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6.1 Arte Sequencial

7.3. CAPÍTULO 1: SUPERANDO TODOS OS REIS

7.3.6 E-ANNA e Estratificação Social

Vale aqui remontar a importância dos templos para além da externalidade religiosa, de modo a adentrar o funcionamento das unidades sociais e que papéis desempenhavam antes e durante o período em escopo: Templos não eram somente lugares de adoração, em alguns habitavam donos de terra, e como mencionado, empregavam grande quantidade de mão-de-obra. Provavelmente, sendo os centros das cidades, era onde se dividia o que era produzido, fornecendo as necessidades materiais de uma unidade social “casa-família”. Entre os trabalhos exercidos, alguns habitantes desses templos ou “Grandes Casas” eram os mesmos que plantavam ou mantinham os estábulos, além de tecelões e tecelãs, artesãos das próprias ferramentas de trabalho ou de objetos de luxo (POLLOCK, 1999, p.70-71). De lá, era onde se estipulavam as “rações” para a população, medidas por tigelas cerâmicas de

diversos tamanhos (inclusive distribuídas para figuras votivas). Pela profissão, se estabelecia uma estratificação social que mudou radicalmente a organização da sociedade, que mesclava povos semitas, 'não nativos' (elemento associado sobretudo ao pastoreio) aos sumérios (que seguindo a tradição de povos anteriores do sul da mesopotâmia, operavam na agricultura e projetos referentes ao controle de rios e mananciais). Os vínculos sociais de subsistência se davam pelo casamento, este era majoritariamente monogâmico, a residência típica de uma classe que não exercia o poder continha uma a duas famílias, com a esposa se mudando para a residência do marido. Tivesse este irmãos, levaria também sua esposa e filhos. Mulheres poderiam reinvindicar posse de terras, que se passava de maneira patrilínea. Caso fossem administradoras de algum afazer no templo, após a morte suas posses voltavam ao lado paterno da família (WRIGHT, 2007, p.212). Portanto, a estrutura de casas e terra (campo) desse período é a que se reflete nas descrições de Uruk no corpo do texto. Nota-se com cautela, no entanto, a ausência de comparativos ao longo da adaptação com a arquitetura de uma casa-tipo em Uruk, pelo motivo de anacronismo. A forma média de uma casa para uma família de trabalhadores “semi-livres” era quadrada, contendo um a dois quartos e demais aposentos, era feito de tijolos de argila, rebocados e esbranquiçados. Móveis eram feitos sobretudo de madeira e junco, havia detalhes de outros metais, como cobre e bronze (KRAMER, 1963, p.89).

Figura 34: quadro na pág.50 e pág.53; interpretação artística a respeito de Uruk

enquanto "Veneza do Deserto". Fonte: Obra do Autor Comparação com fundações de casas em Ur, “casa de Abraão”.

No caso da adaptação, na Uruk fictícia e atemporal se figuram casas altas, e não são características do período citado, se assemelhando mais com construções Assírias (muito posteriores, afinal – ver tópico referente à cronologia). O exemplo-tipo de casa de Uruk-Dinástico Inicial é admitido brevemente no último capítulo como se fosse em Shurrupak.

Para o desenvolvimento de Uruk na adaptação, além de levar em conta o anacronismo e a referência de Uruk, utilizei o mínimo de evidência referente à outras cidades-estado para compor uma visão cosmopolita sobre Uruk. Para isto me dirigi à estruturas em Ur (“Casa de Abraão”) e levei em conta o fato de que o local, hoje desértico, se tratava de um pântano, pela descrição. Como referência, utilizei a colocação à respeito de Uruk: "Veneza do Deserto" (FASSBINDER, 2013)32, devido a

seu sistema de canais. Sobre a organização da terra em terços, não se trata somente de função literal com o herói local e sua famosa condição (dois terços divino, um terço mortal). Havia uma questão administrativa do espaço, onde a área de campo era importante como fonte dos recursos primários. Outro terço era dedicado aos bairros do templo. Havia uma oposição fundamental entre os residentes do templo que eram providos do seu sustento apesar de legalmente não serem livres (ex: shublugal, escravos), com os habitantes dos campos, legalmente 'livres' mas desprovidos de garantias à desastres, como colheitas ruins, secas, etc. (MIEROOP, 2004, p.27). Há um elemento de receio que é meramente aludido no meio da trama. À medida do segundo capítulo, é entendido como se a “casta” (ex: toda forma de servo, sacerdote ou habitante de seu templo) de Inanna se apoderasse ou se instalasse à um lugar que tenha sido particularmente o domínio de Anu (TIGAY, 2003, p.69). Inanna, no caso, foi sempre a deusa-chefe de Uruk (MIEROOP, 2004, p.42), mas nesse contexto me refiro à sua contraparte acadiana Ishtar, tratando-se aqui não da deusa enquanto personalidade (relembrando que ao longo do primeiro capítulo, as divindades em pouco se manifestam na esfera dessa Uruk fictícia, que encarna uma política distante de sua ordem no céu), mas sim do elemento nômade, semita, acadiano e sucessor de Uruk, onde Inanna figura como uma deusa da guerra (COLLINS, 1994, p.110).

32 Segundo descrição em expedição de arqueólogos da Alemanha em 2003: "Very clearly, we can see in the canals some structures showing that flooding destroyed some houses, which means it was a highly developed system. (…) [It was] like Venice in the desert." Jorg Fassbinder, 2003. Extraído de matéria da BBC: http://news.bbc.co.uk/2/hi/science/nature/2982891.stm Gilgamesh tomb believed Found. 29 de Abril de 2003. Acesso em 2 Sep, 2018.

Há narrativa que sustente essa transição de poderes, Inanna toma conta do Céu, poema fragmentário onde Anu concede o templo à Inanna (HARRIS, 1991, p.261-278), mas cumpre função literária, sendo que o território de Anu em Uruk já era parte original do sítio Kullab, distinto de E-Anna. Uruk de Gilgamesh é a grande cidade por conta dessa união de distritos, ao passo que admite-se que foi seu 'antecessor' (em uma a três gerações dependendo da Lista Dinástica ou versões do Épico – aqui mencionado como se estivesse duas gerações antes de Gilgamesh) Enmerkar foi quem trouxe Inanna à cidade (vide Enmerkar e o Senhor de Aratta), logo, tendo supostamente “fundado” o E-Anna (KRAMER, 1963, p.274). Ao mesmo tempo, começou o projeto das muralhas, com recursos tirados de Aratta: lápis-lazuli; tijolos avermelhados, e argila branca (MICHALOWSKI, 2010, p.16).

O significado das descrições de templos, a exemplo de E-Anna (Casa do Céu), o denominativo “É” é referente à casa, ou “grande casa” (POLLOCK, 2007, p.28). Nesse sentido, a função do denominativo era considerada em três tipos distintos: uma casa qualquer; uma que cumprisse uma função palacial (domínio de um rei ou rainha); ou como um estado, sítio privado. O templo era funcional não somente como oficina, era onde se fazia a partilha das “rações” (recursos racionados), de que se subsistia uma parte dos trabalhadores, e culminava no ato de comensalismo que selava o poder do

Figura 35: Muros de Uruk (pág. 12, 46 e 65) em comparação a:

reconstrução do Portão De Ishtar (cenário), oitavo portão da Babilônia (século 6 a.C.), no Museu Pergamon (Berlim).

estado mediado pelo soberano. Uruk, no tempo do Gilgamesh histórico, continha (pelo menos) dois desses templos, o zigurate de Anu e o E-Anna, original casa do céu e denominação anterior de Uruk, essa presença justificava-se pela fusão de dois distritos característicos do período da cultura de Ubaid. Na adaptação é dado a entender que o primeiro serve (mencionado uma única vez com nome, na pág.49) de residência ao rei (cumprindo a função palacial), e o segundo, originalmente uma construção pública (grande casa), é dedicado à Inanna-Ishtar (personagem recorrente que será definida no tópico 7.4.4.). Na adaptação, este templo é o que exerce as demais funções – e não é meramente o palácio, mas o local de oferta, oferenda, da distribuição de 'ração' (porção racionada de mantimentos) e um centro para oficinas de outras profissões, ao mesmo tempo que em certas horas se torna um aposento privado.

É o mais próximo de centro social dessa cidade, que projeta uma praça à sua frente, aonde se monta o mercado. Tal função, no entanto, é suplantada pelo próprio mercado “das ruas largas”. Este marca um período próximo ao declínio das dinastias locais. À respeito de mercadores, adentramos mais uma vez no contexto de fronteiras.

Figura 36: Cenas do festival Fonte: Obra do autor

Admite-se que a super-especialização de produção e alimentícia e inclusive a manutenção da suficiência de um sítio urbanizado necessitava de uma viagem aos campos próximos (no épico somos informados que Uruk possui sim vasta área de plantio, além da área habitacional). Longas viagens se passavam, frequentemente trabalhadores se instalavam mais próximos dos campos durante a época de colheita. Os mantimentos 'racionados' – em alguns casos listada como cevada (GELB, 1965, p.230-243) e seus produtos, mensalmente; com frequência junto a óleos, e lã, anualmente, para uso familiar) provavelmente se fazia como pagamento à esses trabalhadores, que não possuíam direitos automáticos sobre a terra em que trabalhavam (POLLOCK, 2007, p.21). Pela quantidade de nutrientes não ser exatamente complexa nessa dieta (ainda incluindo com menor frequência produtos fermentados, laticínios e carne), admite-se que frutos e outros vegetais eram colhidos em casa, e que ocorria pesca e caça – para receber esse mantimento ou para trocar com outros bens (MIEROOP, 2004, p.57). Esse momento de colheita constitui um momento importante no primeiro capítulo da trama, mais uma vez oportunamente incluído na chegada de Enkidu à cidade. Um figurante, meramente implícito que seja um “vigia” ou “guia”, personifica o estatuto em que se encontrava esses trabalhadores “semi-livres”, ou contratuais. À respeito do mercado, cita-se um conjunto de regras, ou uma organização mercantil (GELB, 1978, p.34) que agisse de forma independente ou à parte dos demais ditames na sociedade urbana. No projeto de adaptação, a frequente viagem desses trabalhadores projetam-se então no meio que cerca o personagem Enkidu, logo ao adentrar Uruk.

Na cena do E-Anna (figura 37), há mais uma vez a aparição de uma estratificação social. O ambiente outrora público, é revelado à partir da página 32 como uma “estado privado” de Gilgamesh e da classe alta. Esse evento, ausente no épico, é mais uma adição para situar um contexto social e econômico do período. À respeito do conceito de festa, ou banquete com participação de música e dança, propõe-se a distinção de dois eventos baseados num “comensalismo formal” (POLLOCK, 2007, p.19), um promove distinção e exclusividade (o que ocorre nas páginas 30-32 do quadrinho), e o outro se trata do momento de distribuição e consumo para as classes subordinadas (páginas 45-42, na adaptação), e mesmo que membros do segundo sequer participariam do primeiro, sabem de sua existência em algum nível – seja ouvindo de servidores a músicos, ou até mesmo por rumores. É argumentado que no período, políticas estatais minavam um senso de autonomia entre os grupos

sociais ao nível material, pois restringia acesso à produção, a não ser que houvesse união com essa instituição que emergia na “grande casa”. A dependência do dispositivo estatal e da filiação nascia da necessidade, ao mesmo passo que alimentava o ciclo de exclusividade, a marcar essa distinção entre classes (ibid, 2007, p.33), o modo mais profundo que isso atingia tanto os participantes destas “celebrações” e festas, tanto quanto aqueles que apenas sabiam que tais festas ocorriam, é ainda debatido, porém, inegavelmente tal papel ideológico e distintivo tinha particular influência psicológica.

No contexto da adaptação, essa estratificação é velada sob um conceito mais moderno, simplificando essa intrínseca relação definida na literatura como “comensalismo”, em simples distinção “pública” e “privada”, o nível profundo que atinge a população ocorre em segundo plano, pois essa prática é mediada. Ainda assim, a percepção que se busca desenvolver e transmitir é a noção sobre o poder do templo e do estado como instituições, não se tratando somente destes enquanto detentores dos meios produtivos e culturais, ao fornecer ou privar esses meios; ou mesmo de operar essa distinção tão somente por uma ideologia compartilhada – mas de que é através da prática que esse comensalismo se monta, ao suportar grande número de pessoas e administrar ao seu querer, ou sob vias desconhecidas aos participantes de parte do ciclo, a produção do alimento e da cultura. Disso não se trata mais um comensalismo mas uma estrutura altamente nociva de sociabilização.

Figura 37: Páginas 30 a 32 Fonte: Obra do autor

Há uma questão de participação inerente, e Gilgamesh aí se configura não mais no arquétipo de um rei perfeito, mas na de um tirano, cujo povo o alimenta, mas está em profunda discordância com sua conduta, tendo tornado esse processo automático e não respondendo por ele. É o sintoma de uma ruptura até no comensalismo na sua forma mais formal. Onde seu governo se torna uma representação, ele se torna um espectro, “sua presença paira sobre nós” (pág. 47). Tal descrição era usada à respeito de cidades desoladas, isso é, sem um mandato (FINK, 2013, p.96). E muito provavelmente, à beira do colapso.