• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 5 – PROPOSTA DE MODELO PROCESSUAL PENAL PATRIMONIAL

5.5 Da perda clássica à perda alargada

5.5.1 Fundamentos da perda alargada

Dois fundamentos justificam a instituição da perda alargada no direito brasileiro: um apoiado em compromissos internacionais; outro em razões do direito interno, de índole constitucional.

5.5.1.1 Fundamentos internacionais

As principais convenções internacionais (Viena, Palermo e Mérida) que cuidam da repressão à criminalidade organizada preocupam-se com a atenção que o legislador deve ter com a perda de bens.

594 Hélio Rigor Rodrigues, Perda de bens no crime de tráfico de estupefacientes: harmonização dos diferentes

Tais convenções indicam a possibilidade de os Estados Partes exigirem do autor de uma infração que demonstre a proveniência lícita do presumido produto do crime ou de outros bens que possam ser objeto de perda.595

Dois importantes pontos surgem dessa cláusula convencional. É possível que a perda de bens seja estendida para outros bens, além daqueles abrangidos pelo tradicional conceito de “produto do crime”, e também que se imponha ao autor de uma infração o ônus de colaborar na demonstração da licitude do patrimônio perdível.596

A ideia da perda alargada reside essencialmente em dar maior amplitude ao objeto da perda. Ao invés de mantê-lo circunscrito ao patrimônio vinculado à infração penal especificamente discutida em juízo, amplia-se o objeto, conforme critérios adotados pelo legislador e compatíveis com os princípios e fundamentos constitucionais.

O mais importante: as convenções admitem a ampliação da clássica acepção do objeto da perda de bens.

Além desses compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, verifica-se uma crescente tendência internacional no sentido de se ampliar o objeto da perda de bens quando o assunto é criminalidade organizada, mediante a adoção da perda alargada.597

A Decisão-Quadro 2005/212/JAI do Conselho da União Europeia, de 24 de fevereiro de 2005, que tem como um de seus fundamentos a Convenção de Palermo (art. 12, item 7)598, prevê além da possibilidade da perda clássica, que os Estados também instituam os denominados “poderes alargados de declaração de perda” (art. 3º).

Essa Decisão-Quadro, após estabelecer um rol de infrações penais, cuja condenação é pressuposto para o uso dos “poderes alargados de perda” (art. 3º, item 1, a e b), impõe as condições mínimas para se adotar a perda alargada.

São elas: a) os bens tenham sido obtidos a partir das atividades criminosas da pessoa condenada por uma das infrações contidas no rol, durante um período anterior à condenação; b) os bens tenham sido obtidos a partir de atividades criminosas semelhantes da pessoa condenada por uma das infrações contidas no rol, durante um período anterior à condenação; c) o valor dos bens seja desproporcional em relação aos rendimentos legítimos da pessoa condenada e conclua-se que seja resultado da atividade criminosa da pessoa condenada (art. 3º, item 2, a a c).

595 Cf. Convenção de Viena, art. 5, item 7; Convenção de Palermo, art. 12, item 7; Convenção de Mérida, art. 31,

item 8.

596 O assunto referente à proposta de modelo probatório para o acertamento patrimonial foi tratado no item 5.7.5. 597 Para uma análise sobre a tentativa de se adotar a perda alargada na Espanha, cf. Gonzalo Quintero Olivares,

Sobre la ampliación del comiso..., p. 2-7.

Vê-se que as três situações estabelecem possibilidade de perda de bens sem específica vinculação com a infração penal discutida em juízo. Daí a expressão “poderes alargados da declaração de perda”.

A recente proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho sobre o congelamento e o confisco do produto do crime na União Europeia, de 12 de março de 2012, também projeta os poderes de perda alargada (art. 4º).

5.5.1.2 Fundamentos constitucionais

Além das razões de ordem internacional, há fundamentos constitucionais a permitir a instituição da perda alargada no direito brasileiro.

O regime jurídico do direito de propriedade tem seu fundamento na Constituição Federal e esta não admite a propriedade decorrente de atividade ilícita.

Ao mesmo tempo em que garante o direito de propriedade (CF, art. 5º, XXII), o texto constitucional estabelece o objetivo que a propriedade deverá perseguir: atender a sua função social (CF, art. 5º, XXIII).

A Constituição também prevê hipótese de aplicação de desapropriação, com pagamento mediante título de dívida pública, de propriedade que descumpra a função social (CF, art. 182, § 4º e 184).599

Diversos dispositivos no texto constitucional possibilitam a intervenção no direito de propriedade, entre eles: procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública (CF, art. 5º, XXIV); uso de propriedade particular no caso de iminente perigo público (CF, art. 5º, XXV); prevalência do princípio da função social da propriedade em relação à ordem econômica (CF, art. 170, II e III); expropriação no caso de uso de propriedade para fins de plantio ilegal de culturas e perda dos bens decorrentes do tráfico de drogas (CF, art. 243).

Em vários momentos o texto constitucional ressalta o valor função social da

propriedade600 como algo essencial à nova concepção de propriedade: “A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da

cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.” (CF, art. 182, caput); “A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da

599 José Afonso da Silva, Curso..., p. 262.

cidade expressas no plano diretor.” (CF, art. 182, § 2º); “A função social é cumprida quando a propriedade rural atende [...]” (CF, art. 186).

Ainda, a Constituição de 1988 instituiu nova relação entre a propriedade e o meio ambiente. O direito de propriedade foi relativizado como meio de se cumprir a função socioambiental.

Por ocasião da Declaração dos Direitos do Homem de 1789, a propriedade foi concebida como “direito inviolável e sagrado”601, porém à época já se tornava possível a restrição diante de necessidade pública comprovada por lei.602 Essa ideia jurídica vai influenciar o constituinte brasileiro, que, a contar da Constituição de 1824 até a Constituição de 1967, assegura o direito de propriedade com as tradicionais exceções em face do instituto da desapropriação.603

No entanto, foi apenas com o advento da Constituição de 1988 que a inviolabilidade do direito à propriedade foi garantida em dupla perspectiva: a de direitos individuais e a de direitos coletivos.

Conforme já afirmado, é garantido o direito de propriedade (CF, art. 5º, XXII), porém condicionado ao atendimento da função social (CF, art. 5º, XXIII). Assim sendo, a propriedade passa a ter seu uso e gozo limitados pela necessidade de se respeitar o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, inserido como bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida (CF, art. 225, caput).

De todo esse arcabouço constitucional sobre a propriedade, conclui-se que a partir da Constituição de 1988 ela não mais pode ser compreendida exclusivamente como direito individual, nem como instituição de direito privado. A propriedade passou a ficar vinculada à necessidade de atender ao fim social.604

Se é certo que o princípio da função social não autoriza a supressão da propriedade privada, parece razoável admitir que nesta haja restrições, desde que necessárias e suficientes para dar cumprimento a sua finalidade.

601 Sobre a evolução do caráter absoluto do direito de propriedade, a contar da Declaração dos Direitos do

Homem e do Cidadão de 1789 até a concepção como função social, cf. José Afonso da Silva. Curso..., p. 263- 264.

602 “Art. 17. Como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, a não ser

quando a necessidade pública legalmente comprovada o exigir evidentemente e sob condição de justa e prévia indenização.”

603 Cf. Celso Antonio Pacheco Fiorillo. Curso de direito ambiental brasileiro. 10ª ed. rev., atual. e ampl., São

Paulo: Saraiva: 2009, p. 112-116.

Assim, verifica-se que o direito de propriedade ganhou nova perspectiva: antes meramente individual, agora assume uma dimensão pública e social.605

A análise constitucional do direito de propriedade permitiu aferir que a propriedade somente se considera legítima se atender à sua função social. E para cumprimento dessa finalidade constitucional há que se ter como pressuposto que a propriedade seja legítima em sua origem.

Em outras palavras, a Constituição não tolera a propriedade adquirida de má-fé. Essa conclusão é extraída de uma análise sistemática de todo o texto constitucional, a partir dos valores que lhe são imanentes, entre eles a prevalência da boa-fé nas relações socioeconômicas.

Admitir o contrário, ou seja, uma permissão constitucional para que a propriedade ilegítima na origem pudesse cumprir legitimamente sua função social, seria trabalhar com contradições inconciliáveis no âmbito da Constituição.

A Constituição traz a sanção da expropriação para as glebas onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas, bem como prevê a perda de todo e qualquer valor econômico decorrente do tráfico de drogas (CF, art. 243, caput, e pár. ún.). Ou seja, indica, de modo claro, que entre a aquisição ilegítima da propriedade e a destinação social há que existir um corte que venha a extirpar a propriedade de seu proprietário ou possuidor ilegítimo. Essa ruptura consiste exatamente na perda de bens.606

Com isso, conclui-se que o patrimônio ilícito não encontra amparo na Constituição Federal.

5.5.2 Requisitos da perda alargada

Documentos relacionados