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Sistema e sentido

No documento Espectral: sentido e comunicação digital (páginas 125-128)

A pergunta de Habermas a respeito da teoria dos sistemas de Luhmann é pertinente: se a linguagem é apenas um meio da comunicação, e se os sistemas psíquicos e sociais têm lógicas diferentes e teorias próprias, o que vai unir estes dois campos de codificação da atividade social? Para Luhmann, a linguagem não provê complexidade suficiente para relacionar individuação humana e socialização. A comunicação, produção transversal a todos os sistemas, também não integra os sistemas. Não haveria propriamente integração, mas apenas seleção e distinção, uma permanente produção de sentido no interior dos sistemas.

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O interior do sistema é uma zona de redução de complexidade: a comunicação em seu interior opera selecionando apenas uma quantidade limitada de informação disponível no exterior. O critério pelo qual a informação é selecionada e processada, diz Luhmann, é o sentido38. O conceito é reconstru ído para designar a pré-seleção de possíveis relações entre os

elementos internos que serão admitidos pelo sistema. João Cezar Rocha, comentando Hans Ulrich Gumbrecht, diz que a teoria sistêmica estimula a investigação das condições de possibilidade de

constituição de sentido ao invés de privilegiar a decodificação de um sentido já dado39. É um conceito já de todo afastado do campo da linguagem e que remete a certa materialidad e dos sistemas, a uma lógica de seleção dos sistemas.

A referên cia à iman ên cia do mund o em relação ao senti do impede que se d efina o sentid o com o um signo. Deve-se disti nguir co m cuidado a diferen ça en tre estru tura d e r eferên cia e estrutura d e signos. A função d e um signo requer referênci a a algo específ ico, ao mes mo tempo em que exclui a auto-referên cia. Em ou tras palavras, n ão h á n em u m signo p ara o mun do n em u m signo qu e indiqu e ele mesm o. Mas amb as as fu nçõ es — universalidade e auto-referência — são propriedades indispensáv eis do sentido. É por iss o qu e o s enti do é a matéria fund am ental: um signo tem qu e ter sentido para p oder cu mprir co m sua função, mas s enti do não é um signo. Sentido form a o contexto no qual todos os signos são determin ados; ele é a co ndição sine

qua non p ara produ zir sua assimetria. Mas en ten dido co mo um signo, o sen tido seria capaz ap enas d e respond er por um signo de si mesmo, e co m isso u m signo d a inexis tên cia d a função d e um sign o.40

A abordagem construtivista de Luhmann sugere que sistemas sociais e psíquicos são constituídos por sentido ao mesmo tempo em que constroem sentido. Sentido seria a própria ordenação d esses sistemas cegos, pois a complexidade interna dos sistemas só seria reduzida mediante critérios de seleção dos dados disponíveis. Esses dados seriam processados internamente e ofereceriam diferentes alternativas de atuação. Sentido seria o critério que o sistema utiliza para selecionar uma alternativa em detrimento de outra. O conceito também demarca os limites que os sistemas psíquicos e sociais traçam em relação ao am biente, dividindo o mundo em algo com sentido e algo sem sentido41.

Os sistemas formariam sentidos específicos que não são construções da linguagem, mas produções internas do sistema. A teoria sistêmica desenha um conceito de sentido que o vincula à execução da comunicação, uma vez que a emergência de sentido somente ocorre no concu rso direto de formas materiais. Isto é, o sentido não seria apenas permeado pelas condições concretas de articu lação e transmissão de mensagens. Ele seria a própria lógica que perfaz essas seleções. Cada sistema empreenderia uma produção específica em vistas a um horizonte possível de sentidos. Com isso, uma pintura poderia ser apreciada tanto por seu caráter estético como econômico. Cada observação remeteria a um horizonte de sentido que se vincula apenas às observações do sistema.

A idéia d e múltiplos eixos em d istribuição progressivamente ortogona l no sistema de processamento de sent ido já estava presente em Talcott Parsons42. É o princípio mesmo de

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se sobrepõem, mesmo em casos onde as relações entre os códigos de comunicação são diferentes. Se os códigos provêem sentidos funcionalmente diferent es, há então a concorrência de vários horizontes de sentido. Cada um deles relaciona ndo um conjunto de distinções que não exclui a seguinte.

No esquema de Luhmann, a linguagem seria apenas um meio de informação, e a significação, o resultado de um acoplamento fundado em experiências comuns, conexão q ue institui todas as linguagens e semioses43. O significado de uma expressão se vincularia à

organização própria do sistema vivo, pois assim como o sentido, a significação também não estaria nas palavras. As significações seriam percebidas no fundo de experiência comum do observador. Por si só elas nada significariam, pois para Luhmann as palavras e as expressões não são sinais. São mormente uma perturbação que só existe em função da coesão interna do sistema. Isto é, percepção e interpretação de palavras forçam seleções de oportunidades para ação e sentido44. No final, toda a máquina semiótica opera em função de expectativas de sentido.

Luhmann desenvolve uma teoria do sentido que ent ende o conceito como pré-requisito funcional para o conhecimento e a comunicação lingü ística. A linguagem seria um meio que emerge dos mútuos acoplamentos entre seres humanos na sociedade. O senso comum, diz Luhmann, é um sentido (senso) criado ―em comum‖ e representa a referência prática da linguagem, e não alguma verdade relacionada a qualidades naturais e objetivas45. O significad o das

palavras mudaria em razão de um fluxo de eventos que são em larga medida acidentais. Como as comunicações não têm o mesmo horizonte de sentido, o desenvolvimento da língua se faria a partir de um estatuto supra-subjetivo que não prevê a precedência do sujeito.

Ao liquidar com o sujeito e a autoconsciência, Luhmann liquida também com o entendimento da linguagem como fenômeno social e a t ransforma em simples meio da comunicação. A linguagem somente generalizaria eventos semânticos, isto é, permitiria a atomização de correntes de vivências em identidades reconhecíveis. O sentido se configura como uma produção sistêmica anterior a qualquer significado, remetendo a um movimento primitivo da organização autopoiética. Relacionando o sentido com um campo pré-lingüístico, para Luhmann ele é permanent e remissão de possibilidades. Um contexto que atualiza as seleções em relação às necessidades do sistema.

A linguagem funcionaria substituindo sinais por sentidos que se fazem no interior do sistema, não havendo expressões de significado comum aos sistemas. Também a língua não teria essa função integradora e apenas reforçaria as perspectivas internas do sistema. Luhmann entende a linguagem em contraposição à aspiração teleológica de um campo de integração superior, comum e de caráter intersistêmico , e com isso relativiza a importância dos símbolos lingü ísticos

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inclusive nos processos da consciência, retirand o-lhe qualquer propriedade de ligação interna entre compreensão e sentido. Compreensão e sentid o seriam efeito da dinâmica de signos da língua e o resultado da observação recíproca de consciências que se assumem como sistemas auto-referenciais em um mundo circunvisto por sistemas fechados. O sentido se processaria de maneira simples e funcional, como seleção que liga uma comunicação à outra, uma exigência para a construção de formas e o jogo entre o meio e a forma.

Importante no conceito de sent ido de Luhmann é a implosão da d icotomia de matriz cartesiana que dedicava ao sent ido uma proeminência d o espírito sobre as manifestações do corpo. Deleu ze assinalava essa incômoda tradição ao se referir ao sent ido como manifestação necessariamente de superfície e não de profund idade. O cisma cartesiano entre corpo e espírito localizava, no espírito, a profundidade do sentido, e no corpo, a materialidade dos circuitos de comunicação. A teoria do sentid o de Deleuze propõe um curto-circuito nesse esquema, ao indicar que o sentido se daria na superfície dos fenômenos, domínio trad icionalmente dedicado à materialidade da circulação de signos. Luhmann, de maneira simétrica, fala de um sentido que torna a rígida dicotomia entre corpo e espírito de todo obsoleta, pois sentido é função de diferenciação anterior às propriedades do sujeito.

No documento Espectral: sentido e comunicação digital (páginas 125-128)