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Autoria, materialidade delitiva e patrimônio suspeito

CAPÍTULO 4 – A CONSTRUÇÃO DO NOVO PARADIGMA PARA O PROCESSO

4.2 A relevância da fase pré-processual

4.2.1 Autoria, materialidade delitiva e patrimônio suspeito

há o interesse também público de proteger os inocentes de uma investigação indevida479 e de garantir a qualquer pessoa investigada tratamento digno a um sujeito de direitos.

Assim, para o desencadeamento do processo penal pressupõe-se uma investigação eficaz. Essa tarefa torna-se mais árdua diante da criminalidade organizada, em razão do potencial das organizações criminosas de perpetrar as ações delitivas com o uso de meios tecnológicos e de técnicas que dificultam a ação estatal repressiva.480

A dificuldade apresentada tem o condão de exigir que o Estado amplie os investimentos para a melhoria da eficiência da função investigativa. É preciso dotar as polícias de pessoas suficientes, seja sob o ponto de vista quantitativo, seja sob o aspecto qualitativo, para levar a cabo essa tarefa. Daí a importância do trabalho de especialização dos agentes que atuam na investigação.

Contudo é só. Faz-se necessário que haja a valorização da prova de natureza científica, o que também implica investimento estatal na capacitação de peritos e na aquisição de meios tecnológicos adequados para o aperfeiçoamento da produção probatória.481

Assim, para o alcance da efetividade processual penal será preciso tornar a investigação preliminar cada vez mais eficaz.

4.2.1 Autoria, materialidade delitiva e patrimônio suspeito

A tradicional concepção sobre o objeto a ser investigado e, portanto, o paradigma até então reinante funda-se nos aspectos atinentes à elucidação da autoria e das circunstâncias do

479 Aury Lopes Jr. e Ricardo Jacobsen Gloeckner. Investigação preliminar no processo penal. 5ª ed. rev. atual. e

ampl. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 103.

480 Sobre isso, oportuna a lição de José Braz: “Parece inquestionável que a investigação criminal não pode

enfrentar as novas formas de criminalidade organizada utilizando a mesma estratégia, a mesma metodologia e a mesma organização que utiliza na investigação da criminalidade comum e tradicional, perpetrada de forma individualizada e sem requintes de estruturação logística” (Investigação criminal..., p. 365).

481 Pietro Grasso destaca a necessidade de se investir na formação especializada e no uso da tecnologia para a

repressão ao patrimônio ilícito, registrando a imprescindibilidade de se substituir o envio de papéis pelas instituições financeiras aos órgãos de acusação, pela transmissão telemática dos mesmos dados. Cf. Il diritto già

pensato..., p. 540. Esta preocupação coincide com o advento, no Brasil, do SIMBA (Sistema de Movimentação Bancária), que consiste no “conjunto de processos, módulos e normas para tráfego de dados bancários entre instituições financeiras e órgãos governamentais, que foi desenvolvido pela Assessoria de Pesquisa e Análise –

ASSPA, que é uma unidade vinculada ao gabinete do Procurador-Geral da República do

Ministério Público Federal. O sistema envolve: (i) definição de processo para solicitação normatizada de dados bancários; (ii) utilização de sistema de validação de dados; (iii) utilização de sistema de transmissão de dados; (iv) utilização de sistema de processamento de dados”. Disponível em: <http://www.dpf.gov.br/servicos/sigilo- bancario/o-que-e-o-simba/>. Acesso em: 11/10/2012.

fato em tese criminoso.482 O Código de Processo Penal deixa claro que a finalidade da atividade investigativa consiste na apuração das infrações penais e de sua autoria (art. 4º), visando à obtenção de elementos informativos suficientes para a dedução da ação penal em juízo. Ao final, poderá ocorrer a aplicação de pena483 ou de medida de segurança.484

O modelo de investigação que corresponde a esse tradicional modo de atuar, que incide sobre a criminalidade comum, funda-se na seguinte estrutura: a) início de investigação a partir da “notícia dos fatos”; b) uso predominante da prova oral.

Tal modelo revela-se incompatível com a apuração de crimes que impliquem aquisição de elevadas quantias, típicos da criminalidade organizada. Para esses casos requer- se aprofundada investigação patrimonial e financeira, ao lado da identificação da materialidade e da autoria.

O modelo que vem se revelando adequado para a apuração de casos envolvendo a criminalidade organizada apresenta a seguinte conformação: a) início de investigação de forma proativa485; b) uso predominante da interceptação de comunicações como meio de investigação486; c) uso predominante da prova científica e documental.

Daí a imprescindível necessidade de se aferir qual o melhor resultado processual atingível, numa perspectiva abstrata, levando-se em consideração a realidade social, para que a investigação possa ser a mais ampla possível.487

482 Aury Lopes Jr. define a fase de investigação, a qual sugere a terminologia instrução preliminar, da seguinte

maneira: “conjunto de atividades desenvolvidas concatenadamente por órgãos do Estado, a partir de uma notícia- crime, com caráter prévio e de natureza preparatória com relação ao processo penal, e que pretende averiguar a autoria e as circunstâncias de um fato aparentemente delituoso, com o fim de justificar o processo ou o não- processo.” Cf. Direito processual penal e sua conformidade constitucional, v. 1, p. 212.

483 E, sobretudo, pena privativa de liberdade, ignorando-se a dimensão patrimonial que também permeia o

processo penal, tais como fiança, pena pecuniária, fixação de valor mínimo de indenização e perda dos instrumentos e do produto ou proveito do crime.

484 Cf. João Conde Correia, Da proibição..., p. 192.

485 Com o uso também da forma tradicional de se iniciar as investigações, a partir da noticia criminis.

486 Sobre a necessidade do uso de meios invasivos de obtenção de prova para a criminalidade organizada,

esclarece José M. Damião da Cunha, Perda de bens..., p. 132, o seguinte: “o que mais releva neste tipo de criminalidade é o facto de ela ser, de um ponto de vista repressivo, de reduzida visibilidade exterior, sendo difícil a obtenção de prova, pelo que, em regra, a investigação é acompanhada de meios particularmente incisivos de obtenção de prova – dada a pouca produtividade da investigação mais ou menos tradicional”. Marcio Geraldo Britto Arantes Filho, A interceptação de comunicação entre pessoas presentes. Brasília: Gazeta Jurídica, 2013, p. 4, em recente e importante estudo sobre o assunto, afirma que se multiplicam, diante do avanço tecnológico, os mecanismos para captação das diferentes espécies de comunicações. “Efetivamente, é impossível ignorar, sob a perspectiva jurídica, a evolução científica, sobretudo porque os citados mecanismos, não raramente, são utilizados, insidiosamente, para descoberta de fontes de prova.” O autor traz, ainda, a interceptação de comunicação como gênero, estabelecendo as seguintes espécies: a) interceptação de telecomunicação (telefônica, telemática, informática); b) interceptação de comunicação entre pessoas presentes (interceptação domiciliar e interceptação ambiental). Cf. op. cit, p. 180.

487 Essa mudança de paradigma vai ao encontro da contemporânea percepção do processo, ensinada por Cândido

Rangel Dinamarco: “O mal do pensamento positivista reside justamente no curto alcance de suas soluções. Investiga os resultados que o exercício da jurisdição produz sobre o sistema do direito, mas deixa na sombra o que realmente tem relevância e substancial valia, que é a função do próprio direito perante a sociedade. [...] Por

Numa análise prospectiva, o que se entende por um processo penal útil, frente a determinado caso concreto? Partindo-se do pressuposto de que a autoria e a materialidade estão presentes, qual o resultado almejado para que possa se alcançar efetividade processual? As respostas certamente auxiliarão na fixação do objeto a ser investigado.

Sempre que a perda de bens for cogitada como útil e necessária, a fase pré-processual deve ir além da análise da autoria e da materialidade delitiva. E, dessa maneira, o foco investigativo deve conter também a identificação do patrimônio suspeito.

Por exemplo, o delito de tráfico de drogas tem como resultado concreto a busca do lucro. Logo, investigações envolvendo esse delito implicam, quando possível488, a atenção também para identificação do patrimônio amealhado pelo grupo criminoso investigado.489 Em casos dessa espécie, o desencadeamento do processo penal deve também levar em consideração a perspectiva de se aplicar a perda de bens, além da pena privativa de liberdade.490

Isso permite concluir que a investigação do patrimônio suspeito deve assumir um caráter proativo. Sempre que presentes a comprovação da materialidade delitiva e os indícios de autoria quanto à determinada espécie de crime que represente potencial lucrativo, caberá à polícia e Ministério Público partir para a verificação de aspectos patrimoniais do agente ou grupo criminoso.

isso é que, hoje, todo estudo teleológico da jurisdição e do sistema processual há de extrapolar os lindes do direito e da sua vida, projetando-se para fora. É preciso, além do objetivo puramente jurídico da jurisdição, encarar também as tarefas que lhe cabem perante a sociedade e perante o Estado como tal. O processualista contemporâneo tem a responsabilidade de conscientizar esses três planos, recusando-se a permanecer em um só, sob pena de esterilidade nas suas construções, timidez ou endereçamento destoante das diretrizes do próprio Estado social” (A instrumentalidade..., p. 182).

488 Usa-se a expressão quando possível para evidenciar que a investigação patrimonial será viável em casos

envolvendo organizações criminosas estruturadas, que se utilizam de mecanismos para lavar o produto e proveito do crime, e não em toda e qualquer investigação de tráfico de drogas, sobretudo aquelas oriundas de fatos isolados, envolvendo pequenos traficantes, com pouca repercussão econômica.

489 Sobre a investigação do crime de tráfico de drogas, na perspectiva portuguesa, esclarece Hélio Rigor

Rodrigues, Perda de bens..., p. 231: “No momento em que se inicia uma investigação pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, a generalidade dos Magistrados do Ministério Público terá tendência para direccionar os esforços na obtenção de matéria com relevância na responsabilidade penal dos agentes, bem como na necessidade de respeitar os prazos processuais impostos pelas medidas de coação, que por norma são aplicadas aos arguidos nestes processos. Cumpre, todavia, ter presente que o exercício da acção penal não encontra plena satisfação quando, num crime praticado com o fito exclusivo de obtenção de lucro, se desprezam os mecanismos tendentes à recuperação dos benefícios de natureza patrimonial [...]”.

490 Sobre isso, Sergio Fernando Moro afirma: “Essa nova política criminal não é apenas retórica, ou pelo menos

assim não deve ser. [...] Um processo penal que se esgote na prisão do culpado será diferente do processo penal no qual igualmente se persiga o confisco do produto do crime. Para a investigação, não será suficiente colher provas da autoria e materialidade do crime. Será necessário identificar em tempo hábil o produto do crime e sua localização. Para a persecução, não será necessário apenas provar a responsabilidade criminal do acusado e aplicar-lhe a pena de prisão; será igualmente necessário promover a apreensão ou o sequestro do produto do crime, provar essa condição do bem, e aplicar o confisco” (Crime..., p. 17).

E isso guarda conformidade com o próprio sistema inserido a partir da Lei de Lavagem de Dinheiro, com a instituição do Centro de Controle de Atividades Financeiras (COAF), órgão com atribuição de receber, examinar e identificar as ocorrências suspeitas de lavagem de dinheiro (art. 14).

Essa fonte legal de informações deve ser utilizada durante a investigação patrimonial.

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