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O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e a perda de bens

CAPÍTULO 3 – MODELOS INTERNACIONAL E ESTRANGEIRO SOBRE A PERDA DE

3.8 O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e a perda de bens

O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) já se manifestou em diversas ocasiões sobre aspectos patrimoniais no processo penal, como a perda de bens374, incluindo as hipóteses previstas na legislação antimáfia italiana e em outros ordenamentos europeus.375 O ponto principal dessas discussões diz respeito à eventual violação ao princípio da presunção de inocência, previsto no § 2º do art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem: “qualquer pessoa acusada de uma infração presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada.”

Como regra, discute-se o procedimento de perda de bens, previsto em alguns países europeus, após a decisão quanto à culpabilidade. E, quanto a isso, entende o TEDH que não se aplica o princípio da presunção de inocência376 à perda de bens. Argumenta-se que esse princípio fica reservado apenas para a análise da culpabilidade.377

No caso Phillips v. Reino Unido378, após a condenação pelo delito de tráfico de drogas, aplicou-se, por ocasião do procedimento de perda de bens, o critério probatório fundado no processo civil, não apresentando o acusado provas suficientes para demonstrar que o patrimônio em discussão tinha proveniência legítima.379

373 Conforme visto, a alienação antecipada foi adotada pelo Brasil, inclusive no regime jurídico do Código de

Processo Penal (art. 144-A). Ver item 2.5.1

374 Como referência de alguns casos, cf.: Geerings c. Holanda, acórdão de 01 de junho de 2007; Phillips c. Reino

Unido, acórdão de 05 de julho de 2001; Asan Rushiti c. Áustria, acórdão de 21 de março de 2000; Van Offeren c. Holanda, acórdão de 05 de julho de 2005; Deweer c. Bélgica, acórdão de 27 de fevereiro de 1980; Minelli c. Suíça, acórdão de 25 de março de 1983; Allenet de Ribemont c. França, acórdão de 10 de fevereiro de 1995; Sekanina c. Áustria, acórdão de 25 de agosto de 1993; Asan Rushiti c. Áustria, acórdão de 21 de março de 2000; Lamanna c. Áustria, acórdão de 10 de julho de 2001; Salabiaku c. França, acórdão de 07 de outubro de 1988; Baars c. Holanda, acórdão de 28 de outubro de 2003.

375 Cf. Anna Maria Maugeri, La conformità..., p. 180-190. A autora realiza análise específica sobre a

jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem em relação ao confisco antimáfia e à ação in rem.

376 Cf. Phillips v. Reino Unido, acórdão de 05 de julho de 2001. Este caso também foi utilizado como paradigma

no caso Geerings v. Holanda, acórdão de 01 de março de 2007.

377 Essa decisão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos reforça a necessidade de equilíbrio ao tratar da

prova e do acertamento patrimonial, o que se buscou atingir com o modelo proposto no item 5.7.5.

378 Cf. Phillips v. Reino Unido, acórdão de 05 de julho de 2001.

379 É interessante destacar o voto parcialmente vencido de Nicolas Bratza, que concordou com a conclusão, no

sentido de que não houve violação à Convenção Europeia, em relação ao art. 6º, §§ 1º e 2º, porém registrou discordância quanto à fundamentação da decisão final, pois entendeu que a presunção de inocência deve ser aplicada durante todo o processo penal, seja por ocasião da análise do mérito, seja em relação à fase de análise da perda de bens. Contudo, ao final, concluiu que houve respeito ao direito de defesa e a presunção de inocência quanto à perda de bens, pois os bens adquiridos ultrapassaram os limites do razoável (Phillips v. Reino Unido, acórdão de 05 de julho de 2001). Percebe-se, da análise desse voto, que houve preocupação, quanto à perda de

O TEDH discutiu situações em que a perda de bens se deu após a absolvição do acusado. Nesses casos, a análise da perda estendeu-se para outros crimes, semelhantes ao imputado, com o fim de, além da própria perda, aplicar-se uma multa autônoma, decorrente da conclusão da existência de patrimônio de origem ilícita.380

Nessa situação o TEDH posicionou-se no sentido da existência de violação à presunção de inocência, em razão da absolvição definitiva, argumentando que mesmo expressões pejorativas atinentes ao acusado, no caso de absolvição, são indevidas, assim como qualquer outra afirmação de fundada suspeita -- o que dirá, pois, de decisões que impliquem perda de bens.381

Em relação à perda de bens prevista na legislação antimáfia italiana, conhecida por

confisco antimáfia, o TEDH reconheceu seu caráter preventivo e não punitivo. Nesse caso, inexiste violação ao direito de propriedade, à presunção de inocência e ao princípio da legalidade.382 No entender dessa corte internacional, o confisco antimáfia possui a finalidade de impedir o uso ilícito de bens.383 Assim, o TEDH reconhece a validade das razões de política criminal adotadas na Itália para garantia da ordem e da pacífica convivência social.384 O TEDH admite, em razão de indícios suficientes, a presunção de que os bens de pessoa acusada de pertencer a organização criminosa constituem proveito de atividade ilícita. O fundamento para tal compreensão está na compatibilidade entre a presunção de inocência e o subjacente princípio da culpabilidade existente na presunção de ilicitude dos bens, anteriormente referida. Utiliza-se do argumento de que presunções de fato e de lei estão presentes em muitos Estados e não são contrárias às normas previstas na Convenção Europeia de Direitos Humanos. Considera-se também que tal presunção de ilicitude somente é possível a partir da convivência com o direito de defesa, ou seja, da possibilidade de o acusado rejeitar, no plano probatório, tal presunção, com o fim de se garantir o fair trial.385

bens, com o princípio da proporção, em relação ao critério probatório a ser adotado para a definição do procedimento.

380 Esse procedimento é previsto no ordenamento penal holandês (Código Penal, art. 36-E, § 2º). O conteúdo

exposto foi extraído do caso Geerings v. Holanda, acórdão de 01 de março de 2007.

381 Cf. Geerings v. Holanda, acórdão de 01 de março de 2007.

382 Cf. Anna Maria Maugeri, La conformità..., p. 180-181. A autora esclarece que o reconhecimento da natureza

preventiva e não punitiva do confisco antimáfia teve origens nos casos Marandino, de 15 de abril de 1991, discutido apenas no âmbito da Comissão Europeia de Direitos Humanos, e Raimondo v. Itália, 22 de fevereiro de 1994, este já no âmbito do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Também menciona diversos outros decididos pelo TEDH: Prisco v. Itália, 15 de junho de 1999; Ciulla v. Itália, 22 de fevereiro de 1999; Guzzardi v. Itália, 6 de novembro de 1980; Bocellari e Rizza v. Itália, 13 de novembro de 2007.

383 Cf. Anna Maria Maugeri, La conformità..., p. 181. 384 Cf. Anna Maria Maugeri, La conformità..., p. 182.

385 Cf. Anna Maria Maugeri, La conformità..., p. 183. A autora menciona os seguintes casos sobre isto: Prisco v.

Itália, 15 de junho de 1999; Salabiaku v. França, 07 de outubro de 1988; Pham Roang v. França, 25 de setembro de 1992; Bocellari e Rizza, 16 de março de 2006.

Como meio de garantir o justo processo386, o TEDH ressalta a relevância do direito a audiências públicas em relação aos procedimentos de perda de bens, mediante a aplicação do princípio da publicidade, imprescindível a um ordenamento jurídico democrático.387

O TEDH deu caráter civil ao procedimento de perda previsto no Drug Trafficking Act, de 1994, do Reino Unido, em relação ao confisco de dinheiro derivado da prática de tráfico de drogas. A medida implica uma inversão do ônus probatório, cabendo ao acusado demonstrar a origem lícita do dinheiro apreendido. Adota-se, pois, o standard civil da prevalência da probabilidade de ilicitude do dinheiro em jogo.388

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