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Anagramas de Saussure

No documento Espectral: sentido e comunicação digital (páginas 59-63)

As pesquisas de Saussure sobre os anagramas na prosa latina ainda hoje encontram parca publicação e somente uma pequena parte das dez mil páginas vieram a conhecimento públic o32.

Saussure espantou-se com a composição fônica do verso quando estudava a poesia latina moderna. Era possível ouvir elementos teóricos outros, além daqueles dados na rima. O lingü ista passou a travar correspondência com poetas e escritores a fim de inves tigar esse tema que, temia, não levaria a qualquer resultado, não sustentaria qualquer hipótese sobre a origem dos anagramas. Esses fragmentos de cartas se encontram apenas parcialmente publicados e o livro de Starobinski, As Palavras sob as Palavras, é ainda a melhor fonte para essa discussão33.

O livro de Starobinski traz diversos fragmentos da pesquisas de Saussure. São excertos de análise fônica de versos, proposições, hipóteses de estudo e arrazoados teóricos. Constam também comentários sobre as cartas ao poeta italiano Giovani Pascoli. Os anagramas na prosa latina apareciam de modo insistente a Saussure. Eram como sons que se repet iam de modo incessante e que podiam ser escutados durante o poema. Parafraseando o livro de Starobinski, seriam como poemas sobre poemas, uma escrita sobrescrita, sobrecodificada, e que operava no âmbito da passagem dos sons que o poema encadeava.

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O interesse de Saussure era pela versificação lat ina em geral, e foi apenas acidentalmente que o estudo sobre a poesia latina moderna o levou aos anagramas. Ao prestar atenção a um poema, podiam-se ouvir out ros elementos além daqueles dados imediatamente no texto, espécie de mágica d a composição fônica do verso: os anagramas. Saussure registrou em seu caderno de pesquisa outras designações possíveis, como hipograma, e anotou também alguns dos significad os dessa palavra grega que vão além de uma simples composição frasal a partir de letras disponíveis em determinado termo ou frase34. Os anagramas a que Saussure se refere, de todo modo, são

versos latinos antigos ritmados por uma cesura constante.

Foi ao estudar o verso saturnino que Saussure desenvolveu a hipótese de poetas latinos terem intencionalmente ocu ltado anagramas de nomes próprios ao longo dos versos. Acred itava ter descoberto um sistema suplementar de signos, um conjunto estranho de convenções para a geração de significado, preenchendo inúmeros cadernos com observações sobre os tipos de anagramas que descobriu. A pesquisa obstinada de Saussure buscava encontrar provas de uma composição consciente e proposital dos anagramas, lutando contra a suposição d e que tais formações seriam inconscientes ao prosador. Não encontrando elementos que identificassem a intenção do poeta, desistiu da investigação. Paul Henry lembra que, para Saussure, a ―palavra- tema‖ ou ―palavra-indutora‖ seria ardilosamente escolhida pelo poeta, que comporia os versos obedecendo a regra anagramática da mesma maneira que obedece a regras de versificação e rima.

Vera Colucci35 comenta a insistência do lingüista em frisar que essas formações não

diziam respeito à palavra escrita, mas ao som, mesmo que sua investigação se debruçasse exclusivamente sobre textos escritos. De tod o modo, Saussure afirma em d iferentes momentos que esses fatos sonoros diferiam do trabalho das rimas, da aliteração e da assonância (harmonia fônica). Era uma coisa outra, uma imitação de certas sílabas de uma palavra dada sem que ela estivesse no texto, sem que fosse reproduzida inteiramente. Essa palavra poderia ser o nome de um deus, de um herói ou de um personagem mít ico importante. O interessante é que, para Saussure, os anagramas não eram jogos suplementares da versificação, mas a base mesma imposta a todo versificador, esteja ele consciente disso ou não36.

Saussure testa diversas suposições, argumenta a favor ou contra os fatos, tece, refuta ou mantém suas hipóteses em suspenso. Mas não se dá por contente, não d esenha nenhum sistema explicativo. E a questão não cessa de lhe perturbar. Atormentado pela insistência com que alguns sons pululam nos textos, Saussure se pergunta pela intencionalidade dessa construção, se casual ou proposital por parte do poeta. Starobinski, o organizador das notas e comentador d os rascunhos, se mostra perplexo com a perseverança do lingüista sobre a questão da

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intencionalidade do poeta e com a necessidade de uma prova externa, a despeito dos inúmeros indícios internos da composição anagramática (ou hipogramática)37.

Saussure sabia que estava investigando processos que fugiam à dinâmica entre signo e significante. É como se houvesse indícios de algo acontecendo nas entranhas da linguagem, sem guardar relação com o fora, com a teoria do signo. Essa possibilidade int ra-sistêmica funcionaria segundo uma complexidade auto-expansiva, haja vista os poemas acrósticos que, d iante de qualquer tentativa de quantificação, escapavam em números como se fossem equações não- lineares. Hakim Bey também comenta a pesquisa: alé m disso, ele começou a encontrar os anagramas por

todo lado, mesmo na prosa latina. Começou a se perguntar se estava tendo alucinações, ou se os anagramas eram um processo natural inconsciente da parole38.

Uma vez definidos, os anagramas pulu lavam. Apareciam em todos os lu gares e se mostravam difíceis de suprimir. Para além dos versos saturninos, apareciam em todos os tipos de verso, de qualquer períod o e inclusive em versos modernos, como se Saussure estivesse face ao real incontornável da parole, o saber inconsciente da língua39. Marlene Teixeira aponta que o

chocante na descoberta de Saussure é que, para um lingüista cujo objeto era pensado como calculável no que ele tem de diferencial, [o anagrama] promove o retorno do eco contingente que vem desfazer toda a universalidade. Eles apontam para algo que foge sempre à organização, não podendo ser apreendido como um todo40

.

Infelizmente, Saussure deu importância excessiva à prova externa, que teria que se basear em testemunhos, em confissões de poetas sobre suas intenções quando da composição. Saussure chegou mesmo a escrever ao colega italiano Giovani Pascoli, poeta praticante da versificação latina, indagando diretamente sobre suas intenções na composição41. Mas o poeta italiano cessa a

troca de cartas e Saussure, tomando o acontecimento como desaprovação, abandona o projeto42.

Saussure temia se tratar de uma operação necessária à cognição e indispensável à língua. Daí a tenacidade em encontrar um poeta que assumisse a responsabilidade pelos anagramas; sua busca incansável por uma carta de confissão das intenções do poeta. É curioso que os anagramas lhe causassem espanto e surpresa pela maneira consistente com que apareciam (―eles jorram‖, anotou o lingüista genebrino), sem que Saussure conseguisse vê-los como operação necessária da língua. Ainda mais curiosa é a insistente, e sintomática, busca pelas origens do anagrama vinda de um lingüista que entendia como inútil e impossível a busca pela origem histórica das línguas.

A autonomia do significante assinalada por Saussure nos anagramas vai de encont ro à teoria do signo que o lingüista desenharia alguns anos depois. Segundo Krist eva, há uma clara divisão na obra saussuriana, e o trabalho sobre os Anagramas representa um acontecimento que liquida com a teoria d o signo43. O significante assim colocado, desligado do significado, seria o

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motor originário da evocação dos termos. Merleau-Ponty tece um comentário que vai ao encontro da tese saussuriana sobre os anagramas:

Sob a lingu agem fal ada, s ob s eus enunci ados e seu ruído s abiamen te orden ados a significações bem definidas, [d escobrimos ] um a linguagem o peran te ou falante cuj as p alavras vivem um a vida secreta como os animais das grandes profundezas, unindo-se e s ep arando-s e co mo o exige sua significação lateral ou indireta44.

Os Anagramas sugerem a hipótese de que um significant e chamaria outro dentro de uma cadeia ilimitada . A articulação sonora do significante com a expressão gráfica permitiria ouvir um nome próprio at ravés das suas letras d ispersas no poema, mesmo que esse nome adicional não surgisse integralmente na composição frasal, pois os anagramas que Saussure via eram formados por sílabas sonoras. De todo modo, a imagem desse termo ou nome podia ser evocada pelos sentidos, identificando nomes ocultos no enunciado.

Comentadores da pesquisa anagramática entendem que a descoberta representou, para Saussure, uma tentativa de destruir a noção de estrutura ou uma crít ica rad ical à teoria do signo, como aponta Kristeva. François Dosse45 entende que os anagramas representam uma divisão na

obra do lingü ista, e cita Louis-Jean Calvet, para quem haveria o Saussure do Curso de Lingüística Geral46 e um segundo Saussure, o dos Anagramas, onde é trabalhada a idéia de uma linguagem sob a

linguagem, uma codificação consciente ou inconsciente das palavras sob as palavras, uma busca de estruturas latentes47 que inexiste no Curso. Como Kristeva, Calvet entende que seria preciso aprofundar essas

investigações de Saussure para tecer uma teoria da língua em relação com o inconsciente.

Para Jean-Claude Milner, os Anagramas negam a teoria do signo de Saussure na med ida em que não é diferencial, nem contingente ou arbitrário48. Sobretudo, é a constante ocorrência do

fenômeno que desconcertava Saussure. O fenômeno era estranho e incompatível com os termos científicos que pressupunham ordem e previsibilidade, não obstante a rígida regularidade encontrada nos Anagramas, própria de um esquema científico. A ampla demonstração da realidade dos anagramas que sua pesquisa revelava, e os argumentos ali expostos, não pareciam suficientes a Saussure para a organização d e um constructo teórico, de um sistema científico que explicasse o fenômeno. Os anagramas confundiam a ordem dos signos e das coisas, invertendo a relação d e causalidade. Ademais, a id éia de que os anagramas trazem nomes que não pertencem ao texto implica na admissão do terceiro excluído d a distinção, pois o ana grama se organiza por um princípio de diferença em relação ao que está dado no texto, ele traz à tona o elemento que não estava lá. É como se o significado de um signo remetesse a um corpo de sentidos anterior, quiçá ao próprio eixo paradigmático.

Saussure viu o que não queria ver, um sistema gerador de signos descolado da rede de valor que mais tarde descreveria. De acordo com Starobinski49, os estudos sobre os anagramas

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nos brindam com um Saussure interessado por um sentido dinâmico, tal como Hjelmslev mais tarde formalizaria em flagrante contraste com o Saussure do Curso de Lingüística Geral.

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