• Nenhum resultado encontrado

6.1 Arte Sequencial

7.4. CAPÍTULO 2: A JUVENTUDE DO ANCESTRAL

7.4.4 INANNA-ISHTAR E ERESHKIGAL

A personagem Inanna-Ishtar foi mencionada com frequência ao longo da história, e é a principal divindade de Uruk, quem preside o E-Anna (aqui leva-se o conceito de templo tanto como habitação da divindade, e como todo o corpo político e religioso mencionado no tópico do capítulo 1). Porém, se sua presença não foi revelada, é somente após a derrota de Humbaba e na confecção de nova entrada para muralha que ela se apresenta. Nesse sentido, não é mais lil, é própria matéria, um primeiro momento que uma divindade da alta classe se revela por desejo próprio (reforçando o caráter iniciático do texto). Por esse contexto, é manifestada: Gilgamesh tornara-se o arquétipo do rei (e baniu o mal), está no ápice de sua juventude (HARIS, 2003, p.24), e a divindade se apresentou em proposta de casamento – sub-entendido aqui como o suposto ritual de casamento (ASHER-GREVE, 2013, p.16). Proposta que ocorre em suma por um suborno, ao contrário da exaltação da beleza e voluptuosidade característica dos hinos à personagem (SANDARS, 1972, p.37).

É apresentada no momento em que Gilgamesh tem de mediar um poder maior que o seu próprio em relação aos seus súditos (papel que os conselheiros de reis anterirores admitiu-se fazer). Receoso de suas intenções, faço na adaptação a completa associação da deusa com sua própria côrte. Aqui se torna livre a interpretação para incorporá-la como personificação da difícil relação entre o corpo religioso e o estatal (que até agora se julgava inseparável). Faço do episódio em torno de Inanna e do Touro do Céu uma oportunidade de dar distinção dos habitantes do distrito religioso (E-Anna) e 'secular' (se assim pode se afirmar à respeito de Kullab) de Uruk, segundo o monarca Utu-hegal (COLLINS, 1994, p.107). Esse é um motivo, e faço uso dele de maneira autoral para sanar a questão da tríplice característica dos poderes em Uruk (en religioso, lugal militar e ensi estritamente político). Tal consideração ainda se fará simplista se não considerarmos o caráter complexo da personagem: aqui ela também já inclui os dotes da guerra41. Tratando-se

da adaptação, admitem-se as figuras distintas de Inanna (deusa chefe do E-Anna e de Uruk, enquanto fusão do E-Anna e Kullab) ela mesma é fusão de, pelo menos, três divindades ou competências (WESTENHOLZ, 2013, p.43-44) e Ishtar (Ashtar

41 “Oh estrela da lamentação, fazeis com que irmãos na paz se ponham em luta uns contra os outros e, no entanto, inspirais uma amizade leal e perseverante” (SANDARS, 1972, p.38) tradução de poema

Acadiana, deusa chefe de Agade) como se fossem a mesma: em virtude do caráter de anacronismo e pela justificativa de sua aparência e presença se fazer somente no episódio do touro do céu (versão standard), somente em uma ocorrência posterior ao período de Uruk. Nessa versão o sincretismo já ocorria em sua figura, por se situar após o período Acadiano (WESTENHOLZ, 2013, p.62-63). Apesar disso, admito como se o Gilgamesh fictício corresse somente pela tradição de Uruk (pré-Acadiana), o que conhece na adaptação se limita à fama de Lugalbanda e Enmerkar – que outrora já foi um favorito dela (KRAMER, 1963, p.67); é ainda suposto fundador do seu culto em Uruk, conquistador de Aratta, e está presente na Lista Dinástica. No pouco que sabe, o protagonista desconfia da divindade, pelos motivos de sua infâmia, e pela experiência dos reis antecessores com sua 'casta'.

O seu apelo matrimonial é cheio de segundas intenções e dura tão pouco como as alianças políticas entre as cidades. É cheio de subornos e exige o casamento após a relação sexual, exigindo primeiro seu amor sexual, e depois a aliança conjugal (FOSTER, 1984, p.70). Gilgamesh lhe responde à altura, listando o mínimo (um script genérico de uma lista de casamento) a lhe oferecer, caso fosse um amante – ele deixa explícito que o casamento lhe traria somente infortúnio. Os favores de Inanna-Ishtar se fazem pela persuasão ou pela guerra, nas duas práticas ela preside e excede. Como é das fórmulas, seu voto se faz cheio de promessas, finalizando com um pedido – seu “fruto”, ou “semente” (TIGAY, 2002, p.175-179). Essa ambiguidade na sua proposta é característico dela enquanto presidindo as capacidades de diversas deificações que ao longo do tempo foram somando ou sendo suplantados por uma figura única (JACOBSEN, 1976, p.135). Logo, admite-se que não é deusa do casamento (pág. 47 do quadrinho) senão daquele casamento de uma instituição à outra, cuja cerimônia não passa disso. A união com Gilgamesh seria nada menos que uma união política, questão recorrente – já que se coloca que todo casamento se trata de uma, afinal (pág. 49 na adaptação), e não teria garantia alguma de durar. Isso é um contraponto ao que ele busca: ele possui a estabilidade (econômica, política), mas não a durabilidade (o anseio pela imortalidade, linearidade de procedência e consequência que garanta seu lugar com os ancestrais, e que funde o caminho para os sucessores) de seu reino e seu nome. Para melhor situar o caráter da deusa, me aproprio dos versos de Enheduanna em Exaltação à Inanna42: “Senhora (que) desprende as rédeas,

que alegra o coração (...) Como um dragão, tu deposita o veneno na terra”; no

contexto de organização da terra e do céu, seu local é conhecido: “Você lançou em confusão os ditames que foram ordenados . . . ordenou os ditames que trazem a confusão. Inanna, você destruiu o que não devia destruir, criou o que não devia ser criado.” (HARRIS, 1991, p.265). É instrutivo pontuar o seu papel na organização através de Enki e a Ordem Mundial43, onde o deus Enki-Ea organiza os fados dos

numes no mundo, e nos introduz à uma Inanna “agressiva e ambiciosa”, questionando a sua ausência na ordem do mundo. Para solucionar isso, Enki-Ea lhe concede “respostas oraculares à guerra”, e capacidade de “destruir o 'indestrutível' e fazer perecer o 'imperecível'” (KRAMER, 1963, p.174).

Gilgamesh igualmente se defende (enquanto personificação de seu interesse, o da vida eterna), mas sua defesa qualifica como uma ofensa à deusa. É aqui que apresenta-se o original contexto do suposto casamento entre divindade e rei: ao listar o infortúnio dos amantes de Ishtar, começa pelo clássico Dumuzi (rei ante-diluviano, “Dumuzi o Pastor” em contraste com “O Pescador”, antecessor de Gilgamesh que se instala em Uruk, não sendo ele nativo, em versões da Lista Dinástica), um dos protagonistas da Descida de Inanna ao Submundo44.

Para resumir, “Inanna é tanto a amável cônjuge de Dumuzi e sua terrível esposa” (JACOBSEN, 1976, p.49-52), o antecedente da história é aludido em, pelo menos, três versões. Em duas delas, o amor de Inanna ao Dumuzi é recíproco, porém feito às escuras, com o casamento sendo resultado do dia após a noite em que sua relação foi consumada. Se faz necessário a aprovação da mãe (Ningal) ou do pai (Nanna-Sin) de Inanna para admitir o casamento, dependendo da versão. Noutra, a própria mãe instiga o casamento – em uma delas Inanna tem um caráter mais inocente (ou assim o autor nos faz crer), em referência, ela admite que não reconhece cópula ou beijos, isso pode se referir a uma forma mais 'jovem' da deusa (KRAMER, 1985, p.127). Numa outra versão, configura-se o gênero de disputa: uma rivalidade entre Dumuzi e Enkimdu, o Jardineiro.

43 Universidade de Oxford, ETCSL - http://etcsl.orinst.ox.ac.uk/section1/tr113.htm - tradução 44 ^ http://etcsl.orinst.ox.ac.uk/section1/tr141.htm

Admite-se que Enkimdu é o favorito de Inanna, e Dumuzi recorre ao irmão dela (Utu-Shamash – a quem todos juram) para persuadi-la à respeito de enaltecer seus valores. Em todo o caso sua persuasão não vinga e seu amor continua negado. Partindo para palavras agressivas e competitividade com Enkimdu, os rivais se conciliam (um motivo que é recorrente nessa literatura e reflete algum padrão no capítulo 1, exceto que a noiva lá é um placebo pouco historiográfico) e Inanna admite a superioridade das posses de Dumuzi (KRAMER, 1963, p.152-153). Todo esse precedente configura uma Inanna jovem, inexperiente, e é mencionado de forma subliminar na pág. 82 do quadrinho (“preferiu o leite de outro”, metáfora recorrente no corpo literário sumério, que se encaixa perfeitamente a alusão das funções-dotes- profissões de cada personagem). Gilgamesh usa Dumuzi como um protótipo inferior de seus ancestrais, no sentido que fora lembrado sobretudo pela tragédia que lhe foi acometida – na cosmologia é difícil discernir sua posição, na adaptação certamente ele seria um rei ante-diluviano. Em qualquer modo, ele inspira o ritual que na adaptação, Gilgamesh teria deturpado. Assim, continua a discorrer sobre outra parte da história, a qual nos interessa mais: A descida de Inanna ao Submundo.

Os elementos até aqui apresentados provém de versões do Épico cujas audiências já conheciam tal história – reitero a menção quanto à decisão de incluir interlúdios – um deles era esse conto, que por conta do tempo reduzi a uma série de quatro a cinco quadros. Para organizar seu espaço, esbocei os desafortunados amantes de Inanna em uma ordem que nos apresentaria o motivo das estações. Do jardineiro-agricultor (admite-se subliminarmente que tenha ocorrido na primavera) ao pastor (do gado, num verão), interrompido por um interlúdio (o outono, no submundo) para depois o pastor (do rebanho, num inverno) e assim sucessivamente de volta ao jardineiro (o primeiro não foi mencionado por nome, Enkimdu, esse que vira toupeira é Ishullanu). Existem inúmeros poemas e odes à Ishtar, os nomes incluídos no épico atestam somente à alguns destes, e não necessariamente figuram nessa ordem, o fiz pelo motivo narrativo. Paralelos podem ser traçados à Circe da Odisseia (YARNALL, 1994, p.50), mesmo que a transformação de categoria de animal humano a não- humano não pode se tratar somente de mera metáfora (HARRIS, 1991, p.272), sendo que a deusa preside em uma miríade de poderes, incluindo a transformação. O conto da Descida ao Submundo tem duas versões principais: Suméria (Ur-III) e Acadiana (Biblioteca de Assurbanipal), suas principais diferenças serão citadas. No contexto, Inanna está casada com Dumuzi (Tammuz babilônico, bíblico), e lança uma empreitada ao submundo, se revestindo de jóias, vestidos, tiaras e o colar de lápis- lazúli. Cada um deles representa alguns dos me (KRAMER, 1972, p.64), já mencionados no tópico 7.3.2. A maneira de como ela toma posse desses 'dotes' será explicada logo após narrar o resumo do episódio. Por possuir os dotes, já se configura como uma Inanna amadurecida, adulta, e com uma resolução, a de desbravar o submundo (WOLKSTEIN, 1983, xiv). Fazem-se as devidas considerações em identificar suas múltiplas facetas, onde se diferem bastante a ethea de quando casou com Dumuzi (pág. 82, “em sua juventude”) e dos momentos que seguem. Suas intenções e sua presença são motivos de receio, desta vez pela sua irmã Ereshkigal, que domina os infernos. Inanna se prepara e adverte sua “ajudante”45 Ninshubur, jurar

a três deuses (jurar num contexto similar ao de Gilgamesh no início do capítulo – um motivo onde a aventureira busca garantia de retorno ou ajuda quando lançar seu clamor), Anu46, Nanna-Sin47 e Enki-Ea (no contexto, antigo detentor dos me) por apoio

e proteção. Dados três dias, caso não retornasse de seu tétrico destino, Ninshubur

45 Cada divindade possuía uma divindade 'subordinada' à ajudar ou presidir seu culto, manter sua casa – aqui emprega-se o termo acadiano sukkal enquanto “ministro, vizir” segundo definição de WOLKSTEIN (1984)

deveria adverti-los. Eis que ela segue, e encontra diante dos portões o guarda Neti (na versão acadiana, ela exige passagem, como fará a mesma ameaça à Anu, de quebrar a porta do mundo inferior e confundir a hoste dos mortos – o guarda não é nomeado aqui). Como é motivo do submundo e do fado (ou pelo costume, modo de ser), ela não pode adentrar em uma ocasião qualquer. Na versão suméria, insinua que atenderia um funeral (cujo sujeito será revelado na página 112 do documento). Nem Neti nem Ereshkigal estão satisfeitos, porém a deixam suceder, na condição que deixasse cada um dos sete mes em cada portão. Ao fim da jornada, estava despida em frente a sua irmã, “desprovida de tudo que conquistara em vida (…), rendida com nada senão o desejo de renascer” (WOLKSTEIN, 1983, xiv). Exigia na sua ambição tomar o seu trono, mas como estava fora de seu domínio (fertilidade, procriação, proliferação – nada do que havia no mundo inferior), era sujeita ao julgamento de outros deuses (percebe-se a ausência do próprio deus da justiça, seu irmão Utu, tanto quanto ao do pai, Nanna-Sin – afinal, ela foi até onde ninguém chegou), os misteriosos Anunnaki (termo literal para filhos de Anu, é empregado em contextos distintos, trata-se de uma propriedade coletiva ocultando identidades individuais), recebera o “olhar da morte” (figura metafórica, termo recorrente e paralelo ao de Humbaba, é uma expressão ao medo numa fórmula pré-daimon helênica), “palavras de raiva” e o “grito da culpa.” Como se espera, ficou presa no submundo (lit. estava morta). Nesse período, não cresciam mais as plantações e os animais não davam cria. Aqui se distingue também o Dumuzi antes e depois do casamento – enquanto Ishtar figurava como deusa da fertilidade, ele se dedicava à agricultura. No contexto de sua ausência, é um pastor, ao que indica, nômade, pode-se mais uma vez se questionar quanto ao elemento semita no conto (WOLKSTEIN, 1983, viii). Ninshubur voltou-se aos deuses, que a ignoraram, assumindo que esse era senão o preço de sua arrogância, ao tentar clamar os domínios da morte (caso explorasse esse tema devidamente, faria uma comparação ao mesmo passo de Gilgamesh levando as regras de Uruk para a Floresta dos Cedros: onde pela aventura redefiniu e redesignou o paradigma do espaço de um outro deus anterior – o apoio para essa colocação se baseia apenas na coincidentia oppositorum de efeito narrativo, e não necessariamente num elemento do próprio conteúdo literário).

46 no contexto do épico e da Uruk como simbiose de duas populações, é seu 'pai' adotivo. O trecho de Enki

e a Organização do Mundo esclarece a relação (KRAMER,1963, p.181, tradução)

47 até onde se pode traçar, em questão de procedência, é este seu pai original: no sentido da organização dos astros, ele é Lua, ela é Vênus, primogênita – pois a estrela da manhã surge antes do Sol, Utu. (ibid, 1963, p.122)

De todos, foi Enki-Ea que achou a situação infeliz em função de seus poderes e lotes (a criação da humanidade) e preparou seu resgate (e como se figura na trama, em favor da manutenção da vida). Onde a procriação de animais (humanos e não- humanos) não funcionava mais, criou os seres intersexo denominados kurgarra e galatur48, com o intuito de libertá-la do submundo, uma vez que seus processos

criativos não ofenderiam os domínios ao que foram destinados. Sua função litúrgica, a lamentação em eme-sal49 tem o poder de acalmá-la, é uma mediação de seu poder

incontrolável e de maneira imprevisível (HARRIS, 1991, p.266). Estes passaram o submundo pois não entravam em contraste com as leis reprodutivas do submundo (WOLKSTEIN, 1983, p.159) e exigiram a soltura de Inanna por Ereshkigal. Na versão suméria, a liberdade (retorno à mãe) de Inanna é conquistada num jogo de palavras de recusa entre essas figuras e Ereshkigal, que finalmente concede, pois percebe que estes se compadeceram de suas dores. No seu sucesso, ainda necessitaram das plantas e água da vida para “revivê-la”, seguindo as instruções de Enki (KRAMER, 1963, p.154). Antes de ascender de volta ao mundo, mais uma vez os Anunnaki interrompem o processo, admitindo que “ninguém jamais retornou de Kur”50; por isso,

alguém deveria tomar seu lugar51. Inanna foi acompanhada dos demônios criados por

Enki, aparentemente agora em serviço da ordem de Ereshkigal (por terem agido em sua simpatia, ao contrário da invasão de Inanna). Ela recusou que levassem sua companheira Ninshubur, seus manicures e todos os que lamentaram no período tétrico (descrito na pág. 82 do quadrinho). Finalmente em Kullab, sob uma macieira, avistaram Dumuzi, escravas. Repetindo exatamente o julgamento negativo que recebera dos Anunnaki, agora sob ele, os kurgarra e galatur julgaram isso como uma decisão, e o levaram ao mundo inferior. O conto se expande, ao Dumuzi revelar o favor de Utu-Shamash, partindo para (assim como Gilgamesh) chantagear Shamash a empreitar sua capacidade de fuga.

48 se não os mesmos, são estritamente ligados com os sacerdotes gala, (HARRIS, 1991,p.266)

mencionados no capítulo 1 e identificados ao culto de Inanna, no que cinge todas as ambiguidades da sexualidade (ASHER-GREVE, 2013, p.17)

49 Dialeto próprio para lamentações, literalmente “língua fina”, associado ao culto de Inanna e coros compostos majoritariamente por mulheres (ALROUX, 2000, p.2)

50 Versos 286 - 289 <http://etcsl.orinst.ox.ac.uk/section1/tr141.htm#para45> Universidade de Oxford, ETCSL

51 Haviam dois tipos de morte: a prevista no destino (tudo inclusive objetos tinham datas de morte), ou uma que por algum acidente violento veio antes dessa data, “morrer antes da hora” ou “no seu ápice”

(HARRIS, 2003, p.5). Para efeito narrativo, Humbaba teria morrido no segundo caso e seria necessário outra vida para cumprir essa 'lacuna' na 'tábua do destino'. O mesmo se faria presente na história de Inanna e Dumuzi – tendo ele e a irmã tendo de 'pagar', enquanto a cúmplice Ishtar escapava, ascendendo ao mundo e retornando a vida ao seu ciclo criativo.

O deus sol se comove mais uma vez com o choro sincero do oprimido, e não permite que os demônios o capturem. No entanto, nada cresce até que a ausência no submundo se resolva – nesse sentido, até Inanna se comove em remorso do destino que infligira ao próprio marido. Esse traço característico de sua personalidade, o arrependimento e a lamentação, não era visto como contradição. Parando este ciclo, a irmã de Dumuzi é tomada em seu lugar, o seu choro chega até ela (HARRIS, 2003, p.12); Dumuzi é tomado ao submundo por meio ano, e em outro permanece na companhia de Inanna. Excessivas comparações foram feitas ao mito de Adônis (WEST, 1997, p.57).

Desse longo episódio, abrem-se dois paralelos: a inescapabilidade da morte enquanto fado (então justificando-se a necessidade da morte de um por causa de outro), e a apresentação dos elementos apenas aludidos (ainda que, sob óptica própria de minha adaptação – a dinâmica de populações) à respeito da proliferação enquanto domínio incontrolável (superabundância) de Ishtar, e da relação intrínseca e transitória do domínio da vida e da morte ('hoste dos mortos'), onde um é responsável por alimentar e habitar o outro, num passo que concilia as deusas outrora inimigas.

Figura 55: Dumuzi e Inanna (comparação ao quadrinho).

Reprodução de fragmento de escultura; impressão de selo cilíndrico. Fonte: Wiki Commons, 2015

A estrutura narrativa da invasão de um domínio (Inanna na Terra dos Mortos, Gilgamesh na Terra dos Vivos), o apoio de uma divindade (Enki-Ea à Inanna, Utu- Shamash à Gilgamesh) e o desafio e reprovação de outra (Ereshkigal e Enlil) para a eventual punição de um cúmplice (o companheiro Dumuzi, ou sua irmã, um terceiro; e o companheiro Enkidu) pode, no entanto, apenas se tratar de uma estrutura cíclica ou um motivo. Introduz-se aqui subliminarmente como um aviso do que está a vir, e ironicamente parte de uma história que o próprio Gilgamesh conta a teor de fábula, uma história no qual ele falha a aprender, e está fadado a repetir. Não em sua consciência, no entanto – recusar os avanços de Ishtar configuram para ele uma seguridade (HARRIS, 2003, p.37). Mesmo que o destino reserva que outro (Enkidu) pague por isso.

Estes temas são mais explícitos logo após a longa lista de 'insultos' de Gilgamesh, no qual o evento resultante é o apelo de Inanna à Antu e Anu. Aqui logo se apresenta a existência de um desafio realmente à altura do rei que superou os demais; o Touro do Céu (Gugalanna). Nesse sentido, a trama entra de vez no campo mitológico, com a ascensão de Inanna ao firmamento da hoste celeste, longe de Uruk e sua política. Dumuzi enquanto rei ancestral serve como fundamento do suposto ritual de casamento, e Gilgamesh mais uma vez volta ao estatuto que renega a tradição (em contraste, nota-se que ele costumava deturpá-la no capítulo 1), configurando uma húbris em frente aos deuses, característico de um arquétipo do rei divinizado que, ironicamente, se torna cada vez mais humano (FRYMER-KESKY, 1992, p.77).

O poder de Ishtar se faz conhecido de maneira que Anu lhe permite libertar o touro, tal como já a permitiu se fixar em Uruk. Este se faz por intermédio de uma fórmula que usa e se repete ao longo do texto acadiano de sua descida ao submundo (TIGAY, 2002, p.174), a frequente ameaça de misturar a hoste dos mortos e dos vivos. Literalmente, significa quebrar os portões do submundo, no caso, eliminar, confundir os limites da vida e morte. O resultante, caso quisesse, seria o mesmo tumultuoso efeito que ocorreu na época-situação de Dumuzi. O preço da vida do touro à Uruk não seria menos pior: uma seca que “rouba a chuva do céu”.

A identidade de Gugalanna é questionável, ele é quem fora mencionado como o sujeito à respeito do funeral que Inanna estaria supostamente atendendo como prerrogativa de entrar no submundo. Não somente, ele também é listado como marido de Ereshkigal. Introduzir o sentido cronológico ao colocar a descida de Ishtar ao

submundo antes ou depois do evento do touro seria um desserviço à tais paralelos,