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Sentido sem subjetividade

No documento Espectral: sentido e comunicação digital (páginas 197-200)

SEGUNDA PARTE

II. Sentido sem subjetividade

O debate teórico entre Niklas Luhmann e Jürgen Habermas marcou o discurso acadêmico alemão na década de sessenta do século XX7. A questão central do debate diz respeito aos limites do pensamento Iluminista, d o Idealismo a lemão e da emancipação polít ica como decorrência do pensamento racional. O argumento de Luhmann é que o quadro geral do Iluminismo perdeu sua atualid ade, enquanto Habermas advoga que uma revisão da teoria da emancipação poderia revitalizar o pensamento Iluminista e o Idealismo alemão. O debate culminou, do lado de Habermas, com a publicação da Teoria da Ação Comunicativa, e do lado de Luhmann, com a edição de Sistemas Sociais8.

A edição desses dois livros também indica os momentos finais de Luhmann rumo a uma ruptura final com o pensamento Iluminista. O resultado do debate9 foi uma absorção quase

completa da teoria habermasiana por parte de Luhmann, que traduziu uma miríade d e conceitos em uma terminologia nova e sem relação com a t radição do pensamento europeu. Os primeiros passos dessa recodificação conceitual podem ser encontrados em artigos esparsos, onde Luhmann reformula conceitos habermasianos como mundo vivido (Lebenswelt), compreensão (Verstehen) e confiança (Vertrauen). Para Habermas, o mundo vivido era não apenas uma base (Boden), mas também um horizonte social que caminhava adiante mas junto com o observador (sujeito social). Luhmann aponta o fundamento paradoxal do conceito desenvolvido por Husserl

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e adotado por Habermas, uma vez que o mundo vivido não poderia ser ao mesmo tempo uma base firme, a partir da qual todas as ações e observações se desdobravam, e um horizonte infinito e movente. Luhmann então substitui as imagens metafóricas de horizonte e base por uma distinção entre familiar (Vertrautem) e não-familiar (Unvertrautem).

Também Habermas comentou a obra de Luhmann e apresentou uma ampla discussão sobre o conceito de sent ido em sua análise crít ica da teoria dos sistemas sociais10. Em Luhmann,

os sistemas sociais são necessariamente reflexivos, isto é, existem apenas em termos de expectativas. As operações do sentido, por essa razão, pertenceriam ao domínio da sociologia. A teoria de Luhmann entende as interações humanas como eventos sociais dos quais os seres humanos não fazem parte, uma vez que seu sistema de referência é diferente e pertencente à psicologia. Tanto a sociologia como a psicologia enfocariam o sentido como unidade de operação, mas esse também seria o limite entre as duas disciplinas.

A linguagem é retratada como um simples med ium e não é responsável pela geração de sentido, uma escolha teórica que separou sistemas sociais e seres humanos de uma vez por todas. De acordo com Luhmann11, a linguagem seria um aco plamento estrutural entre comunicações e

consciências e não um sistema gerador de sentido. Habermas critica essa proposição teórica alegando que uma teoria que separe as estruturas lingüísticas dos sistemas sociais e psíquicos em dois sistemas diferentes provocaria uma sobrecarga conceitual monumental12. De acordo com

Habermas, a linguagem poderia int egrar essas duas funções porque, como medium, a linguagem seria um sistema que realiza funções sociais. A crítica habermasiana se baseia na filosofia e na história e considera como sistema aquilo que Luhmann e a trad ição funcionalista consideravam como medium, e que desde então teria uma estrutura interna capaz tanto de comunicar como de regular as comunicações internamente, e não apenas na esfera do sistema social, como também em âmbito individual.

Luhmann13 argumenta que é possível observar os seres humanos como entidades que agem dentro de um ambiente determinado, mas que essa perspectiva nos impossibilita de ver como o sentido é processado em um mundo complexo. Luhmann entende que essa é uma conseqüência que Habermas não levou em conta na medida em que ele enfatizava a intersubjetividade como uma alternativa, mormente falsa, à subjetividade. A sociologia de Luhmann, com isso, se aproxima da filosofia de Heidegger porque desenha uma unidade sem sujeito e baseia sua teoria da comunicação em um sistema de referência que substitui a intersubjetividade como um conceito basilar pela id éia de comunicações emergentes como unidades liberad as de qualquer fundamento psíquico ou transcendental14. Seria a autopoiese

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interna dos sistemas que permitiria a descrição da comunicação como uma operação sui generis que cria os sistemas.

A intersubjetividade como cent ro epistêmico da vida social acaba por rebaixar as operações da comunicação. De acord o com Luhmann, a comunicação pode ser descrita como um sistema que resolve seus próprios problemas em vistas a um sentido excedente. A intersubjetividade, por sua vez, limita a comunicação a uma função secundária e inferior, isto é, à transmissão15. Habermas, por outro lado, enxerga a comunicação como um princípio apolíneo. Seu conceito de comunicação gravita ao redor de valores como unidad e, luz, clareza, razão e entendimento, desconsiderando a natureza dionisíaca que também existe nos processos comunicacionais, isto é, os perigos, aventuras, obscurid ades e irracionalidades imanentes às explosões criativas da linguagem. Habermas convida o leitor a pensar a comunicação como a vida social dos símbolos rumo a uma normatividade de todo sutil, em oposição à presença ríspida do discurso retórico.

John Peters argumenta que a concepção de comunicação em Habermas é norteada por um conceito de cu ltura codificado pela concepção moderna e racional de t rocas lingüísticas. Como herdeiro d a tradição do pensamento político, Habermas toma o d iscurso oral — a “comunicação” —, ao invés da narrativa ou da retórica, como o centro da vida democrática. Com isso, o filósofo alemão problematicamente supõe haver certa cont inuidade entre a fala e a escrita, orientação logocênt rica e fonocênt rica que Derrida tratou de desconstruir no fim da década de sessenta do século XX. Habermas também ignora a função de mediação realizada pelo discu rso face a face, uma vez que sua filosofia enfoca a participação política em detrimento d a mediação simbólica. Por fim, a arquitetu ra conceitual da teoria da ação comunicativa de Habermas16 ignora

a escala molar da comunicação realizada pelos dispositivos técnicos. Conforme o número dos participant es aumenta, o funcionamento da comunicação ult rapassa os circuitos moleculares para se realizar em uma escala molar, circuito cuja grandeza não permite que todos possam falar ou serem ouvidos. Habermas ignora a existência desse ponto de inflexão na esfera pública, para além do qual a maioria dos participantes se torna espectadores17.

Loet Leydesdorff18 sustenta que não obstante a cr ítica de Habermas a Luhmann seja importante, a hipótese levantada pelo filósofo é incapaz de responder ao problema que ele mesmo levantou. Uma estrutura lingüística supra-subjetiva, que Habermas sugere ser capaz de integrar sociedade e indivíduos em um sistema, é de todo modo incompatível com sua assunção de uma intersubjetividade lingüística. Ademais, essa mesma intersubjetividade lingüística é incapaz d e funcionar como processo de mediação, enquanto na teoria de Luhmann os sist emas sociais estão estruturalmente acoplados tanto às operações da consciência, como processamento

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de sentido, como às próprias consciências, fornecend o com isso uma interface por intermédio da linguagem. Embora a teoria de Luhmann não ofereça uma integração entre o sentido produzido individualmente e as operações de seleção e sentido realizada pelos sistemas sociais, sua teoria entretanto localiza o ponto de inflexão entre os dois tipos de sistema sem recorrer ao conceito

deus ex machina de intersubjetividade.

No documento Espectral: sentido e comunicação digital (páginas 197-200)