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6.1 Arte Sequencial

7.5. CAPÍTULO 3: AQUELE QUE VIU O DESCONHECIDO

7.5.3 ENLIL E ENKI-EA

Enlil foi referenciado ao longo do projeto como o deus chefe do panteão, Anu funda o mundo (é o firmamento, o céu, se une a terra para criar), Enlil o organiza, é o ar que dividiu um do outro, e se faz presente pela tempestade (literalmente, é o senhor – EN – tempestade – LIL). Anu é o céu em essência, Enlil, é o céu em ação (SANDARS, 1972, p.34). Testamento de seu poder, no entanto, encontra-se na situação da cidade de Nippur, cuja importância data do período Dinástico Inicial, e serviu como centro religioso e cultural – mais do que como potência econômica, política ou militar (ASHER-GREVE, 2013, p.25-27). Ainda assim, era de lá onde se encontrava a maioria dos achados em questão do material escrito, cuneiforme. Eram frequentes os exercícios de escritura e cópia que se sucediam nos diversos centros do saber da cidade, pelo que se admite tendo como função a formação dos burocratas que controlariam as cidades-estado, associados a classes mais elitizadas (MICHALOWSKI, 2010, p.9). À respeito de uma função mais exclusivamente do nume, sua casa era o E-Kur, literalmente, Templo da Montanha. A preocupação na sua manutenção era de categoria intermunicipal entre as cidades, sendo muito possível que durante a ascensão dos Lugal, ou até mesmo na formação dos Ensi, a cidade e seu templo tivessem mais que uma função litúrgica, era um centro cultural e religioso de extrema importância para a unidade suméria. Há tradição que lhe rende um caráter anfictiônico (WESTENHOLZ, 2013, p.48), ou seja, estava coligada a outras cidades.

62 Provérbios Sumérios – Universidade de Oxford, ETCSL <http://etcsl.orinst.ox.ac.uk/cgi-bin/etcsl.cgi? text=c.5.6*#>

Como é da tradição de demais templos, sua fama lhe rende que o próprio Enlil o construiu, ele serve de ligação entre o céu e a terra, e é de onde se provém a comunicação de um meio ao outro (BLACK; GREEN, 1992, p.53). Aos feitos da divindade, pela descrição de Utnapishtim (que sem dúvida, não carece de referências adicionais junto ao próprio texto) sabemos que ele forneceu todo o conhecimento a respeito da agricultura, sua função em trabalhar sobre a obra do mundo é representada numa ferramenta comum, uma enxada, que possibilita o plantio, a jardinagem, controle dos dutos e é simbólico na função dos construtores63. Sobre seu

temperamento, há certa ambiguidade, pois ao mesmo tempo que é louvado e decreta o destino, muitas vezes é o mesmo que tem de executá-lo. Nota-se que enquanto o mundo se organiza e as funções são completadas (enquanto procedência e sucessão, não necessariamente cronológica), Enlil e Ea figuram nos principais campos do saber, até a criação dos deuses relacionados aos astros. Nesse sentido, tornando-se como os ventos, as tempestades de areia, sua característica destrutiva se comede pelo seu poder organizacional, em função benéfica à criação (KRAMER, 1963, p.119).

No que se trata o complexo cenário ecológico da Mesopotâmia, percebe-se o processo de habitação sedentária, historicamente mais proeminente na margem, sobretudo ao leste do Eufrates. Como o Tigre, sua origem é na região montanhosa do norte, de onde o degelo e as chuvas de primavera são a principal fonte de suas características cheias, ansiosamente aguardadas e observadas pelos agricultores ao longo dos anos. As cheias ocorrem na primavera, e os rios se esvaziam no verão e outono; os planos aluviais são menos dependentes das raras chuvas, e suas habitações só foram se estabilizando num período de transformações climáticas. Em respeito aos antecedentes históricos da instalação e assentamento de populações em torno do Golfo Pérsico, por exemplo, admite-se que o mesmo corpo de água chegava a cobrir pelo menos mais três metros do nível do mar, a isso já se conta de que populações distintas podiam estar em relação de trocas desde o Pleistoceno Superior, segundo a hipótese do Oásis (ROSE, 2010, p.854); a medida que se retraía em função da última máxima glacial, foram se revelando mais regiões próprias a habitação. Estas, por sinal, deveriam ser frequentemente estabilizadas ao longo do Eufrates através de obras de diques, canais e irrigação em geral. Para efeito comparativo, pode-se considerar o norte mais dependente da meteorologia, por carecer do fértil plano

63 A Canção da Enxada – arquivado de Universidade de Oxford, ETCSL –

aluvial, sua agricultura era baseada na chuva; ao passo que os habitantes do Sul estavam frequentemente tendo de controlar a distribuição dos rios e recursos hídricos, o “fluido vital” (GREEN, 2003, p.9-12). É nesse contexto que emergem dois caráteres teofânicos distintos a respeito do arquétipo de deus-tempestade: as tempestades enquanto demonstração de poder e força irresistíveis; e a característica da sua temporalidade e visibilidade através do plano aluvial, em nuvens condensadas, que precedem o momento descrito anteriormente.

Para não deixar espaço à um viés de sua aparência, Enlil é benéfico, porém extremamente poderoso, fato que o torna “chefe” dos deuses é sua autoridade. Como personificação, ele também possui todas as relações sociais: busca o casamento, e passa seu conhecimento e dotes aos que dele procedem. Descrição sobre os deuses relacionados a seus efeitos (aqui configurando-se Adad e Ninurta, entre outros) se baseia em alguns motivos recorrentes: touros, leões, “demônios da tempestade” (pássaros com rosto de leão) e dragões benignos. À respeito disso, em função representativa no episódio do dilúvio, o demonstro numa forma antropo zoomórfica referente à águia, como elemento agregador tanto do “norte” e “sul” descritos no

Figura 73: representações de Nergal, Adad e Ninurta. Fonte: Museu de Bagdá; Wiki Commons 2012; McDaniel, 2018

tópico. Para justificar, menciono também a presença do motivo da águia, “ferindo um pecador”, nos relevos dos portões do E-Kur (hoje inexistentes) segundo descrição datando de Ur-III, sob o reinado de Ur-Nammu (BLACK; GREEN, 1992, pg.74).

Enquanto Enlil engloba todos os elementos descritos, Enki se resume sobretudo à percepção teogônica do Sul, de onde provém seu culto (ou de sua mãe, Nammu) em Eridu durante o período de Ubaid ao Dinástico Inicial. O contexto de pântano do Sul é uma condição também sazonal, porém, levam anos até se perceber qualquer padrão no ocorrido – o Sol quase intolerável do dia se enegrece com tempestades de areia cobrindo o céu64, resultando em poças e lama cobrindo boa parte dos planos. A

estrutura das plantações era estritamente dependente da irrigação, e descrita a dificuldade de manter tais obras, se torna necessária a cooperação entre grandes quantidades de mão de obra, culminando em preservação de recursos hídricos favorecendo terrenos férteis, abandonando terrenos impróprios. Com o período de degelo e a eventual transformação das cidades (com o evento relacionado ao Golfo Pérsico), as cidades começaram a tomar as regiões outrora submersas. A ação do sol revela a deficiência de nutrientes e altera inclusive a salinidade das águas nesse processo. Por isso, as regiões não eram a todo momento figuras pristinas de pasto verdejantes entre rios, ou somente planos lamacentos: eram mais comumente uma mistura entre os dois, dependendo da época do ano. Enki é cultuado em Eridu por volta desse período, no que se tem de mais antigo reconta-se “oferenda de peixes” a um “deus pré-histórico”, apesar de a cultura Ubaid ter se desenvolvido “numa economia altamente competente de lavoura baseada na irrigação” (GREEN, 2003, p.73). Nesse sentido, ambas as divindades são creditadas com os benefícios da civilização enquanto organização e construção, vários reis clamando obter seus favores para suas obras. Enlil é distinguido pelo caráter meteorológico, Enki (Senhor- Terra) é fortemente associado com as águas, e na distinção de ser ele quem garante fertilidade da terra. Como descrito na disputa com Ninmah, ele “a excedeu” na capacidade de organização ao encontrar funções e dotes para todas as criaturas, refletindo o poema Enki e a Organização do Mundo (ASHER-GREVE, 2013, p.141), sugerida em uma relação sarcástica dos dois (na página 100 do quadrinho), tendo em outro evento clamado para si a função de encher o Rio Tigre, onde a sua substância vital, a água doce, seria seu sêmen (KRAMER, 1963, p.173).

64 Como descrito através do demônio Asag (lit. confusão) na luta com Ninurta, em Lugal-E (versos 178- 181) Universidade de Oxford, ETCSL (etcsl.orinst.ox.ac.uk/cgi-bin/etcsl.cgi?text=t.1.6.2)

Nesse sentido, Absu e Tiamat se tornam meros elementos geográficos, os limites do Absu são onde Urshanabi e Gilgamesh circundam, não passa de origem, fonte da substância de Enki, tornada relevante apenas no momento que o deus a transporta para a grande terra (Enki e a Organização do Mundo). No contexto geral, as forças de ambos os deuses sob Anu – que de divindade chefe de Kullab, se tornou mais uma denotação do céu enquanto habitação e proveniência dos numes – formam o principal palco de ações que culmina no dilúvio e no retorno às atividades distintivas de marcação temporal após este. As chuvas de primavera, ao sul, podiam ser destrutivas nas cheias, liquidando grande parte das plantações aluviais, desestabilizando o suprimento de comida da região sul, projetando também deficiência em suas relações com o norte (GREEN, 2003, p.12). Esse é enfim nosso plano de fundo para a tradição do dilúvio.

Tratando da iconografia, sigo mais uma vez a tradição dos selos cilíndricos, onde se preserva o caráter sumério e acadiano de Enki-Ea, normalmente associado à água, em particular do Tigre e Eufrates (que estão representados como feixes de água em seus ombros, vide a figura 74). Para Enlil, cuja representação era apenas aludida no chapéu de chifres, justifico traduções literárias que frequentemente o associam ao lápis-lazúli (e aqui equiparo ao azul do céu) e aos elementos já mencionados dos deuses-tempestade: pássaros, leões, e híbridos. Nesse sentido, Enki-Ea e Enlil são semelhantes (meio-irmãos em procedência, associados em função), e os distinguo por

Figura 74: Enki (detalhe) de impressão de selo cilíndrico (Selo de Adda). Museu Britânico.

Estatuetas Femininas, período de Ubaid (5400-4200 a.C). Museu Britânico (Amin, 2014)

liberdade poética na representação de seus atributos (seguindo o código arquetípico da veste, elemento essencial, e chapéu, no contexto da adaptação: totalmente personalizados para cada nume em particular).

O conteúdo do Dilúvio se apresenta tal como na versão de Sandars. Cito que numa categoria estritamente suméria65, cujo personagem é Ziusudra, “Vida Longeva”

(BOTTERO, KRAMER, 1989, p.578), Enlil decide recompensar o sobrevivente do dilúvio à viver ao lado deles; na versão Babilônica, é Enlil quem o causa – tal motivo é aqui seguido à risca, “no dilúvio de Gilgamesh, Ishtar e Enlil são, como sempre, os advogados da destruição” (SANDARS, 1972, p.61). Em comparação, elementos omissos da versão Assíria, o “Épico de Atra-Hasis”, “Super-Sábio” (GEORGE, 2003, p.519) são apenas aludidos. Tais elementos, que incluem a própria identidade do personagem, aparente sob a revelação de seu trinômio, é mais identificável como o herói dessa versão, que serve banquetes antes do dilúvio e procede da linha Dinástica (é daí onde precede a identificação da cidade que habitava, Shurrupak). Distinções quanto a algumas das fórmulas (na versão assíria, anterior, não se mencionam “ovas de peixe” mas sim “de libélulas”, que aqui se torna um motivo recorrente relacionado à passagem do tempo) ocorre de acordo com escolhas autorais.

Os motivos do dilúvio também são um embate entre os numes mencionados; como no epílogo as diversas origens da humanidade são finalmente postas em ordem sob Enki-Ea, aqui Enlil é identificado como perturbado por seu crescimento, habitando onde não deviam. O 'dever' aqui, é de caráter paterno em relação às crias,

65 A Gênese de Eridu – tradução <http://etcsl.orinst.ox.ac.uk/cgi-bin/etcsl.cgi?text=t.1.7.4#> Universidade de Oxford, ETCSL

assegurando que a exploração em certos lugares da terra lhes causaria infortúnio. Caracterizá-lo como inimigo da humanidade é simplista e desonesto, todo o enredo parte do conceito de que toda a vastidão da terra não pode ser habitada por completo. Trata do problema da abundância a super-população (HARRIS, 2003, p.48), pela fertilidade – Inanna ser o motivo fundacional da própria guerra (Ishtar) a alimentar a morte (Ereshkigal), onde o impulso produtivo acarreta o destrutivo e arruina qualquer reconciliação dos que se mantém em vida: não há permanência, sequer alusão ao conceito estranho de “equilíbrio”, há, no entanto, certas máximas: excelência ou desperdício. Enlil se preocupa com o crescimento enquanto existir a teimosia da população crescer como se fazem os animais não-humanos em meio a desolação, tomando para si terras inférteis, longínquas, e principalmente ao desperdiçarem os frutos, os feitos seus e dos sábios entre eles, apenas para fins de sua fútil procriação. Este é um efeito dos próprios projetos construtivos que outrora lançaram a civilização enquanto organização. Em outras palavras, estava simplesmente recomeçando o seu trabalho, onde não via mais individualidade ou mérito no meio do que fizera. Os seres sencientes são como a lama trazida do rio. É claro que até esse projeto decretado fugiu do controle (SANDARS, 1972, p.60), ao restaurar a fome e a sede entre “os deuses” (aqui num sentido atributivo, pois refere-se aos “Anunnaki”, deixados sem nome no resto do épico – na adaptação considerei a geração “atual” dos deuses como Anunnaki, dando o nome Anunnaki apenas para sua contraparte subterrânea), que deixaram de habitar a terra que outrora foi fundada pelo seu incansável trabalho.

O dilúvio é um estratagema a tocar toda essa população para um trabalho que seja produtivo, eficiente, onde consigam controlar sua população em constante crescimento, para que não falte comida e sustento; para que ninguém volte a desordem do mundo “natural” (que aliás não se cria assim, no sentido da concepção natural enquanto 'pré-existente' – é assim porque constitui uma constante desolação de várias frentes em constante trabalho). Ao longo de minha adaptação, utilizei o personagem Utnapishtim, que é descrito como inquieto (na versão em que é Atra- Hasis), e introduzi possíveis motivos e argumentos sobre a sua própria angústia: é um rei, como Gilgamesh, apequenado pelos deuses, em função dos súditos, se torna um mediador; foi soberano cujo poder lhe foge das mãos, que em toda sua sabedoria (dote de Ea) não conseguia fazer com que os súditos tivessem uma vida aliviada ao mínimo, pelo próprio problema e ofensa que configura a super-população, a super-

abundância (num contexto econômico, configura-se em paralelo com o período de colapso do período de Uruk [3200-2900 a.C.], e em plano maior, o próprio colapso da Era de Bronze [1200-1150 a.C.]). Dotado com o ditame de Shamash, ainda assim se faz cerimonioso ao público ou no âmbito familiar, mas como Urshanabi, é irônico, sarcástico – apresenta isso no episódio em que se revela (pág.130 do quadrinho). Sua narração, como no épico, aqui se faz em primeira pessoa. Não apresenta, no entanto, a Gênese Suméria (de Eridu). Essa eu sutilmente adapto subliminarmente no Enuma Elish do epílogo.

Figura 76: Detalhe da tábua de Nabu-Apla-Idinna. Museu Britânico (Geni,2008).

Em relação à Enlil em sua fúria, vale lembrar que na versão babilônica antiga, no qual se credita a ele pela destruição da terra – ou melhor, “liberação das águas”, pela “tempestade feroz” (GREEN, 2003, p.82) por seu decreto, a cidade de Nippur já tivera sido destruída e reconstruída: até aí seu culto foi eclipsado pelo Marduk babilônico (ausente em todo o épico). Inanna-Ishtar não necessariamente ironiza a condição da vida senciente no evento, há como inserir um contexto de que seu pranto era na verdade um choro de mãe (HARRIS, 1991, p.264). Na minha abordagem, no entanto, qualquer expressão que utilizasse a não ser essa, não seria capaz de passar a ironia da problemática da super-população e da desordem incentivada pela força produtiva (que faz a semente crescer) com melhor eficiência e síntese. Ela é antagônica à Enlil (como fica claro na disposição das págs. 124-125 da adaptação).

A solução de Ea se faz como na maioria das fórmulas e poemas da literatura em seu respeito; “não há tentativa em chegar nas origens fundamentais de processos culturais essenciais à civilização (…) quando a técnica criativa é mencionada, ela consiste do mando e da palavra desse deus” (KRAMER, 1963, p.122), no termo recorrente “foi Enki”, ou “Enki o fez”. Enki é um deus de palavras e estratagemas. Enki- Ea fala quando alguém apresenta um problema de extrema complexidade que somente ele pode resolver, e ele somente esclarece. Sua sabedoria, diferente de Shamash, não é a forma confiante, é irônica e “comumente brutal (…) se Shamash é a luz clarificante da razão, Ea é o abismo de uma verdade profunda, do arcaico” (MAIER, 1997, p.27-28). Pela adaptação, é possível fazer uma alusão ao trabalho de Enki-Ea e Enlil ter sido conjunto, porém somente com um deles tendo previsto o resultado. O mesmo pode ser dito sobre a jornada que Gilgamesh toma, afinal os dois decretaram o que havia de ser.