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Verdade, pensamento e sentido

No documento Espectral: sentido e comunicação digital (páginas 36-40)

O sentido não seria portanto nem uma categoria analítica nem propriamente um conceito. Não seria um elemento passível de categorização. Para Ignacio Angelelli13, podemos explicar o

sentido fregeano da segu inte maneira: falamos em conceito quando há muitos objetos que se relacionam com um nome — isto é, há um conceito comum a eles. Quando há um único elemento que se relaciona com vários objetos, há um sentido comum a eles.

Objetos, conceitos e pensamento seriam elementos que existem efetivamente, e não estruturas abstratas que se relacionam com elementos da realid ade. A imagem fregeana sobre o pensamento foi acusada de platonismo, pois entende o pensamento como manifestação independente quer da linguagem, quer das subjetividad es individuais. É como se houvesse pensamentos a espera de serem apanhados.

A agenda fregeana, ant ipsicologista e anti-subjetivista, estava direcionada para a objetividade dos pensamentos e dos objetos. Frege não se interessava pela significação pessoal atribuída aos objetos, mas por uma idéia independente de todas as apreensões individuais. É por isso um entendimento do sentido diametralmente oposto ao noema de Husserl14. A realidade

fregeana é composta, d e um lado, por partes completas (ou saturadas) em nada abstratas : os objetos. É também composta, por outro lado, por partes incompletas ou insaturadas que compõem o quadro de elementos que não são objetos.

Aí reside a diferença entre Frege e o platonismo: o conceito que enquadra o objeto não é jamais um duplo do objeto, como um simulacro ou uma imagem ideal. Em sua teoria, conceitos não incluem objetos (até porque objetos são saturados, e conceitos, insaturados). O que há são ―notas características‖ desses objetos, suas propriedades. Não se trata portanto de dois mundos diferentes, o dos objetos e dos elementos insaturados. O mundo de Frege é unid imensional embora seccionado por objetos e funções.

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A relação entre objetos e funções fica clara quando Frege explica o valor de verdade15 de

uma sentença. Frege argumenta em Investigações Lógicas que quando se diz que uma imagem é verdadeira não se está assumindo que isso seja uma propriedade do objeto. Assume-se apenas uma conexão entre a imagem e o que ela representa. A verdade de uma imagem, isto é, a verdade de uma sentença, seria apresentada pelo sentido. Verdadeiro e falso não seriam depend entes das mentes individuais, pois são pensamentos e por isso não pertencem à consciência16.

Por outro lado, sensações, dores e lembranças pertencem ao fluxo interno da consciência individual. O antipsicologismo e anti-representacionismo de Frege contrapõem pensamento e subjetividade com o objetivo d e garantir uma objet ividade estável e uma imutabilidade da verdade, dimensão impossível às apreensões individuais incomunicáveis.

Cham o de p ensamento a algo sobre o qu al se pod e p erguntar p ela verdade. Co nto entre os pens am entos tan to o qu e é falso, quan to o q ue é v erdad eiro. C onseq uen temen te, posso dizer: o p ensamen to é o s entid o de um a s enten ça, s em qu erer com isto afirmar qu e o sen tido de tod a sentença sej a u m p ensamen to. O pensamento, em si mes mo i mp erceptível pel os s entid os, ves te-se com a rou pagem perceptív el d a s enten ça, tornan do-se assim para nós mais facilm ente apreensível. Dizemos que a s enten ça express a um pensam en to. O p ensamen to é algo de imp erceptível, e tudo q ue s eja perceptív el p elos s entid os d eve s er ex cluído d o domínio d aquilo a resp eito do qual cabe s e pergun tar se é v erdad eiro. A verd ade não é u ma pro priedade qu e correspo nde a um cer to gên ero d e impr essão s ensorial.17

Sentido não seria um produto da consciência nem uma derivação das apreensões individuais. Sentido seria uma entidade externa que coordena os pensamentos e lhe garante validade ou não. O conceito fregeano vai de encontro à tradição estabelecida no século XX sobre o estudo do sentido, que o vincu lava às intenções individuais e um cont exto social extenso. Em Frege, o sentido independe dos elementos individuais e sociais.

Frege argumenta que a apreensão do mundo exterior exige um elemento que processe as impressões sensíveis, algo de não sensível, pois de outra maneira permaneceríamos encerrados no mundo interior das representações ind ividuais. Este elemento seria o mundo dos pensamentos, dos conceitos e das relações. Uma dimensão externa que independe das mentes individuais e dos processos de apreensão intelectual. Pensamentos e sentenças seriam funcionalizados pelo sentido e nenhuma dessas instâncias é individual. Nenhuma pertence ao mundo interior.

Um pensamento pode ser apreendido por meio de sua estrutura proposicional. A identificação do valor de verdade de uma sentença permite a localização dos componentes do sentido. Para Frege, a estrutura de uma proposição traz as marcas da estrutura do pensamento que a criou. Isto é, à decomposição da proposição corresponde uma decomposição do pensamento, como escreveu a Bertrand Russell em Julho de 190218.

Verdadeiro e falso seriam atribuições do pensamento e se aplicariam às proposições exclusivamente em sentido derivado. Como o valor de verdad e da proposição é sua referência, o referente (Bezug) se liga ao sentido da proposição que recebe atribuições por derivação. Esse diagrama, que sugere certa dependência entre as noções de verdad e, sentido e proposição, retira

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das proposições lingü ísticas a possibilidade de conterem o pensamento, a verdade ou o sentido19.

Sentido é a maneira pela qual o referente está disposto e que se faz acessível por meio da proposição. Mas para Frege é tão verdade que nem toda proposição tem sentido, quanto é verdade que nem todo pensamento recorre a uma expressão lingüística.

IV. O sentido

O conceito mais ilustre do pensamento de Frege é também o mais controverso. Seu conceito de sentido é formulado no texto intitulado Sobre o Sentido e a Referência (Über Sinn und

Bedeutung)20, em que Frege define o sentido como a maneira pela qual algo é designado em uma

expressão. De maneira incipiente, a d istinção ent re sentido (Sinn) e significação (Bedeutung) já estava presente no texto Fundamentos da Aritmética, ocasião em que Frege trata das relações entre o objeto e suas propriedades21.

A distinção surge a partir do exame do princípio de identidade na relação entre objetos e no sinal desses objetos, questão retomada em Über Sinn und Bedeutung. Na assunção a = b, deduz- se que a = a pois a e b se referem ao mesmo objeto. Nenhuma informação nova é apresentada uma vez que a = a é uma redundância. Frege d iz que identid ade não pode ria estar no sinal entre os objetos, que só nos diz que dois nomes nomeiam a mesma coisa. Ela estaria portanto em outro lugar22. Frege contestou que a identidade fosse um simples sinal entre nomes. Sinais apenas

indicam que há diferentes nomes para uma mesma coisa e não podem solucionar o problema da identidade. Frege estabelece então a distinção ent re sentido e significado dos sinais. O significado responderia pelo objeto denominado ou denotado na expressão, e o sentido seria a maneira pela qual o sinal apresenta o significado.

O exemplo mais notável é o de um triângulo, de cujos ângulos opostos saem três linhas que se encontram em seu centro. Há então um ponto de intersecção onde as três linhas se cruzam. Fato é que o ponto ab é idêntico ao ponto bc ou ac, pois todas as linhas se cruzam neste centro do triângulo. Mas não é verdadeiro dizer que ab é idêntico a bc ou a ac, ainda que se trate de diferentes designações para o mesmo ponto. Frege ilustra sua distinção dizendo que ab, bc e ac têm o mesmo significado, mas não o mesmo sentido23.

É plausível p ens ar que exista, uni do a um sinal (nom e, combin ação de palavras, letra), além d aquilo p or el e designado, qu e p ode s er ch am ado d e sua r eferên cia, ai nda o que eu gostaria d e cham ar de o sen tido d o sinal, ond e está contid o o mod o d e apresentação do obj eto. Cons eqü entem ente, segu ndo nosso exemplo, a referênci a das express ões ‗o ponto de interseção de a e b‘ e ‗o ponto de interseção de b e c‘ seriam a mes ma, mas n ão os s eus s entid os24.

O sentido se apresentaria por meio daquilo que é expresso em uma frase. No caso de uma proposição, o expresso é o pensamento ou seu valor cognitivo. Mas no caso de um nome, o sentido só se apresentaria em uma relação com as demais componentes semânticas que compõem

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o pensamento como um todo. Esse princípio da contextualização afirma que um nome ou uma palavra tem sentido apenas no contexto frasal, isto é, o sentido é necessariamente proposicional.

Assim como os pensamentos, o sentido se apresentaria à ment e como uma realid ade exterior à própria consciência. Não seria representação nem produto de uma intersubjetividade gerada socialmente . Esse terceiro reino fregeano , do qual o sentido é parte constituinte, seria real, objetivo e cognoscível, mas não faria parte do fluxo interno da consciência25. Essa função permite

ver que o sentido se constitui como um sistema de segunda ordem descolado do significado e das imagens subjetivas da mente individual. Em oposição à abordagem estrutural, é a representação que se forja subjetivamente, não o sentido:

A repres en tação é su bjetiv a. Um pintor, um cavaleiro e um zoólogo prov avelm ente ass ociarão representaçõ es muito diferentes ao nome ‗Bucephalus‘. A representação, por tal razão, difere essen cialm en te do s en tido d e u m si nal, o qual pod e s er a propriedad e comu m d e muitos, e portanto, n ão é uma p arte ou m odo d a m ente individu al.26

A referência de um nome próprio, d iz Frege, é o próprio objeto que designamos ao referenciá-lo. E essa representação é inteiramente subjetiva. Entre a representação e o objeto estaria o sentido, que não é nem subjetivo nem o próprio objeto. Frege faz um paralelo bastante esclarecedor sobre um sujeito observando a lua e a função da representação e do sentido27. O

telescópio oferece uma imagem sobre a lua, e essa imagem, que pode ser partilhada por inúmeras pessoas, constitui o sentido. Não porque traduz o objeto, mas porque envolve objeto e observador. Ou seja, porque cria um sistema que envolve as partes interagentes.

Por meio do sent ido podemos reconhecer a referência comunicada que não se restringe ao simples sinal da referência. Só haveria acesso à referência por int ermédio do sentido, que constitui em si mesmo o valor cognitivo ou o conteúdo informativo da proposição. Estivesse o sentido simplesmente apoiado no referente, não se resolveria o problema da identidade proposto por Frege. O sentido, assim, alude à posição da referência e ind ica as condições da proposição comunicada.

Com isso, o sentido se vincula à disposição de um objeto como referente de determinado nome. Sem esse critério de identificação do referente, isto é, sem o sentid o, não se pod eria estabelecer a significação de um nome. Sentido, em termos fregeanos, não é nem o objeto, nem o referente ou a identidade, mas a operação necessária para reconhecer o objeto. Seria o crit ério de identidade que se associa aos objetos. É precisamente por isso que dois objetos pod em ter um mesmo referente e sentido diferentes, bastando para isso que a dois nomes se associem diferentes métodos de identificação entre objeto e referente28.

O conceito fregeano limita o espectro do sentido para o conteúdo informativo ou valor cognitivo (o conhecimento que o locutor t em do nome quando o emprega na comunicação). O sentido é exclusivamente: 1) a associação no nível da linguagem entre nomes; 2) a relação que

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estes nomes têm com um referente e 3) o critério de identificação do objeto designado. Com isso, não existe a possibilidade geracional de sentidos não dados, simultâneos à instância de sentid os comuns e dos quais várias mentes individuais participam.

No documento Espectral: sentido e comunicação digital (páginas 36-40)