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Presunção de inocência como direito fundamental

CAPÍTULO 5 – PROPOSTA DE MODELO PROCESSUAL PENAL PATRIMONIAL

5.7 A prova e o processo penal patrimonial

5.7.2 Presunção de inocência como direito fundamental

A inserção da presunção de inocência na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, foi um marco importante no avanço do processo penal. Para a época, consistia numa drástica mudança de rota: da presunção de culpa ia-se para presunção de inocência.658

Após o surgimento no plano filosófico, esse início de positivação exerceria, mais tarde, forte influência nas legislações subsequentes, porém não sem antes passar por um natural processo de maturação da real compreensão do sentido e do alcance da presunção de inocência.

Entre o marco histórico do início de positivação da presunção de inocência e sua consagração como direito fundamental, no plano internacional – o que se deu a partir da Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 1948659 –, houve muita resistência a essa

656 Maurício Zanoide de Moraes, Presunção..., p. 90. 657 Maurício Zanoide de Moraes, Presunção..., p. 94.

658 Maurício Zanoide de Moraes, Presunção..., p. 95-96, afirma o seguinte: “[...] os iluministas bem se

aperceberam que a mudança da “presunção de culpa” – até então única existente na história processual penal – para a presunção de inocência provocaria uma profunda ruptura com o passado, permitindo a inauguração de uma nova história processual penal”. Ver, ainda, Alexandra Vilela, Considerações..., p. 33-35.

659 Alexandra Vilela, Considerações..., p. 53, esclarece que após as “duas guerras mundiais, com os regimes

totalitários instalados, a Europa volta a sentir a necessidade de reagir contra a barbárie que encerra, necessariamente, o constante violar dos direitos humanos. Volta a sentir, enfim, a necessidade de restabelecer o sistema político de direitos e liberdades individuais e de conceder protecção aos direitos do homem, não ao nível de cada país, mas sim numa acção concertada ao nível internacional, com a consciência de que o tratamento a outorgar a cada indivíduo ultrapassa o plano interno de cada Estado”. Conclui a autora que foi assim que a presunção de inocência passou para os textos internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948.

nova concepção, possibilitando a permanência da velha ideia da presunção de culpa.660

No Brasil, somente com a Constituição de 1988 a presunção de inocência foi expressa no texto constitucional: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (CF, art. 5º, LVII).661

Em razão da própria linguagem utilizada no texto constitucional diz-se também presunção de não culpabilidade. Conquanto haja eventuais tentativas de se estabelecer distinção entre uma expressão e outra, o conteúdo entre elas é idêntico.662

Vê-se, pela leitura do texto constitucional, que o núcleo da presunção de inocência coincide com a ausência de culpa, até o advento da situação jurídica incriminadora: o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

O estudo das dimensões subjetivas e objetivas dos direitos fundamentais também se aplica à presunção de inocência.663

Segundo a perspectiva subjetiva, a presunção de inocência tem a finalidade de considerar inocente todos os cidadãos. Tanto o que sofre uma específica imputação, quanto os demais que estão igualmente sujeitos à persecução penal. Trata-se de uma garantia de que, para haver condenação, há necessidade de um processo penal e, mais, que esse processo seja equilibrado e justo, livre do arbítrio estatal.664

A análise da presunção de inocência conforme a dimensão objetiva dos direitos fundamentais permite ressaltar a importância das ações estatais em sentido amplo (legislativo, judiciário e executivo) e de particulares para a efetividade desse direito fundamental. Percebe- se que toda a sociedade passa a ter o dever jurídico de contribuir para a maior proteção da norma fundamental.

660 Para uma análise ampla do período mencionado, pós Revolução Francesa até o advento da Declaração

Universal dos Direitos Humanos, em 1948, cf. Maurício Zanoide de Moraes, Presunção..., p. 95-172. O autor esclarece, Presunção..., p. 173, que após a inscrição iluminista da presunção de inocência, uma série de fatores levou à sua supressão. “Ao final do século XIX e início do século XX, fruto da associação entre a doutrina positivista italiana e o tecnicismo jurídico nazifascista, aquela concepção passou a ser considerada uma ‘absurdidade jurídica’ e, como tal, foram rejeitados quaisquer de seus influxos no âmbito processual penal, exceção feita ao ‘in dubio pro reo’. Tal qual na Roma dos Imperadores e na Inquisição, a partir desse referido pensamento autoritário, o sistema criminal passou a aceitar apenas o ‘in dubio pro reo’ tão-só no instante de se decidir o mérito da cauda e, como ressaltado, após o julgador ter esgotado todas as vias instrutórias que entendesse necessárias.” Sustenta o autor no sentido de que essa concepção acabou por influenciar o legislador brasileiro ao estruturar o Código de Processo Penal, de 1941. Alexandra Vilela, Considerações..., p. 40-50, também discorre sobre as críticas à presunção de inocência por parte da escola penal positivista e da escola técnico-jurídica, e a influência desses pensamentos no regime fascista.

661 Sobre as origens dessa terminologia na Constituição Federal de 1988, cf. Maurício Zanoide de Moraes,

Presunção..., p. 215-225.

662 Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 2003, p. 280-283.

663 Remete-se o leitor ao item 5.3.1.

664 Para análise da presunção de inocência conforme a dimensão subjetiva, cf. Maurício Zanoide de Moraes,

Cada esfera do poder público, no âmbito de sua competência, deve velar pela proteção da presunção de inocência. E isso não inviabiliza eventual restrição a esse direito fundamental. Diante de possível colisão de direitos fundamentais, torna-se possível ajustar a presunção de inocência, sem atingir seu conteúdo essencial.

O ponto importante a ser destacado nesse estudo, dentro da dimensão objetiva da presunção de inocência, é a relevância da atividade legislativa no exercício de sua função protetora dos direitos fundamentais, diante de hipóteses de restrição. Havendo a necessidade de se agir assim, há que se ater aos critérios de proporcionalidade, garantindo-se a legitimidade das restrições.

5.7.3 Presunção de inocência e possibilidade de restrições

Os direitos fundamentais não são absolutos, mas restringíveis665 – e verifica-se uma tendência cada vez mais frequente de colisão de direitos fundamentais, o que leva à necessidade de restringi-los, em um grau maior ou menor.

Essa possibilidade também ocorre com a presunção de inocência.

O passo necessário, a partir dessa premissa, é a compreensão de que cada direito fundamental possui seu conteúdo essencial, que precisa ser verificado para a proteção de indevidas intervenções, de natureza pública e privada. O conteúdo essencial, portanto, define dois pontos: um âmbito de proteção jurídica e uma área em que as restrições são legítimas.666 Vê-se, a partir desse raciocínio, que a aparente possibilidade de ampliar práticas arbitrárias mediante a adoção da tese da restringibilidade dos direitos fundamentais transforma-se no aumento da proteção do conteúdo essencial desses direitos.

A doutrina constitucional tem se debruçado sobre o estudo do conteúdo essencial dos direitos fundamentais. Isso serve de importante apoio para a construção de raciocínios jurídicos para outros ramos do direito, em especial para o processo penal.

A denominada “teoria dos princípios” permite identificar a estrutura de uma norma de direito fundamental e com isso separar suas partes e estabelecer suas inter-relações.667 A partir

665 Essa tese é sustentada em Virgílio Afonso da Silva, Direitos fundamentais, p. 40-42; p. 252-253.

666 Maurício Zanoide de Moraes, Presunção..., p. 263-264, defende a possibilidade de intervenção no âmbito dos

direitos fundamentais. Usa a expressão restrição para se referir à intervenção legítima, assim como também se refere à violação para mencionar a intervenção ilegítima.

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