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Um entendimento sobre o sentido diametralmente oposto ao do interacionismo simbólico aparece na análise do discurso de Michel Pêcheux81. Se para Berlo e Osgood o sentido estava nas pessoas, para Pêcheux ele não está nem nas pessoas, nem nas coisas, mas no instante em que os atos verbais t omam forma, no ent relaçar histórico entre lugar social e prática discursiva. Discursos seriam conjugações da significação, efeitos de sentido entre interlocutores diversos cuja historicidad e não é auto-evidente. Herdeiro do estruturalismo de Louis Althusser, Pêcheux procura por uma estrutura invisível no discurso, um elemento de ordenação abstruso que conduz o tecido social.

O conceito de sentido em Pêcheux também tem influência lacaniana. Se o psicanalista francês definia o desejo como uma metonímia que não tem fim, haja vista que o desejo é sempre o desejo do outro, Pêcheux define o sentido como uma metáfora, um deslocamento entre termos ou a tomada de uma palavra por outra. Com isso, a significação não estaria localizada no valor de referência de um termo, tal como definida por Frege e comentada por Wittgenstein. Pelo contrário, a análise do discurso de Pêcheux tem no conceito de metáfora seu operador do sentido, um elemento que remete a uma significação inefável porquanto em transferência constante. A metáfora é, ela mesma, o único modo de significação.

As palavras teriam sentido metafórico e não literal. Depois de se desfazer da noção de significação oriunda da lógica, Pêcheux propõe um conceito de sentido que, curiosamente, retoma o nominatum do nome, a significação, mas denominando-a sentido. Na análise do discurso de Pêcheux, sentido é sempre uma palavra, uma expressão ou uma proposição tomada por outra palavra, outra expressão ou outra proposição. Os nomes transferem significações entre si, e o processo como um todo seria gerador de sentido. Em outras palavras, o sentid o para Pêcheux é uma relação de significação invertida. Sentido seriam as relações de metáfora (substituição, paráfrase ou sinonímia), deslocamentos da significação de um termo a outro.

Conceitos que orquestram o sent ido seriam: sujeito, contexto, ideologia e discurso. Para Pêcheux, o sujeito é produto de uma estrutura que lhe ult rapassa, refém d e um lugar na construção do sentido. Ou seja, é um ponto imóvel dentro de uma matriz inescapável que lhe bloqueia toda movimentação. Quem se desloca são os efeitos de significação, isto é, o sentido, cuja movimentação dentro da matriz constitui metáfora. Mas tampouco a metáfora é um regime de signos livre , pois é regida por posições ideológicas que condicionam o uso contextual das palavras e expressões82. Não haveria portanto enunciação individual ou expressão, mas apenas

enunciados coletivos. Embora Pêcheux se remeta a uma análise do discurso cujo conceito central é o sentido, sua teoria prevê uma formação discursiva em que só há sentido em cadeias discursivas sócio-históricas, forças instrumentais da ideologia.

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Outra abordagem contrária ao valor de referência como componente anterior ao sent ido é encontrada em Jacques Derrida. Mas diferentemente d e Pêcheux, Derrida oferece uma leitura da circulação de sentidos para além do estruturalismo lingüístico83. É um sentido descolado de

verdades discursivas, contextuais ou ideológicas. A relação se inverte: primeiro a diferança (ou ―diferência‖84

, conforme outra tradução do termo différance) fornece sentidos possíveis, e só então se desvela a referência às coisas ou verdades textuais. Se o positivismo lógico entendia o sentido como uma função dos valores de verdade, Derrida inverte a fórmula ao sugerir que a verdade é que é uma função das derivações de sentido, da diferança.

A diferança é um conceito difícil porque remete à lógica interna do texto, e não à exterioridade plástica do discurso. Ao comentar as proposições conceituais apresentadas em Gramatologia, Derrida define-a como recalque e não esquecimento; recalque e não exclusão. O recalque,

como bem diz Freud, não repele, não foge nem exclui uma força exterior, contém uma representação interior, desenhando dentro de si um espaço de repressão. Aqui, o que representa uma força no caso da escritura interior e essencial à palavra foi contido fora da palavra85

. Essa força interior e essencial à palavra, mormente oculta no texto, é descort inada pelo desconstrutivismo de Derrida. Haveria em toda escritura uma presença e uma ausência, cujo enigma da presença como duplicação é a diferença, isto é, o domínio da ausência como palavra e como escritura.

O desconstrutivismo de Derrida torce os eixos de coerência do d iscurso. Sua metacrítica faz uma leitura atenta dos filósofos ocid entais e desestabiliza os pontos de sustentação do pensamento filosófico86. Derrida entend e que a linguagem é condicionada por uma ambigü idade intrínseca; um sistema que nunca se fecha inteiramente. O sentido, para Derrida, é uma manifestação estranha e fantasmática que se desprende da linguagem, uma imagem de todo diferente daquela proposta pelo positivismo lógico, cujo conceito de sentido é atomístico, derivação necessária de termos e proposições que se pressupõem autônomas e não dependentes de outras palavras para encadear sentido. Para Derrida, o sentido é arranjado em uma rede de elementos ocultos. O sentido não está portanto em termos isolados, mas na relação de um termo para com um fora, na abertura latente que a linguagem sujeita toda escritura.

Um sentido assim proposto contrasta também com a acepção fenomenológica87, que

abordaremos no próximo capítulo. E guarda afinidad es com Saussure e Witt genstein, ainda que para Derrida a linguagem não seja um meio de expressão neutro, uma ferramenta de representação do mundo (como queria Wittgenstein), mas uma produção textual grafada pela diferança . E embora o sent ido seja dado sempre pelo contexto, como frisava Pêcheux, Derrida adverte no entanto que o cont exto não permite saturação, que o sistema da linguagem não é

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pleno nem tampouco fechado em si mesmo. Se Saussure pensava na linguagem como um sistema fechado, Derrida elege a abertura sistêmica como sua característica primeira.

Uma diferença fu ndamental entre Derrida e os autores até aqui abordados é que o pensador francês não procurou desenvolver qualquer teoria sobre o sentido. Sua abordagem anti- representacional tem por objetivo questionar as assunções metafísicas que servem de subsídio para as teorias trad icionais do conceito , fundadas sobre valores como verdade, ser, subjetividade e no flagrant e privilégio da substância fônica em detrimento da escritura. Sua crítica às teorias tradicionais sobre o sentido, especialmente a fenomenologia e o estruturalismo, não resulta na elaboração de um sistema conceitual definido, ou resulta apenas no desconstrutivismo.

Mas a variedade de termos e estilos que marca seu trabalho, conjugad o a um poliglotismo enciclopédico, pontua considerações sobre o sentido que não o restringem ao âmbito da linguagem. Explorando o cont racampo do texto, aquilo que não está inclu ído no discurso, Derrida faz aflorar compreensões e intuições de dent ro da própria t ensão natural da escrita, mormente omitidas pela consecutividade serial que o texto impinge. Seria preciso atentar para o que o texto não mostra, pois a geração de sentidos é uma operação da linguagem baseada em oposições conceituais. A diferança não é nem uma palavra nem um conceito, é uma dimensão ao mesmo tempo ativa e passiva, diferindo e deferindo88. Toda oposição conceitual (natureza e cultura; bom e mau; razão e emoção) seria efeito do jogo da diferança, diferindo quando a extensão é espacial e deferindo quand o a extensão é temporal. Sentido, com isso, é invariavelmente uma extensão prolongada no futuro89.

Não existe um presente do texto para Derrida , nem tampouco um texto presente- passado, isto é, um texto passado como tendo sido presente. Isso porque o texto não é pensado na forma da presença. Derrida fala em um texto inconsciente90 que é tecido de diferenças, texto em

parte alguma presente, constituído por arquivos que são sempre já transcrições. A natureza originária do

texto seria a reprodução, oferecendo com isso depósitos de um sentido que nunca esteve presente, cujo

presente significado é sempre reconstituído mais tarde, nachträglich91, posteriormente, suplementarmente.

Nachträglich também significa suplementar92. Assim, houvesse um conceito de sentido em Derrida, ele

não estaria no texto, mas na diferança, esse atributo diferente e demorado (afastado das recordações) e que contorna as sombras do entendimento. Algo que está no texto mas que precisa ser trazido à tona, relembrado, espécie de inconsciente epistêmico que permeia a escritura.

No documento Espectral: sentido e comunicação digital (páginas 68-71)