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CAPÍTULO 4 – A CONSTRUÇÃO DO NOVO PARADIGMA PARA O PROCESSO

4.4 A gestão processual penal

O processo penal, a partir do novo paradigma, caracteriza-se pela necessidade de bem gerir o patrimônio identificado e acautelado, para que eventual perda de bens possa ser útil e eficaz. Por outro lado, em não advindo a perda, certamente o bem será restituído, o que também merece ser feito em condições que preservem seu valor.

A ninguém interessa o transcorrer do processo com obediência às normas do devido processo legal, sem observância à preservação patrimonial. O olhar do juiz na condução do processo deve estar atento à situação dos bens acautelados. Às partes também cabe o dever jurídico de fiscalizar a administração estatal de tais bens, velando pela adoção das providências necessárias que visem à conservação.

499 Afirma João Conde Correia o seguinte: “A investigação financeira ou patrimonial deverá, assim, ocorrer a

todo o tempo, mesmo em fase executiva, acompanhando o processo crime desde o seu início até ao seu termo. As finalidades que tem subjacente não se esgotam com a acusação ou com a liquidação do património incongruente. Não está em causa, apenas, a recolha de indícios que, a manterem-se em julgamento, determinem o confisco de instrumentos, produtos ou vantagens do crime ou a perda alargada de um património desconforme, mas a concretização de condições que permitam executar uma decisão passada ou futura. O seu timing pode ser muito diverso, deslocando-se do início para o fim do processo” (Da proibição..., p. 199).

O objetivo do afastamento do bem da posse do imputado não pode ser o de impor-lhe uma pena ou qualquer outro caráter sancionatório, mas sim o de permitir o reemprego social do bem ou de seu valor, na hipótese de declaração de perda.

A aplicação da cautelar real não retira o dever jurídico de o Estado velar pela adequada gestão patrimonial.500 Pelo contrário, o impõe.

Percebe-se, pois, que o alcance da expressão gestão processual penal, na hipótese de existência de bens acautelados, extrapola a perspectiva endoprocessual. A repercussão extrajudicial das decisões processuais deve ser levada em consideração para a coerente prestação jurisdicional.

4.4.1 O papel do juiz

Um dos reflexos processuais da perda de bens está na concepção que se deva dar à ideia de inércia jurisdicional, que deve ser compreendida em caráter relativo.

Para adequada sistematização do assunto é conveniente dividi-lo em dois momentos: a) antes do decreto da medida cautelar patrimonial; b) após o decreto da medida cautelar patrimonial.

A fase que antecede o decreto da medida cautelar patrimonial implica atenção ao princípio da inércia jurisdicional.501 Não se afigura conveniente, como regra, que o juiz se antecipe à acusação e decrete, de ofício, medidas cautelares patrimoniais. Isso é um corolário do princípio acusatório. Inexistindo qualquer bem acautelado, cumpre ao juiz aguardar o requerimento da acusação.

500 Sobre o assunto, João Conde Correia, na perspectiva do direito português, propõe a seguinte reflexão: “A

apreensão (artigos 178º e segs. do CPP) e o arresto (artigo 228º do CPP) de bens do arguido, muitas vezes em fases iniciais do processo, colocam um problema novo: quer devido às regras do mercado, quer devido às condições de execução dessas medidas processuais cautelares, a cotação desses bens pode sofrer alterações significativas, perdendo uma parte substancial do seu valor e tornando-se insuficiente para saldar o montante que visava inicialmente garantir. [...] Deve o condenado ser prejudicado pela baixa fortuita do valor comercial dos bens apreendidos ou arrestados ou, pior do que isso, pela inépcia, incúria ou negligente administração das instâncias formais de controlo?” E assim conclui: “O arguido não pode ser onerado com os custos de uma administração de bens negligente, que não controla e à qual pode ser totalmente alheio. Fazê-lo suportar as vicissitudes incontroláveis do mercado não parece ser a opção mais justa. A eventual tentativa de subtrair o seu património ao poder público (compreensível e natural) não pode ser confundida com a posterior falta de cuidado na sua gestão ou conservação” (Da proibição..., p. 188-189).

Percebe-se, contemporaneamente, o fortalecimento do papel das partes no processo penal, o que gera a inevitável cautela quando a questão é o atuar de ofício por parte do juiz. De outro lado, o sistema acusatório mitiga o agir de ofício do juiz, sem o anulá-lo.502

Ponto importante em investigações que envolvem organizações criminosas é a identificação do momento ideal, ou mais conveniente, para a adoção das medidas cautelares, dentre elas as de natureza patrimonial.

Eventual precipitação no uso dessas medidas pode gerar prejuízo à eficiência da investigação, que deve ter por objetivos alcançar o maior número de agentes criminosos e identificar, da forma mais abrangente possível, bens derivados de condutas ilícitas. Assim, somente quem está à frente das investigações tem melhores condições de apurar o tempo certo para o uso dos mecanismos processuais cautelares.

Contudo, a inércia indevida para a adoção das medidas cautelares reais pode gerar a ineficácia da própria pretensão de se ver a perda declarada. O patrimônio suspeito pode desaparecer rapidamente. Imagine ativos mantidos em instituições financeiras, que podem circular rapidamente. Daí se admitir, na hipótese de inércia indevida do Ministério Público, a possibilidade de o juiz decretar cautelares reais de ofício.

O estudo identificou no processo penal brasileiro três medidas cautelares reais que visam à conservação do patrimônio assegurado. São elas: administração provisória, uso provisório e alienação antecipada dos bens.503

Conforme dito, essas medidas têm como fim garantir a eficácia, em primeiro lugar, da própria cautelar patrimonial, no caso o sequestro, e, em última análise, da própria sentença penal condenatória. Nesse sentido, a inércia das partes504, que pode prejudicar a conservação do patrimônio acautelado, não impede a atuação do juiz de ofício. A utilidade e eficácia do

502 Marcos Alexandre Coelho Zilli, A iniciativa..., p. 176-177, afirma que “a mudança de rota, verificada nos

últimos anos e formalizada com a Constituição Federal de 1988 com a inserção do elemento democrático na modelagem do Estado de Direito, não implicou na adoção, pura e simples, de um Estado reativo e meramente solucionador de conflitos, desenhado, tão somente com o escopo de propiciar condições para que os particulares atingissem, por conta própria, um bem estar por eles imaginado. [...] Mas se, por um lado, o afastamento de uma postura puramente reativa, meramente solucionadora de conflitos, fica evidenciado diante dos ditames e objetivos estabelecidos e pretendidos pela Constituição Federal, por outro, o fator democrático exige um processo penal mais participativo no qual tenham os sujeitos processuais espaço e campo de autonomia. É, pois, justamente neste equilíbrio de posições aparentemente paradoxais que deve se posicionar o novo processo penal delineado em sua estrutural fundamental pelo legislador constitucional. Não foi a iniciativa instrutória do julgador, portanto, rechaçada. Ao contrário, foi, e é, plenamente justificada em um Estado que expressamente estabelece os objetivos fundamentais a serem perseguidos e perante os quais não podem permanecer seus agentes omissos, inertes e passivos.”

503 As medidas de conservação do patrimônio assegurado foram tratadas no item 2.5.

504 A própria defesa tem legítimo interesse em requerer as medidas cautelares que visam à conservação do

provimento jurisdicional, em processo penal, via de regra505, são atributos que dão ao juiz o poder-dever de velar pela sua observância.

Tema que vai ao encontro da função do juiz no processo penal que envolve restrição patrimonial diz respeito à necessidade de se garantir a duração razoável do processo.

Dois critérios de prioridade para a tramitação processual penal podem ser estabelecidos: a) existência de acusado preso provisoriamente; b) existência de patrimônio assegurado.

A presença dessas duas circunstâncias, isolada ou conjuntamente, com preferência para os feitos que contenham acusados presos em relação àqueles que apenas contemplem patrimônio acautelado, deve levar o juiz e as partes a uma redobrada atenção em relação à celeridade processual.506

4.4.2 O papel do Ministério Público

O assunto pode ser sistematizado sob duas perspectivas. Uma diz respeito a aspectos endoprocessuais referentes à atuação técnica do Ministério Público no processo penal. Outra se refere a questões extraprocessuais507 pertinentes ao desenvolvimento de um processo penal efetivo.

Conforme já dito, em casos complexos e que envolvem a criminalidade organizada, é conveniente para uma boa investigação que o Ministério Público acompanhe a investigação patrimonial desde o seu limiar, trabalhando em conjunto e coordenadamente com a polícia e demais órgãos estatais que possam contribuir para os trabalhos investigativos. O distanciamento entre polícia e Ministério Público por ocasião da fase investigativa é medida ineficiente, contrária, pois, ao interesse público de se produzir uma adequada persecução penal.

Cabe ao Ministério Público atentar para o momento adequado de se fazer uso das medidas cautelares reais, com o fim de acautelar e de preservar o patrimônio suspeito que possa ser declarado perdido.

505 A ressalva faz-se apenas em relação a interesses meramente privados, por exemplo, eventual direito

patrimonial da vítima, de natureza disponível.

506 Sobre o direito de ser julgado num prazo razoável, ver de Gustavo Henrique Badaró e Aury Lopes Junior,

Direito ao processo penal no prazo razoável, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2006. Ver, ainda, Ana Luísa Pinto, A

celeridade no processo penal: o direito à decisão em prazo razoável, Coimbra, Coimbra Editora, 2008.

507 Entende-se por questão “extraprocessual” a que extrapola os limites espaciais dos autos, porém ocorre por

O órgão ministerial também tem o dever de velar pela celeridade processual. O paradigma atual dá prioridade ao andamento processual em relação a acusados presos, o que não está errado. Porém, faz-se necessária a atenção também para os casos de processos penais que contemplam bens acautelados, diante do risco ao direito de propriedade (em alguns casos há evidente risco de desaparecimento ou destruição do bem).

A valorização da perspectiva extraprocessual representa paradigma que deve ser definitivamente assumido no campo da ciência processual penal. O processo penal gera efeitos extrínsecos que repercutem, positiva ou negativamente, na realidade social e guardam vínculo com o próprio desenvolvimento do processo.

Não basta o mero decreto de sequestro e a efetiva apreensão dos bens para que o processo penal cumpra seus fins. Aos agentes públicos cabe o dever de velar pela adequada e necessária conservação desses bens.

Primeiro, como dever de proteção e defesa do direito do proprietário do bem, seja o próprio acusado, seja terceiros. Enquanto não haja a declaração de perda de bens, o proprietário perde apenas alguns aspectos do direito real, por exemplo, o uso e gozo, porém permanece com a titularidade do domínio, sendo legítima, pois, a expectativa de reavê-lo. E, ainda, como dever de garantia da eficácia do caráter instrumental do processo penal, para que, ao final e uma vez declarada a perda de bens, os mesmos estejam preservados e possam ser revertidos em favor da sociedade.

Percebe-se que nas duas perspectivas os agentes públicos estão agindo em conformidade com o sistema constitucional.

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