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Os tratados internacionais e a perda dos bens

CAPÍTULO 3 – MODELOS INTERNACIONAL E ESTRANGEIRO SOBRE A PERDA DE

3.6 Os tratados internacionais e a perda dos bens

Três convenções internacionais são imprescindíveis para a sistematização do tratamento dado à perda dos bens no plano internacional. São elas: a convenção de Viena313,

2010, p. 178-179. O autor discorre sobre o assunto no Cap. III, ao tratar da presunção de inocência como direito fundamental. Cf. Presunção..., p. 173-261.

310 Cf. Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966, art. 14, 3, a a g. Cf. Convenção Europeia dos

Direitos do Homem, art. 6º, 3, a a e.

311 Cf. Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966, art. 14, 5. 312 Cf. Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966, art. 14, 7.

313 Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, concluída em Viena, a 20

de dezembro de 1988. Foi incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto n° 5.687, de 31 de janeiro de 2006, após aprovação pelo Congresso Nacional pelo Decreto Legislativo n° 162, de 14 de junho de 1991.

que cuidou do tráfico de drogas; a de Mérida314, que se ocupou da corrupção; e a de Palermo315, cujo objeto foi o crime organizado transnacional.

Esses instrumentos internacionais representam fonte importante para a valorização do aspecto patrimonial decorrente da atividade criminosa e sua respectiva repercussão penal e processual penal. E isso, especialmente, no tocante à atuação da criminalidade organizada. Com o advento da globalização, a adoção de mecanismos de âmbito internacional, tendentes a gerar certa uniformidade no tratamento de assuntos relevantes para a prevenção e repressão a fatos que transcendem as fronteiras nacionais, revela-se cada vez mais necessária.316

3.6.1 Aspectos terminológicos

As referidas convenções trazem, de modo comum, a preocupação, logo no início do texto normativo, de definir algumas categorias jurídicas. Entre elas, e que guardam vínculo com o presente estudo, estão “bens”, “produto”, “apreensão” e “confisco”.

Essas convenções consideram “bens” como os ativos de qualquer natureza, corpóreos ou incorpóreos, móveis e imóveis, tangíveis ou intangíveis e os documentos ou instrumentos legais ou jurídicos que permitam atestar a propriedade ou outros direitos sobre os referidos ativos.317 Vê-se, com isso, o caráter alargado para a expressão “bens”, abrangendo praticamente tudo o que possua valor econômico.

Por “produto” entendem-se os bens ou vantagens de qualquer espécie obtidos ou derivados, direta ou indiretamente, da prática delitiva.318 Aqui houve a preocupação em

314 Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, adotada pela Assembleia-Geral das Nações Unidas em 31

de outubro de 2003 e assinada pelo Brasil em 9 de dezembro de 2003. Foi incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto n° 5.687, de 31 de janeiro de 2006, após aprovação pelo Congresso Nacional pelo Decreto Legislativo n° 348, de 18 de maio de 2005.

315 Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, adotada em Nova York, em 15 de

novembro de 2000. Foi incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto nº 5.015, de 12 de março de 2004, após aprovação pelo Congresso Nacional pelo Decreto Legislativo n° 231, de 29 de maio de 2003.

316 Sobre o assunto, cf. João Conde Correia, Da proibição..., p. 37. Para uma visão geral dos fundamentos do

processo penal internacional, cf. Antonio Scarance Fernandes, O direito processual penal internacional. In:

Direito processual penal internacional. São Paulo: Atlas, 2013, p. 3-25; Marcos Alexandre Coelho Zilli. Os caminhos da internacionalização do processo penal. In: Direito processual penal internacional. São Paulo: Atlas, 2013, p. 27-63.

317 Cf. Art. 1, c, da Convenção de Viena; art. 2, d, da Convenção de Mérida e art. 2, d, da Convenção de Palermo. 318 Cf. Art. 1, q, da Convenção de Viena; art. 2, e, da Convenção de Mérida e art. 2, e, da Convenção de Palermo.

alcançar os bens derivados e os obtidos diretamente por meio de práticas criminosas.319 Fica evidente o claro intuito de impedir o locupletamento ilícito.

A expressão “apreensão”, por sua vez, também é referida por “apreensão preventiva”320, “embargo preventivo”321 e “bloqueio”322. Nelas compreende-se a proibição temporária de transferir, converter, dispor de ou, por qualquer forma, movimentar bens, ou de assumir e manter bens em custódia ou sob controle temporário, por ordem expedida por um tribunal ou por outra autoridade competente.

Percebe-se que a categoria jurídica “apreensão” possui nítido caráter cautelar patrimonial, distinto no conteúdo e alcance da ulterior definição de eventual perda dos bens apreendidos. A preocupação é mais do que nítida com a existência e uso de instrumento jurídico que permita salvaguardar o resultado final do processo, impedindo a fruição e o desfazimento de bens e produtos frutos de atividade ilícita.

Por fim, de interesse para o presente estudo, destaca-se a definição para a categoria “confisco”, que deve ser entendida como a privação definitiva de bens por ordem de um tribunal ou qualquer outra autoridade competente.323 Em síntese, o confisco é definido como a perda de bens por ordem judicial ou outra autoridade competente.

Essas definições terminológicas são relevantes para o estabelecimento de um padrão linguístico para categorias jurídicas análogas em diferentes países, sobretudo nos dias atuais, em que a cooperação jurídica internacional ganha espaço e muita utilidade.324

319 Sobre o assunto e na perspectiva do direito português, afirma Hélio Rigor Rodrigues: “Nos diplomas

normativos internacionais a noção de ‘produto’ não abrange as coisas que são produzidas, criadas, transformadas ou adulteradas por via da prática do facto ilícito, como ocorre no ordenamento nacional (productum sceleris), mas sim os benefícios ou proveitos patrimoniais que advém para o arguido da sua prática (fructum sceleris). Nesse sentido, a noção de ‘produto’, na generalidade dos diplomas internacionais, é entendida como significado idêntico ao conceito de ‘vantagens’ por que optou o legislador português, quer no Código Penal quer no Decreto- lei 15/93, de 22 de janeiro” (Revista do Ministério Público. Lisboa. Ano 34, n° 134. Abr. Jun., 2013, p. 189- 244).

320 Cf. Art. 1, a, da Convenção de Viena, que utiliza como sinônimos as expressões “apreensão” e “apreensão

preventiva”.

321 Cf. Art. 2, f, da Convenção de Mérida, que utiliza como sinônimos as expressões “apreensão” e “embargo

preventivo”.

322 Cf. Art. 2, f, da Convenção de Palermo, que utiliza como sinônimos as expressões “apreensão” e “bloqueio”. 323 Cf. Art. 1, e, da Convenção de Viena; art. 2, g, da Convenção de Mérida e art. 2, g, da Convenção de Palermo. 324 Sobre isso, destacam Gustavo Henrique Badaró e Pierpaolo Cruz Botini: “O esforço conjunto dos países para

desenvolver políticas de combate à lavagem de dinheiro impactou fortemente na produção legislativa de cada Estado, acarretando na criação de leis similares ou com institutos bastante parecidos, na esfera material e processual. É natural que o acúmulo de discussões conjuntas e a expedição de recomendações coletivas resultasse na produção de normas com redações aproximadas, facilitando a cooperação internacional e a persecução penal de condutas não raramente praticadas em diversos países” (Lavagem..., p. 28).

3.6.2 Confisco e apreensão

As convenções sob análise tratam do confisco, para, em seguida, cuidarem da apreensão de bens. E há lógica nisso. Se, como visto, a apreensão tem finalidade cautelar, portanto instrumental, afigura-se necessário, de início, saber em quais hipóteses poderá ocorrer o confisco. Somente após e a partir delas, será possível dispor sobre a medida cautelar patrimonial.

Quanto ao confisco, as convenções guardam característica comum. Dispõem que os Estados adotem as medidas necessárias para autorizá-lo no tocante ao produto derivado dos delitos nelas contemplados, ou de bens cujo valor seja equivalente ao desse produto.325 Nesse último alcance, eis a origem do instituto jurídico conhecido por perda do valor equivalente.326 Se o produto do crime tiver sido convertido, total ou parcialmente, em outros bens, estes poderão ser apreendidos e confiscados.327

Também é prevista a possibilidade do confisco dos bens ou produto do crime “misturados” ou “mesclados” com aqueles adquiridos legalmente, até o valor calculado do produto com que foram misturados.328 A todos esses bens as convenções em estudo permitem a aplicação da apreensão e do confisco. Assim como os bens, equipamentos ou outros instrumentos utilizados ou destinados na prática das infrações previstas nas convenções também são passíveis de confisco.

3.6.3 A questão do ônus da prova

Quanto à origem ilícita dos bens confiscáveis, as convenções invocam a possibilidade de o Estado inverter o ônus da prova, desde que isso esteja em conformidade com os fundamentos do direito interno e com a índole e natureza do processo e procedimentos.329

325 Cf. Art. 5, 1-a, da Convenção de Viena; art. 31, 1-a, da Convenção de Mérida e art. 12, 1-a, da Convenção de

Palermo.

326 A possibilidade de se decretar a perda do valor equivalente foi introduzida no ordenamento jurídico brasileiro

pela Lei 12.694/2012, que acrescentou os §§ 1º e 2º ao art. 91 do Código Penal: “§ 1º. Poderá ser decretada a perda de bens ou valores equivalentes ao produto ou proveito do crime quando estes não forem encontrados ou quando se localizarem no exterior. § 2º Na hipótese do § 1º, as medidas assecuratórias previstas na legislação processual poderão abranger bens ou valores equivalentes do investigado ou acusado para posterior decretação de perda.”

327 Cf. Art. 5, 6-a, da Convenção de Viena; art. 31, 4, da Convenção de Mérida e art. 12, 1-a, da Convenção de

Palermo.

328 Cf. Art. 5, 6-b, da Convenção de Viena; art. 31, 5, da Convenção de Mérida e art. 12, 4, da Convenção de

Palermo.

329 Cf. Art. 5, 7, da Convenção de Viena; art. 31, 8, da Convenção de Mérida e art. 12, 7, da Convenção de

É certo que o assunto da inversão do ônus da prova revela-se controvertido diante de possível ofensa ao princípio da presunção de inocência.330 No entanto, o tratamento do assunto dado pelas convenções indica o dever jurídico dos Estados-Partes de se buscar alternativas para equilibrar o conflito entre a presença de patrimônio desproporcional e sem comprovação lícita e as dificuldades probatórias decorrentes dessa situação, no âmbito da criminalidade organizada.331

Desse ponto extrai-se a tendência internacional de não aceitar a aquisição ilícita dos bens, ao mesmo tempo em que se preocupa em preservar os direitos do adquirente de boa- fé.332

Vê-se que as convenções não toleram a má-fé na aquisição de bens e resguardam o direito de terceiros, quando considerados de boa-fé.

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