se recusam o rótulo depreciativo de “piratas” e, ao contrário, reivindicam o papel de modernos Prometeus, a promover a difusão e democrati- zação do conhecimento.

O campo onde, talvez, se observe maior conscientização política sobre estas novas questões é o dos alimentos, medicamentos e biotecnológicos. Aqui também assistimos a uma evolução em tudo por tudo similar ao processo que se desenrola nas indústrias de informática e de outros produtos simbólicos, na medida em que vai ficando cada vez mais transparente a importância deter- minante do “conteúdo informacional” nos produtos químicos, biotecnológicos, farmacêuticos etc. Alimentos industrializados e medicamentos são suportes materiais nas formas de drágeas, líquido, farelo ou pasta, cujo valor principal consiste na informação neles contida. Esta informação é o conhecimento quí- mico processado nas mentes de cientistas, engenheiros e técnicos, aplicado à manipulação e combinação dos elementos da natureza que, nessas formas combinadas, devem produzir efeitos precisos, conforme o uso que delas se faça, através de seus suportes. Uma vez tornado público, o valor-informação pode ser apropriado, com certa facilidade, por outras unidades empresariais gera- doras ou processadoras de informação química e biológica, do que resultam produtos similares e maior poder de barganha dos usuários, na disputa pelo reparte das rendas informacionais aí geradas.

O desenvolvimento científico e tecnológico realizado pelo capital propor- cionou o conhecimento e a intervenção humana no âmago dos processos infor- macionais: naqueles realizados pela natureza orgânica. O capital tornou possível modificar espécies animais ou vegetais com fins alimentícios ou farmacêuticos e, claro, empresas capitalistas passaram a requerer patentes, ora para os proces- sos de modificação, ora para as variedades modificadas de animais e vegetais. Como as regras estabelecidas pelo Acordo de Paris de 1883, sequer considera- vam a possibilidade de nelas se incluir a matéria viva, pouco a pouco, a partir dos anos 30, leis complementares vieram sendo introduzidas pelos Estados Unidos e pelos países europeus, atendendo àquelas pressões. Nos anos 80, as conquis- tas da engenharia genética sugeriram ainda maior alargamento dos direitos de patenteamento, para que abarcassem genes e microorganismos descobertos ou desenvolvidos através de experiências em laboratório e, por extensão, os seres naturais (plantas, animais e até humanos) que pudessem carregar originalmente material genético ou outros compostos orgânicos passíveis de aproveitamento tecnológico e industrial41, 42.

As regras do Acordo de Paris davam a cada país signatário, flexibilidade para adotá-las conforme os seus específicos interesses. A concessão de paten- tes podia não ser estendida a todos os setores industriais, sendo comum delas serem excluídos os remédios e os alimentos. Por isso, até os anos 80, a grande maioria dos países relativamente importantes do mundo, dentre eles o Brasil, não concedia patentes a produtos farmacêuticos e alimentares. Desde então, vem acontecendo na área das patentes para fármacos, produtos de origem ge- nética, alimentos etc., o mesmo que se passa com os circuitos integrados e pro- gramas de computador. Através de organismos internacionais, como a OMC, ou por pressões diretas governo-a-governo, novas regras são impostas, atenden- do, principalmente, aos interesses das grandes transnacionais do setor químico e farmacêutico.

Contra essas pressões, constituíram-se Organizações Não Governamentais (ONGs) interessadas em ampliar os debates sobre o patenteamento de remédios e seres vivos; articularam-se agricultores temerosos do poder monopolístico dos fornecedores de sementes e matrizes; mobilizaram-se empresários na defesa dos seus direitos para fabricar produtos similares; pronunciaram-se cientistas que há décadas trabalham melhorando espécies vegetais ou animais e nada ga- nham com isso, além de seus salários, como Jaap Hardon, do Centro de Recursos Genéticos da Holanda:

As pesquisas com melhoramento de plantas desenvolvidas pelo setor público têm um papel importantíssimo no de- senvolvimento da agricultura e na produção de alimentos, especialmente nos países em desenvolvimento. O sistema de patentes é monopolista e traz conseqüências negativas aos programas de melhoramento vegetal. Uma empresa privada pode tornar-se proprietária de um gene que regula uma característica importante em uma determinada plan- ta e impedir que ele seja utilizado por melhoristas em suas pesquisas. O livre acesso aos recursos genéticos, condição básica do melhoramento vegetal, é afetado perigosamente pelas patentes. Portanto, eu como melhorista, sou contra a extensão de patentes para genes, plantas e organismos vivos. As patentes não beneficiam nem os melhoramentos, nem os melhoristas e isso é verdade tanto na Europa, quan- to no Brasil43.

O “direito à cópia”, isto é, à produção de similares, ganha foros de legiti- midade, em nome dos interesses do consumidor e do próprio desenvolvimento

tecnológico do conjunto da sociedade, conforme entende a entidade brasileira Associação dos Laboratórios Nacionais:

O não reconhecimento de patentes nas áreas de alimentos e medicamentos é perfeitamente legal do ponto de vista jurídico e das convenções internacionais, além de histori- camente consagrado como direito de muitos países hoje desenvolvidos. Ele permitirá a oferta de produtos similares por empresas nacionais e até estrangeiras, provocando na- tural queda de preços e garantindo abastecimento do mer- cado. A cópia é parte natural intrínseca do aprendizado. O país poderá inovar após desenvolver o conhecimento atra- vés da cópia44.

O debate revelou o que os funcionários e prepostos do capital-informação teriam preferido esconder: está em questão o livre acesso à informação social que poderia permitir à humanidade se apropriar, de modo justo e equitativo, dos recursos que obtém da Natureza. Depoimentos como os transcritos acima indicam o grau de percepção dos atores sociais quanto às conseqüências da apropriação da informação social por parte de um reduzido grupo de grandes corporações capitalistas. Não logram avançar propostas alternativas. São basica- mente manifestações que exprimem disposição de resistir. Como essa disposição se desdobrará, por enquanto, preferimos considerá-la uma questão em aberto.