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Análise crítica da proposta de perda alargada à luz da regra da proporcionalidade

CAPÍTULO 5 – PROPOSTA DE MODELO PROCESSUAL PENAL PATRIMONIAL

5.5 Da perda clássica à perda alargada

5.5.3 Análise crítica da proposta de perda alargada à luz da regra da proporcionalidade

como a propomos, é preciso analisá-la sob a ótica da regra da proporcionalidade.611

De fato, a perda alargada implica restrição ao direito fundamental à propriedade. Logo, é preciso aferir se a perda alargada, do modo como pretendida, passa pelos exames da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito.612

611 Para análise dos aspectos terminológicos da regra da proporcionalidade, cf. Virgílio Afonso da Silva, O

proporcional..., p. 24-27. Ainda, o mesmo autor, op. cit., p. 27-30, distingue a regra da proporcionalidade da razoabilidade. Esclarece que a regra da proporcionalidade surgiu no “desenvolvimento jurisprudencial do Tribunal Constitucional alemão” e, na forma em que se desenvolveu na jurisprudência constitucional alemã, “tem ela uma estrutura racionalmente definida, com sub-elementos independentes – a análise da adequação, da

necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito – que são aplicados em uma ordem pré-definida, e que conferem à regra da proporcionalidade a individualidade que a diferencia, claramente, da mera exigência de razoabilidade.”

612 Virgílio Afonso da Silva, O proporcional..., p. 24, afirma que a “regra da proporcionalidade é uma regra de

interpretação e aplicação do direito” e seu objetivo “é fazer com que nenhuma restrição a direitos fundamentais tome dimensões desproporcionais”. Daí, conclui o autor, a razão de o ato estatal que implique restrição a direitos fundamentais passar pelos exames da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito. Para

O ato estatal cuja análise crítica passa a ser feita é de natureza legislativa.613 Consiste na instituição, no Direito Penal brasileiro, da perda alargada.

Virgílio Afonso da Silva afirma que a regra da proporcionalidade não mais pode ser usada como sinônimo de proibição de excesso, conforme usado na construção do Tribunal Constitucional alemão. Esclarece o autor que “cada vez mais vem ganhando importância a discussão sobre a sua utilização para finalidade oposta, isto é, como instrumento contra a

omissão ou contra a ação insuficiente dos poderes estatais.” Assim, além da proibição do excesso, fala-se hoje na proibição de insuficiência.614

Com isso, surgem duas perspectivas passíveis de análise crítica, conforme a regra da proporcionalidade, para a proposta da adoção da perda alargada. A inexistência do instituto implica uma insuficiência legislativa? Para a hipótese do advento da perda alargada, qual a justa medida para essa categoria jurídica a fim de amoldar-se aos critérios da proporcionalidade, evitando-se o excesso?

Para a primeira questão, viu-se que inexiste no direito brasileiro mecanismo apto a questionar o patrimônio desproporcional do condenado, especialmente nos casos de criminalidade organizada, sem qualquer vinculação com o fato discutido em juízo. Essa situação afigura-se em descompasso com três aspectos: a ordem constitucional vigente, os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil e a realidade social.

Com isso, identifica-se uma insuficiência legislativa. Logo, surge o dever de se suprir essa omissão.

Para a outra indagação, é preciso que a análise perquira as sub-regras da regra da proporcionalidade, na ordem pré-definida para sua aplicação: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.615

análise da proporcionalidade “como método para a justificação de intervenções em direitos fundamentais e para solução de suas colisões”, cf. Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins. Teoria geral..., 2ª ed., p. 159-209. Ver, ainda, sobre o princípio da proporcionalidade e sua relação com os direitos fundamentais, Peter Häberle. La

garantia del contenido esencial de los derechos fundamentales en la ley fundamental de Bonn. Trad. Joaquín Brage Camazano. Madrid: Dykinson, 2003, p. 67-69.

613 E esse pressuposto de natureza formal é o primeiro para que restrições a direitos fundamentais estejam em

conformidade com a proporcionalidade: dever de observância ao princípio da legalidade. O outro é de natureza material, e impõe a justificação teleológica da medida. Cf. Nicolas Gonzalez-Cuellar Serrano,

Proporcionalidad..., p. 69-71.

614 O proporcional..., p. 27.

615 Virgílio Afonso da Silva, O proporcional..., p. 34, afirma que para a correta aplicação da regra da

proporcionalidade faz-se imprescindível a obediência à “ordem pré-definida em que as sub-regras se relacionam.” Acrescenta o autor: “A real importância dessa ordem fica patente quando se tem em mente que a aplicação da regra da proporcionalidade nem sempre implica a análise de todas as suas três sub-regras. Pode-se dizer que tais sub-regras relacionam-se de forma subsidiária entre si.” [...] “Em termos claros e concretos, com subsidiariedade quer-se dizer que a análise da necessidade só é exigível se, e somente se, o caso já não tiver sido resolvido com a análise da adequação; e a análise da proporcionalidade em sentido estrito só é imprescindível, se o problema já não tiver sido solucionado com as análises da adequação e da necessidade.”

Com a perda alargada, parte-se do princípio de que haverá restrição ao direito fundamental à propriedade. Enquanto não demonstrada a ilegitimidade do patrimônio, segundo os critérios adotados pelo legislador, presume-se que o mesmo é legítimo.

É adequada a instituição da perda alargada no Brasil?

O ato estatal será adequado se o seu emprego permitir que o objetivo pretendido seja alcançado ou ao menos fomentado.616 A perda alargada visa à prevenção e repressão do uso, do gozo e da disposição do patrimônio ilícito, desproporcional aos ganhos licitamente obtidos, do agente condenado por uma das infrações previamente estabelecidas pelo legislador.617 Como visto, a perda alargada incidirá somente após a condenação, e a partir de um rol restritivo de infrações penais, vinculadas à criminalidade organizada.

A medida afigura-se invasiva, pois alcança patrimônio não necessariamente vinculado ao crime especificamente discutido em juízo. Porém incide sobre patrimônio ilegítimo, não tutelado juridicamente e em situações excepcionais, previstas criteriosamente em lei. Com isso, fomenta-se o repúdio estatal ao patrimônio ilegítimo, derivado da criminalidade organizada, daí ser adequada a instituição da perda alargada.

É necessária a instituição da perda alargada no Brasil?

A necessidade vincula-se ao alcance do objetivo e do fomento do ato estatal que restringe direito fundamental, mas na menor intensidade possível. Ou seja, a limitação do direito fundamental deve ocorrer no menor nível de ofensa. Para tanto, o exame da necessidade revela-se de natureza comparativa. É preciso verificar quais são as medidas passíveis de atingir determinados objetivos e fomentos estatais. A comparação entre elas permitirá aferir qual a medida menos agressiva ao direito fundamental que será limitado.618 A perda alargada terá seu alcance limitado. Apenas nas hipóteses de condenação por infrações penais previamente definidas em lei, e vinculadas à criminalidade organizada, é que será possível buscar a declaração de perda alargada. Essa limitação objetiva já implica razoável diminuição das hipóteses de supostas ofensas ao direito de propriedade.

Além disso, inexiste no ordenamento jurídico brasileiro hipótese que permita atingir no bojo de um processo penal, o patrimônio ilícito daquele que é condenado por infração

616 Virgílio Afonso da Silva, O proporcional..., p. 37.

617 Depois da observância do princípio da legalidade, de natureza formal, o princípio da justificação teleológica,

de natureza material, surge como o segundo pressuposto para a aplicação da proporcionalidade. A finalidade da medida pretendida há de ser constitucionalmente legítima. Sobre isso, ver Nicolas Gonzalez-Cuellar Serrano,

Proporcionalidad..., p. 99-106.

618 Virgílio Afonso da Silva, O proporcional..., p. 38. O autor bem exemplifica o assunto: “Suponha-se que, para

promover o objetivo O, o Estado adote a medida M1, que limita o direito fundamental D. Se houver uma medida

M2 que, tanto quanto M1, seja adequada para promover com igual eficiência o objetivo O, mas limite o direito fundamental D em menor intensidade, então a medida M1, utilizada pelo Estado, não é necessária.”

penal vinculada à prática da criminalidade organizada, sem a necessidade de se demonstrar o específico elo com a infração penal discutida em juízo.619

É preciso buscar outras medidas que possam igualmente atingir os objetivos e fomentos pretendidos com a perda alargada. Da comparação entre elas resultará a medida menos invasiva à propriedade.

Duas outras vias surgem como possíveis para prevenir e reprimir o patrimônio derivado de atividade ilícita, a partir da condenação penal. Uma delas está em invocar a via administrativa fiscal para se atingir esse intento. A outra está no uso da via civil, à semelhança do que ocorre na ação de responsabilidade civil por ato de improbidade administrativa (Lei 8.429/1992).

A via fiscal não necessariamente implicará repressão ao patrimônio ilícito, senão meio hábil a exigir o recolhimento de tributos, sem qualquer preocupação com a origem da aquisição patrimonial. Portanto, a medida não é adequada para a finalidade almejada.

A via civil é possível,620 porém não elimina a possibilidade de se aproveitar o processo penal para aplicação da perda alargada. Aliás, é exatamente esse mecanismo que ocorre com a reparação do dano. A perda de bens clássica, declarada no processo penal, também poderia ser remetida para o juízo civil, autonomamente. A ideia de se aproveitar o processo penal em ambos os casos, na reparação do dano e na perda de bens, leva em conta a natureza pública e social dessas consequências da condenação penal.

Vê-se, pois, que a perda alargada, inserida no âmbito do processo penal, e do modo como projetada, não gera restrição maior ao direito de propriedade do que em outras vias. Além disso, a relevância pública e social do instituto justifica o aproveitamento do processo penal para sua aplicação.

Tais circunstâncias geram a presença da necessidade da medida.

A instituição da perda alargada encontra amparo na sub-regra da proporcionalidade em sentido estrito?

A proporcionalidade em sentido estrito viabiliza “o sopesamento entre a intensidade da restrição ao direito fundamental atingido e a importância da realização do direito fundamental que com ele colide e que fundamenta a adoção da medida restritiva”.621

619 A exceção fica por conta da possibilidade de se obter a declaração de perda dos ganhos ilícitos derivados da

prática de improbidade administrativa, cujas situações são restritas aos agentes públicos e terceiros beneficiários (Lei 8.429/1992).

620 Há em trâmite no Congresso Nacional o Projeto de Lei 5.681/2013, que se iniciou na Câmara dos Deputados,

que cuida de proposta de instituição da ação civil pública visando à extinção de domínio.

A ponderação entre o fim a ser alcançado e fomentado (prevenção e repressão ao patrimônio ilícito) e a limitação pretendida (restrição à propriedade) é imprescindível para se aferir a relevância da finalidade almejada. Em outras palavras, o fim a ser atingido justifica ou não a restrição?

A restituição à sociedade de um patrimônio desproporcional e sem comprovação lícita justifica a restrição à propriedade. Logo, a instituição da perda alargada no Brasil afigura-se proporcional.

5.6 O procedimento e o processo penal patrimonial

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