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O movimento do sentido

No documento Espectral: sentido e comunicação digital (páginas 97-101)

A filosofia de Bergson considera a du ração como a própria substância da realidade69. Ela pensa a vida e a materialidade como movimentos contrários, simples mas indivisíveis70. São

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exprimiria somente formas, ela não atingiria o movimento mas, no máximo, o sugeriria71. Em

Bergson se encont ra o meio-termo ent re a teoria do sentido deleu zeana e o sentido fenomenológico. Em ambas as escolas o conceito remete a um extralingüístico que nos lança em um além da linguagem. A duração é também o plano virtual, o plano de imanência que me apresenta sentidos que o texto ou os signos por si só não têm72. Esse plano virtual do sentido é detalhado por Merleau-Ponty ao comentar O Vermelho e o Negro d e Stendhal73: o sentido não está no texto, ele antes toma posse do leitor, ele me dá acesso à obra.

Bergson fazia uso de dois exemplos didáticos para explicar a sinestesia da duração. No primeiro, dizia que um jato d‟água não pode visto se desmembrado em pedaços, pois não são as gotas d‟água que formam o jato, mas o movimento da água. No segundo, lembrava que o cinema não existe em um fotograma ind ividual, é antes a soma de uma variedade de fotogramas em movimento que constitui o cinema74. A duração é essa relação interna ent re partes que não se

confunde com o todo. Não é o tempo, mera sucessão pontual de instantes, mas a duração integral das partes. Como nas gotas d‟água e nos fotogramas, o tempo não remete ao movimento, mas à enumeração do movimento.

A duração seria esse pensar intuitivo. Se a inteligência parte do imóvel e constrói o movimento com imobilidades justapostas, a intuição percebe o movimento como a própria realidade e vê a imobilidade como simples instantâneos da mudança75. O conceito de duração

sugere uma termodinâmica de fluidos mais do que partes mecânicas. Haveria uma flutuação entre consciências, pois a essência da duração é fluir76. O conceito de du ração restitui ao movimento sua mobilidade, e à mudança sua fluidez. Deleuze entende que a duração d e Bergson implica em um entendimento global do fenômeno, assunção necessária para alcançarmos o sentido.

Como diz Bergson, n ão v amos dos sons às im agens e das i magens ao sen tido: in stal amo-nos logo „de saída‟ em pl eno sen tido. O s enti do é como a esfera em que es tou in stal ado para oper ar as designaçõ es p ossíveis e mesm o para pensar suas con diçõ es. O sentid o está sempr e pressupos to des de que o eu co meço a falar; eu não pod eria co meçar sem esta pressuposi ção. Por outras palavras: nun ca digo o sen tido daquilo que digo. Mas em co mpensação, posso sempre tomar o sen tido do que digo co mo obj eto de u ma outra pro posi ção, da qual, p or sua vez, não digo o s en tido.77

A indivisibilidade da du ração também estaria presente no ambiente do sentido. Um e outro só seriam apreendidos em um golpe único, e não por suas partes decomponíveis que no caso do sentido são os componentes da linguagem. Merleau-Ponty diz que o registro da conversa mais brilhante dá a seguir uma impressão de ind igência. Isso porque a conversação reproduzida não é a mesma conversa que vivenciamos. Sem a presença dos que falaram, desaparece aquele

acréscimo de sentido que oferecem os gestos e as fisionomias, que sobretudo oferece a evidência de um acontecimento que ocorre, de uma invenção e de uma improvisação continuadas78. A reprodu ção da conversa achataria a conversação, eliminando as ramificações do instante na dimensão única do sonoro.

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O sentido teria assim uma substância imersiva, seria um ambiente indecomponível às partes que lhe integram. Em A evolução Criadora , Bergson faz referência a um colar de pérolas. As pérolas dependeriam de um fio que não é nem pérola nem colar, mas aquilo que dá unidade ou consistência ao colar, aquilo que mantém as pérolas unidas. Essa relação entre pérola e colar seria análoga à relação ent re palavra e sentido.

Merleau-Ponty também aborda a questão posicionando o sentido de maneira inversa a Frege. Se para Frege ele era uma ent idade exterior aos pensamentos e que se relacionava com as proposições, para Merleau-Ponty ele é ambiente que funde um signo a outro signo e os faz significar. Em O olho e o Espírito, o sentido é definido como a intersecção ou intervalo ent re as palavras. Não haveria uma distinção possível entre sent ido e linguagem, pois o sentido não seria nem transcendente nem imanente em relação aos signos79.

Na verd ade, não é assi m que o sentido habita a cadei a verb al, nem assi m que s e dis tingue d ela. S e o signo s ó quer dizer algo n a medi da em que se d estaca dos outros signos, s eu sen tido es tá total mente envolvido n a linguagem, a palavra i nterv ém s empr e sobre um fund o de palavra, nunca é s en ão um a dobr a no i mens o tecid o da fala. Para compreend ê-la, não tem os de consultar algum léxico in terior que n os proporci onass e, com rel ação às pal avras ou às form as, puros p ensamen tos qu e estas recobririam: basta qu e nos d eixem os envolver p or sua vid a, por s eu movim ento de diferen ciação e d e ar ticulação, por sua gesti culação eloqü ente. Logo, há um a op acid ade da lingu agem: ela não cess a em p arte alguma para dar lugar ao s entid o puro, n unca é limitada s enão pel a própria linguagem, e o s enti do só apar ece nel a eng astado n as pal avras.80

O sentido seria essa iteração de signo a signo, um “entre” que dobra os signos e os reúne na linguagem. Em A Experiência Interior, Bataille faz referência à cena que se desenvolve quando uma piada é contada e as pessoas riem por contágio. Há algo que une as consciências e que está além dos signos ou da interpretação do conteúdo significado. Bataille pensa em um vínculo que se derrama entre um ser e outro: as palavras, os livros, os monumentos, os símbolos, os risos são apenas

caminhos desse contágio, dessas passagens81. O movimento que vincu la as unidad es relaciona o sentido de

cada objeto82.

Ao invés da piada, Merleau-Ponty pensa na charada, apenas compreendida na interação dos signos. Quando reunidos, a banalidade dos signos dá lugar ao sentido que vincula aquele que fala e aquele que escuta. Não é uma técnica de cifração ou decifração de significações já prontas, pois o sentido não se d epreenderia da semiose dos signos. Ele seria dado de antemão como entidade de referência “entre” os gestos lingüísticos, um entrecruzamento ou malha dos signos. As palavras não procuram um sentido nem são geradas a partir dele (nem transcendência nem imanência); não há um texto ideal que as frases traduzem. Merleau-Ponty diz que nenhum autor pensa em um texto que reflete seu escrito, que não há nenhuma linguagem antes da linguagem. De maneira oposta aos anagramas de Saussure, para Merleau-Ponty a palavra se faz por um equilíbrio estabelecido pelas condições internas na linguagem, por uma perfeição sem modelo83.

A concepção de sentido que Merleau -Ponty apresenta fica mais clara se pensarmos a linguagem como um ser e não como um meio. Quando um amigo ou conhecido nos diz algo, sua

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linguagem está envolta naquele ser, ela se funde na particular maneira de interpelar e de despedir-se, de

começar e terminar as frases, de caminhar pelas coisas não-ditas. O sentido é o movimento total da palavra, e é por isso que nosso pensamento demora-se na linguagem84. O sentido transporia a linguagem e se daria nessa

fusão de elementos que, como a duração, não podem ser decompostos. Ele vincula a linguagem às mentes que participam e não deixa espaço para um pensamento fora de sua vibração particular. Quando nos abandonamos na linguagem, ela vai além dos signos rumo ao sentido deles, diz Merleau-Ponty. Não há nada que nos separe desse sentido pois tampouco a linguagem pressupõe uma correspondência ou modelo exterior. Ela produz e desvela seus próprios segredos. Como queria Wittgenstein, ela é inteiramente mostração. A opacidad e e obstinada auto-referência da linguagem se explicariam pela natureza autóctone do sentido.

Assim, o conceito de sentido em Merleau-Ponty é simultaneamente lingüístico e não proposicional. O filósofo francês investe cont ra a idéia d e haver um texto para o qual a linguagem se remeteria, espécie de transdução entre diferent es planos de pensamento e semiose. Para Merleau-Ponty, a linguagem não é representacional, mas indireta e alusiva. A relação entre sentido e palavra não é marcada por correspondências ponto a ponto; as palavras não se vinculam aos pensamentos como unidades duplamente cond icionadas. A linguagem não copia o pensamento, diz Merleau-Ponty, ela se faz e se refaz por ele.

Essa hipótese de um sentido entremeado nos corpos e na linguagem fica mais clara quando Merleau-Ponty comenta as observações de Saussure a respeito da frase the man I love (o homem que eu amo). A frase em inglês seria tão expressiva quanto sua versão francesa, l’homme

que j’aime, não obstante a ausência do pronome relativo na versão inglesa. Merleau-Ponty diz que

um francês tende a verter a frase para o inglês por the man „that‟ I love, inserindo um pronome relativo que a estrutura gramatical do inglês entende desnecessário. Não se trata de elipse, diz Merleau-Ponty, mas de um branco entre as palavras que significa alguma coisa. Também não se trata de um elemento subentendido, como uma tradução ingênua poderia arriscar. Merleau-Ponty lembra que tendemos a pensar que as outras línguas captam o mundo como uma variação da nossa língua natal, uma variação que deveria empregar instrumentos similares aos da nossa língua. É que nossa língua natal parece calcada nas coisas de maneira mais real, diz Merleau - Ponty. Essa é a ilusão do sentido, que costura as relações internas de signo a signo. Mas the man I

love, não obstante a ausência do pronome relativo, expressa essa realidade tão bem quanto seu par românico. A ausência de um signo não altera a expressão porque não existe correlação dos elementos do discurso com os elementos do sentido, mas uma operação da linguagem sobre a linguagem cujo fundamento é antes o descentramento do sentido. Nem as palavras seriam desmembradas dos pensamentos nem os pensamentos seriam substituídos por índices verbais.

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Os pensamentos seriam incorporados nas palavras, tornando-se disponíveis no poder das palavras. Poder que funciona na linguagem de maneira global e não atomística. Como em Bergson, h averia um movimento oblíquo e autônomo na linguagem. Se a linguagem significa alguma coisa, é porque sua vida interior, esse rastro que não tem centro, o sent ido, rodeia a exterioridade objetiva dos signos.

No documento Espectral: sentido e comunicação digital (páginas 97-101)