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Sentido no mundo: interior e exterior

No documento Espectral: sentido e comunicação digital (páginas 92-94)

Ao contrário de Frege e Wittgenstein, que trabalham respectivamente com o sentido e o significado proposicional34, o noema husserliano e sua consciência d oadora de sentido estendem

ao conceito de sentid o uma acepção não-proposicional, isto é, sentido como afecção e sensação. A teoria hegeliana do sensível, a estética, já fazia referência ao problema e traçava uma distinção entre sentido interior e exterior35. Isto é, o sentido é tanto a percepção de fenômenos externos

(sistema sensorial36) como o significado que os termos guardam (sentido proposicional37). Jean Hyppolite comenta a questão:

Sentido é, na realidade, uma p alavra curios a que empregamos em d ois sentid os opos tos. De um lado, designa os órgãos qu e pr esidem à apreensão im ediata, d e outro, ch amamos d e s entid o a significação d e um a coisa, su a id éia, o qu e tem de univers al. D este m odo, o s entid o se refer e d e um lad o à par te imediatam ente exterior d a existência, e de outro, à s ua essência interior. Um a consider ação p ond erada, ao invés de sep arar as duas partes, trab alha de m an eira que cada um a delas es tej a presente ao mes mo temp o em que s eu contr ário, isto é, apreende o sentid o e o con ceito de algum a coisa por m eio da intui ção s ensível sobre ela. Mas com o essas d efiniçõ es não são dadas ind ependentemente, o observador não p ode ter co nsciência d o conceito, limitando-se a, por assi m di zer, press enti-lo vag am ente.38

Husserl trata desse problema no §58 da sua Sexta Investigação: A Relação Entre as Duas Distinções: Sentido Externo e Interno, e Sentid o de Categoria. Seu conceito de consciência, mormente um elemento doador de sentido (Sinngebung), não desfaz a dualidade hegeliana: É de

grande importância a elucidação definitiva da relação entre as duas distinções, introduzidas no início das nossas reflexões presentes, a saber, a distinção entre a sensibilidade externa e interna39. Husserl aborda o problema

separando as abstrações em sensíveis ou categoriais, isto é, baseadas em uma sensibilidade interna ou em uma intuição40. Mas sua fenomenologia acaba por integrar o sentido não-proposicional

com o sentido proposicional de “perceber”. Nem mesmo Merleau-Ponty resolverá essa pendência da fenomenologia.

Jean-François Lyotard tentou resolver a questão. Ele sugere que a questão hegeliana, a oposição entre exterioridade e interioridade, vai ao encontro da d istinção fregeana ent re sentido (Sinn) e significação (Bedeutung), pois o sentido como interioridade responderia pela categoria de sentido (Sinn), enquanto o sentido como exterioridade responderia pela significação (Bedeutung). Para Lyotard, o tratamento que Husserl deu à questão permite entender a significação como uma produção imanente de um sistema, necessariamente fechado, mas um fechamento que inclui em si mesmo a abertura41. Lyotard recorre uma vez mais a Jean Hyppolite para comentar o problema,

apresentando a linguagem como o elemento mediador das dimensões interiores e exteriores42.

É uma proposição que nos afasta de Husserl. Outro tratamento à questão do sent ido interior e exterior é apresentado por Michel Serres43, para quem o sentido seria uma produção

gerada no mundo vivido, conquanto uma produção individual. Como Husserl, Serres assume que é o sentido que permite o jogo d e significações, isto é, a dinâmica sígnica entre significado e

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significante. Serres não emprega o conceito de noese, mas seu juízo sobre o sentido como expressão plena é particularmente próximo ao noema husserliano.

Serres também se encontra com Husserl no conceito de expressão. O expresso é aquilo que, não estando nos signos, lhes permite significar. A expressão do signo é transversal às funções ind icativa e significat iva, isto é, ela é o sentido intencionado na vida interior ou na comunicação44. A expressão é entretanto anterior ao próprio ato comunicativo, à própria intenção de significar. Isso porque a expressão não se vincula ao sistema da língua, mas à dualidade consciência-mundo que lhe prescreve existência.

Em Serres, é o conceito d e expressão que define o sentido. A expressão sugere que não somos unidades fechadas em si mesmas. A expressão remete precisamente à abertura do sistema, uma função do sentido que se perde na leitura que Luhmann fez de Husserl. Em Os Cinco Sentidos45, Serres ataca a redução dos sentidos ao sinal lingüístico. As palavras, mortas,

neutralizariam os sentidos, que se vinculam à experiência e a algo que está fora da linguagem. O sentido seria formado mais pelo ruído que pelos conteúdos denotad os, e o expresso é dado por um não-expresso que o transforma.

O pensamento de Serres sugere um sentido t ransversal às operações da linguagem. Sentido seria o intervalo entre sinais, mas um intervalo dado sempre no local, uma diagonal que realiza certa singularidade. Em Serres é o sentido — de todo improvável — que produz informação, um expresso que dá vida ao corpo de signos. O interessante na idéia de expresso em Serres é que o sentido, diferentemente de Husserl, independe das consciências. Em Serres há uma relação de deriva com as forças elementares. Palavras derivam de átomos-letras acometidos por um relâmpago universal: eis o sentido para Serres, um entendimento vincu lado à idéia d e declive ou deriva46, um sentido sempre em movimento. Esse tema bergsoniano at enta para o caráter temporal do sentido. Não é que o sentido só ocorra na mudança. É que a mudança, por menor e imperceptível que seja, produz sentido.

A fenomenologia husserliana não permite visualizar essa movimentação. Sua filosofia se fecha sobre uma consciência int encional e sugere um conceito de sentid o manifestamente não- lingüístico . Um atributo que, a exemplo do método de Wittgenstein, permit e medir a linguagem apenas naquilo que dá sentido a uma expressão lingüística (o filósofo vienense insistia na pergunta: mas isso faz sentido?). O sentido se disporia simultaneamente, como um feixe, entre consciência e mundo vivido, onde a linguagem é parte integrante e não instância integradora47.

Husserl pensa em uma linguagem anônima que só existe quando a consciência se volta para ela, engravidando-a de vida e lhe emprestando sentido. Antes de ganhar expressão, a linguagem existe apenas enquanto possibilidade, repousando em uma pré-existência de todo

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dependente da intuição que lhe preenche de intenção48 significativa. A fenomenologia husserliana

propõe uma redescoberta do mundo, fazendo abrolhar sentidos no mundo ao mesmo passo em que nos condena a eles49. A consciência intencional destaca o caráter sustentador do sentido, que

viabiliza a unidade d os vividos puros. Husserl pensa o sentido como transcendental e científico, não como significação lógica atribu ída pela linguagem, mas como o núcleo que produz realidade.

A consciência ind ividual de Husserl sugere certo solipsismo na medida em que estamos sozinhos no mundo, e o próprio mundo é uma idéia sobre a unidade dos objetos. Fenômenos só têm unidade na minha percepção, e é a minha consciência, como intenção, que funda todo sentido. É na vida solitária da alma, explica Husserl, que as significações de palavras e frases ganham existência. Husserl, ent retanto, não propõe um idealismo monádico. Antes, a experiência da objetividade invoca a concordância de uma pluralidade de sujeitos. O outro se apresenta à experiência como elemento original. Os outros egos não são simples representações e objetos

representados em mim, unidades sintéticas de um processo de verificação que se desenro la em mim, mas justamente outros50. O outro, fonte d e sentido e intencionalidad e, irrompe e se anuncia como um sistema de experiências que só pode ser experimentado como estranho51. Merleau-Ponty retomará essa contingência do diálogo para desenvolver sua crítica ao subjetivismo de Husserl.

No documento Espectral: sentido e comunicação digital (páginas 92-94)