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Sistemas abertos e fechados

No documento Espectral: sentido e comunicação digital (páginas 121-124)

No que tange à questão do sentido, o fulcro conceitual da teoria dos sistemas repousa sobre a diferença ent re sistemas abertos e sistemas fechados, diferença já delineada nos primeiros modelos pensados por von Bertalanffy. Um sistema aberto é aquele que aceita e sofre interações com o ambiente que lhe margeia. Há portanto alimentação e retroalimentação, que por sua vez podem ser positivas ou negativas. O modelo aberto sugere um diagrama de auto-regulação regenerativa e expansiva, gerando novos elementos ou propr iedades que alteram o sistema como um todo ou suas partes isoladamente. Um sistema fechado, por out ro lad o, não sofre qualquer influência do ambiente que lhe margeia. Não há portanto nem alimentação nem retroalimentação cibernét ica, pois o sistema só se alimenta dele mesmo. O conceito de autopoiese, d erivado dos estudos do biólogo chileno Humberto Maturana, empresta feição suplementar ao esquema.

A idéia de que os sistemas vivos são abertos é a grande cont ribuição de von Bertalanffy, para quem o modelo de sistemas fechados da ciência clássica tinha na segunda lei da termodinâmica uma limitação insustentável16. Para o biólogo, os fenômenos físicos difeririam sobremaneira dos fenômenos biológicos, e a natureza paradoxal dos sistemas vivos à luz da física seria explicável por essa diferença de natu reza: sistemas vivos seriam necessariamente abertos. A teoria geral dos sistemas de von Bertalanffy salientava a diferença entre sistemas físicos, fechados, e sistemas vivos, abertos, que pediriam uma abordagem holista e não reducionista17. Os

indivíduos não seriam mecanismos previsíveis, mas organismos abertos e contingentes.

Michel Serres vai ainda mais longe. A relação de deriva que o filósofo francês vê nas forças elementares sugere uma abertura fundamental inclusive entre os fenômenos físicos. Se há duas espécies que nunca se tocam, não pode haver mundo nem física; nem discurso nem sentido, diz Serres. O filósofo francês vê na deriva dos elementos físicos uma força em movimento, alguma coisa que acontece entre os sistemas durante a deriva. Quando se fala e o interlocutor compreende, haveria aí necessariamente uma abertura. Ainda que o outro diga que não me compreendeu, haveria ainda assim abertura, retroalimentação (negativa) e interação entre os sistemas psíquicos. Essa abertura, que Serres entende como excepcional, permite que signo e

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sentido existam. O desvio e a interseção entre os elementos físicos s eriam um desvio necessário do equilíbrio fúnebre da matéria18.

Mesmo a intersubjetividade gerad a socialmente, substrato que Habermas atribui ao mundo vivido, é eliminad a na teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. Para Hans Ulrich Gumbrecht, Luhmann identifica a gênese do que chamamos subjetividade no processo de diferenciação entre

sistemas sociais e sistemas psíquicos19. Isto é, aquilo que chamamos de subjetividade seria tão somente o resultado da crescente complexidade sistêmica observada a partir de determinada temporalidade (consciência histórica dos eventos). Para Luhmann, o próprio termo ―intersubjetividade‖ é vazio de sentido, pois implica em subjetividades interpenetradas, isto é, sugere a integração de múltiplos sistemas psíquicos. Sua teoria dos sistemas sociais, entretanto, prescreve como impossível que sistemas psíquicos conheçam uns aos outros. O fascínio pela temporalidade e pela seqüencialidade cede lu gar a relações de simultaneidade que substituem a intersubjetividade gerada socialmente por uma contingência de operações de sent ido. No entanto, reconhece Gumbrecht, toda teoria possui seu ponto cego. Na teoria dos sistemas, a pergunta que permanece sem resposta

refere-se ao por que se produz uma acoplagem entre dois sistemas20.

Deleuze comenta essa aporia dos sistemas fechados em Proust e os signos. Teria sido Leibniz o primeiro pensador a formular o problema de uma comunicação resultante de partes isoladas ou de

coisas que não se comunicam: como conceber a comunicação das mônadas, que não têm portas nem janelas21. O

tratamento dedicado à questão pelo tratamento monadário é substancialmente diferente, pois a comunicação não é subsumida como princípio geral, mas como resultado de um jogo entre máquinas e suas partes separadas, peças para as quais a comunicação não é imperiosa. A resposta de Leibniz, que para Deleuze é equivocada, vê nas mônodas fechadas um estoque preestabelecido de predicados que envolvem e exprimem o mundo nas séries infinitas, cada qual com uma região de expressão particular, mas que expressam pontos de vista diferentes sobre um mesmo mundo diluído na unidade de Deus. Leibniz restauraria, assim, uma unidade e uma totalidade prévias, sob a forma de uma universalidade que inscreve em cada mônada o mesmo estoque de mundo ou de informação. Por fechadas que as mônadas fossem, haveria uma harmonia preestabelecida que cria, mesmo no isolamento, uma correspondência espontânea.

O mundo vivido da fenomenologia se choca com a proposição dos sistemas fechados, pois implica em um mapa de sistemas abertos interagindo entre si. Em O Pensamento Movente, Bergson diz que os sistemas fechados se submetem a leis puramente matemáticas, isoláveis pelo simples fato de a duração não os atingir. Haveria muito mais no conjunto d a realidade concreta, do mundo da vida e da consciência. Pois há mais possibilidades em cada um dos estados sucessivos do que em sua realidade. Para esses sistemas abertos, o possível é uma contingência

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inescapável. E o possível é apenas o real com, em acréscimo, um ato do espírito que repele sua imagem para o

passado assim que ele se produziu22. IV. Sistemas sociais e psíquicos

Habermas entendia que o mundo vivido era condição cardinal para a socialização lingüística, pois a interação de subjetividades funcionaria como cent ro virtual de autocompreensão23. A sociedade conheceria a si mesma por meio da interação de suas

contrapartes, instalando um saber reflexivo que germina no fundo do mundo intersubjetivo. A dimensão social do sentido viria da convergência de horizontes de entendimento, unidos ao redor de significados semelhantes e intersubjetivamente part ilhados. Na abordagem sistêmica de Luhmann, diz Habermas24, não há sujeitos pois eles todos se degeneram em sistemas. As

subjetividades se desmembram e os indivíduos aparecem descolados do mundo vivido. Se antes apenas o sujeito era auto-referencial, em Luhmann todos os sistemas são.

A distinção entre sistema social e sistema psíquico, estabelecida pela filosofia de Husserl, é radicalizada por Luhmann. Em sua sociologia ambos os sistemas são entendidos como operacionalmente fechados e mutuamente dependentes25, cada um funcionando como ambiente

para o outro. O processamento de sentido é t ransversal mas diverso nos dois tipos de sistemas. Se sistemas sociais se acoplam estruturalmente a outros sistemas, a relação ent re estruturas e agentes pode ser compreendida como interpenetração, um acoplamento diferente do mecanismo biológico dos sistemas operacionalmente fechad os.

O conceito de interpenetração indica que sistemas psíquicos têm acesso às suas operações mútuas (mas não suas operações internas). Seria o campo livre e contingente de ond e emerge a linguagem, não obstante o esquema não compreenda linguagem gerada intersubjetivamente, fundamento da teoria da ação comunicativa de Habermas. Isso porque não obstante suas interpenet rações, os sistemas ainda operam recu rsiva e operacionalmente fechados. Luhmann tem a comunicação como sistema de referência, e não as consciências, hipótese que visa uma análise supra-individual fundada na auto-organização26 da comunicação, em oposição a uma

abordagem molecular, baseada na unidade do indivíduo ou da consciência.

O modelo luhmanniano permite ainda visualizar as comunicações, ou seja, as operações de coordenação entre sistemas e consciências. As comunicações seriam elas também um sistema com dinâmica própria, processado por sistemas sociais que tomam os sistemas psíquicos como endereçamento. Se a cibernét ica previa que os sistemas eram construídos de maneira emergente (bottom-up), mas regidos por um controle progressivamente hierarquizante (top-down), isso deixa de ser inteiramente válido para a teoria dos sistemas, pois os sistemas psíquicos funcionariam como

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centros de controle independent es (ainda que fracos, já que meramente reflexivos) . A distinção entre sistemas psíquicos e sociais tem por objetivo salientar a falência dos conce itos de sujeito e ação, conceitos da sociologia clássica que Luhmann entende inapropriados para descrever a sociedade27. Para Luhmann, sujeito e ação seriam efeitos da proposição husserliana de um mundo

intersubjetivo, cuja falha maior seria sua incapacidade de diferenciar observação de observador28.

A ausência do conceito de sujeito reparte os sistemas em sociais e psíquicos, negando a existência de um mundo intersubjetivo baseado na opacidade das consciências. A intersubjetividade seria tão somente um conjunto de mitos oriundos da dinâmica dos valores e interesses. Todos os sistemas seriam auto-referentes e operacionalmente fechados, ainda que os sistemas psíquicos sejam cognitivamente abertos. A teoria luhmanniana não tem por eixo ações subjetivas e intersubjetivas, mas a diferença entre sistema e ambiente que se perpetua por meio de comunicações e processamento de sentido29. O problema seria mensurar esse intricado universo

de relações comunicacionais que não pode ser observado no mundo diluído da intersubjetividade. A teoria dos sistemas de Luhmann descola a perspectiva individual baseada no sujeito para uma abordagem sistêmica baseada em comunicações auto-referentes30.

No documento Espectral: sentido e comunicação digital (páginas 121-124)