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Deleuze e a teoria do sentido

No documento Espectral: sentido e comunicação digital (páginas 85-88)

ii - a fenomenologia de husserl iii - noese e noema

iv - sentido no mundo: interior e exterior v - mundo vivido (lebensw elt)

vi - intencionalidade ou abertura das consciências. vii - o movimento do sentido

viii - descentramento como fundamento do sentido ix - stendhal e o sentido literário

x - fenomenologia da linguagem notas

Não somo s subj etividades f ech adas sobr e si próprias, cuja essên cia fosse definid a ou definível a priori, em resumo, mônad as p ara as quais o devir foss e um acid en te monstru oso e in explicáv el, m as tornamo-nos no que somos e so mos aquil o em qu e nos torn am os; não possuímos significação determin ável de u ma vez por todas, mas um a significação em curso. É por iss o qu e o nosso futuro é rela tivamen te ind eterminado, por isso que nosso co mpor tam en to é rel ativamen te i mprevisível, por isso que so mos livres.

Jean-FrançoisLyo tard1

I. Deleuze e a teoria do sentido

A teoria do sentido deleuzeana trabalha com duas séries e planos: o plano de organizaçã o e o plano de consistência. No primeiro plano estão as substâncias, os seres e os corpos. Seu movimento é o d e territorialização. No segundo estão os acontecimentos, as transformações incorpóreas e as hecceidades. Seu movimento é o de desterritorialização . Os dois planos são paralelos às duas séries: a do presente imediato em que as coisas acontecem cronologicamente e a temporalidade eterna do aiônico. A primeira atualiza os elementos em um presente histórico, a segunda é o possível de uma duração que só tem passado e futuro. O diagrama lembra o esquema dos Estóicos, que se remetiam ao plano dos seres e ao plano dos incorpóreos (que Deleuze chamará de plano de imanência).

Sentido seria a instância limite ent re real e virtual, as remissões de uma série à out ra que não existem mas possuem realidade. As duas séries emparedam e rebatem as remissões dos corpos, e o sentido é produto desse diagrama ent re corpos e incorpóreos, entre atual e virtual. O plano profund o dos corpos faz remissões ao plano superficial dos acontecimentos, e é esse jogo de efetuação e contra-efetuação das séries que Deleuze chama de sentido. Uma proposição

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remete tanto ao plano d e organização (que é o conteúdo dos nomes) como ao plano de consistência (que é o sentido dos nomes).

Isso fica claro no caso da linguagem, onde “verdejar” é um possível do verde e da árvore. Um possível não-necessário, uma modalidade, uma maneira de ser. Verd e é uma maneira de ser da substância árvore. O ser árvore “está verde” em relação a determinada temporalidade (plano de organização). O acont ecimento é tomar o conteúdo dos nomes e remetê-los ao plano de consistência do sentido. E vice-versa. A contínua remissão garante que a linguagem funcione ao atualizar os conteúdos possíveis da proposição. Essa realização entre os dois planos, que Deleuze chama de síntese disjuntiva, compõe o processamento do sentido. É uma comunicação entre os planos ou as séries, uma lógica de remissão entre significação e expressão ou entre a série cronológica dos seres (corporal) e a série aiônica (incorporal) dos acontecimentos. Com isso, a significação é gerada na superfície da linguagem pelo acontecimento do sentido.

Deleuze insiste que o sentido não é uma propriedade do acontecimento. Acontecimento e sentido são uma só coisa2. O sentido, ou o acontecimento, é o que liga as duas séries, é o que conecta significado e significante sem estar neles. Essa instância paradoxal do sentido é análoga ao conceito de sentido em Frege3, pois independe dos pensamentos e apreensões ind ividuais

sobre o objeto. Haveria no sentido uma universalidade irredutível às consciências (um acontecimento, afinal), plano que atravessa os corpos sem se reduzir a eles. Neutro em relação às descrições individuais e às significações da cultura, o sent ido repousa no conju gar do verbo no infinit ivo, na atemporalidade e impessoalidade de uma multidão de vozes que exprimem na linguagem todos os acontecimentos em um4. Em oposição às individualidades e à cu ltura, o

sentido seria transcendental5 e não redutível à experiência ou à vivência6.

A linguagem não poderia prescindir do acontecimento, essa instância extralingüística7 que liga a série dos corpos e lhes engravida de sentido. A linguagem é então tomada por forças que incidem na d esignação e lhe descobrem um valor expressivo. É o instante em que os corpos se chocam e, de um só golpe, fazem com que coisa e palavra, dentro e fora se atritem e produzam sentido. Deleuze reforça a d iferença entre as séries dizendo que ou nos lembramos das palavras, mas

seu sentido permanece obscuro; ou então o sentido aparece, quando desaparece a memória das palavras8.

A teoria d o sentido de Deleu ze compreende um amplo espectro do conceito. Ao longo de suas obras, o conceito transita entre um entendimento proposicional e uma acepção sensível9. O mesmo diagrama que explica a natureza do sentido frasal também se aplicaria ao sistema da língua. Sua teoria descreve desde a formação molecular até o sentido proposicional das frases. Ao fim e ao cabo, compreende também o sentido como afecção. Deleu ze unifica as dimensões do

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conceito em torno da manifestação do incorpóreo, que funcionaria como uma máquina ou diagrama de geração de sentido lingüístico e social.

Assim, o plano corpo-linguagem só comunica, isto é, só u ltrapassa a mecânica da informação para comunicar, quando há essa força silenciosa que dissolve os corpos. Há remissão entre as séries tanto no momento em que a s ignificação expressa alguma coisa como no instante em que a informação remete a um plano de consistência pré-individual e, com isso, atinge o receptor, magnetizando sua intencionalidade para o que ela exprime. A diferença de natureza entre signo e sentido, corpóreo e incorpóreo, é análoga à tensão entre circulação de informação e acontecimento comunicacional. Quando a informação envolve o receptor ela remete a um circuito diferencial, há uma passagem de planos que é o acontecimento comunicacional. O sentido realiza a comunicação da mesma maneira que realiza os componentes da linguagem

O caráter multifacetado dessa teoria fica mais claro quando se pensa que Deleu ze descreve inclusive a formação das linguagens. Elas nasceriam a partir de uma máquina abstrata que opera os sinais brutos do mundo, sinais que ainda não são signos (Deleuze os chama de

phylum) e o pensamento. Esses sinais seriam como reservatório de sons ainda não lingüísticos, algo semelhant e ao que Hjelmslev entendia por substância da forma. Eles se chocam com o pensamento, arranham e envolvem a matéria consciente formando regimes d e signos, processo que Deleuze denomina transformação incorpórea. Uma vez estabelecido um regime de signos, estão dados os elementos e relações necessárias ao estabelecimento da linguagem. A relação entre matéria não-lingüística e pensamento, que Deleuze indica com o diagrama, se replica também na formação do sentido. Nesse segundo momento o conteúdo lingüístico já está disposto em um plano organizado e abstrato, mas o sent ido ainda deve ser produzido. Uma vez mais o d igrama entre séries corporais e incorporais acontece. Essa relação se replica ainda uma terceira vez, quando a código lingüístico ult rapassa o círculo informacional e produz acontecimentos comunicacionais. É o caso da literatura, dirá Deleuze a respeito de Kafka e Proust10.

Se no plano da linguagem o sentido opera conteúdos e produ z entendimento, no plano molar ele opera informações e produz comunicações. Entre entendimento e comunicação há uma diferença de escala, uma disparidade entre elementos interagent es proporcional aos circu itos de sinalização e informação. Há sentido nas duas operações: ele opera tanto na expressão de conteúdos sígnicos como no invisível da compreensão de um texto literário. Essa vasta gama hermenêutica d o conceito, também analisada por Derrida, implica em um universo ou reino d o sentido, elemento transversal à circulação da informação e ao acontecimento comunicacional11.

Em Proust e os Signos12, por exemplo, Deleuze d iz que o tema de uma obra não é

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nem suas possíveis significações. Haveria temas inconscientes e involuntários que emprestariam sentido às palavras. O estilo, tema também visitado por Merleau-Ponty, espiritualizaria as palavras remetendo-as a um universo original. Deleuze também comenta a leitu ra que Jacques Lacan13 fez

do conto A Carta Roubada de Edgar Allan Poe14. Para Lacan, haveria no conto um jogo de ilusão

e verdade entre os personagens. Eles ganham e perdem a posse da carta, mas aquilo que está escondido não é a carta, é a verdade. No conto, ignoramos o significado da carta (destinada a quem? qual o conteúdo?) e nos prendemos à sua circulação. Quem quer que esteja em posse da carta, Ministro, Investigador Dupin ou Rainha, toma o lugar do Rei sem que o conteúdo da carta tenha importância. Para Lacan, o significado da carta é desimportante pois só há significantes.

Onde Lacan via significantes que deslizavam, Deleuze vê a existência de duas séries na narrativa15. A primeira série compreenderia o rei que não vê a carta recebida pela rainha e o ministro que a rouba. A segunda série compreenderia a polícia, que não descobre onde o ministro esconde a carta, e o investigador Dupin, que a retoma. As diferenças entre as séries significante e significada seriam asseguradas pelo fio condutor da história, a semelhança das situações ou a identidade dos personagens. Mas o essencial, diz Deleuze, se dá quando as diferenças pequenas ou grandes superam as semelhanças, quando duas histórias distintas se desenvolvem simultaneamente, quando as personagens têm uma identidade que oscila entre uma e outra. O sentido rebate entre a profundidad e das duas histórias e surge como superfície16. Esse é o

acontecimento e a instância paradoxal do sentido.

Essa instância mais textual que frasal do sentido se encontra com a abordagem do conceito pela escola fenomenológica. Aqui como lá, o sentido proposicional se forma em relação a uma consciência ou corpo que o percebe globalmente, um processo desprendido das proposições frasais. O sentido assim entendido remete a uma dimensão ampla e macrosocial, mas que perfaz também as microoperações da linguagem. Haveria um ato intencional sobre os signos, uma intencionalidade que os inter-relaciona com o mundo vivido em instâncias não propriamente lingüísticas.

No documento Espectral: sentido e comunicação digital (páginas 85-88)