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6.1 Arte Sequencial

7.3. CAPÍTULO 1: SUPERANDO TODOS OS REIS

7.3.5 Lei, Educação e Civilidade

Determinada a abordagem em relação a categoria de rei e mandato, bem como o remorso coletivo instaurado no momento da opressão de Uruk, não pela incapacidade ou falta da pretensão de resistência, mas pelo sentimento da inescapabilidade impedir qualquer estratégia organizacional, nos resta compor o ambiente em que se estabelece a “paz civil”, ou uma organização de todas as camadas na qual o corpo administrativo compete. No primeiro momento, sintetiza-se o papel do rei ou organizador numa sociedade onde a contabilidade se torna função

30 Para título de referência, há essa questão no conto Enki e Ninmah, onde as duas entidades relacionadas à criação discutem a função de um ser mentecapto na sociedade. De característica literária similar ao das disputas, servia também para ressaltar a superioridade de Enki, e do declínio do culto e da cidade de Ninmah. ASHER-GREVE, 2013, p.141-143

Figura 29: Enheduanna, detalhe do Disco de Enheduanna;

Gudea, Ensi de Lagash , em diorita; Lugaldalu, Rei (Lugal) de Adab

Fonte: a) Museu de Filadélfia, 2015; b) Louvre (Nguyen, 2007); c) Museu do Antigo Oriente, Istanbul, (Amin, 2014)

primordial, mas vive sob a cúpula religiosa. Há a eminência de escrita formulística, e há também grande nível de iletrados (POLLOCK, 1999, p.171). Nisso, o rei desempenha um papel que não cabe aos demais (lhes resta apenas elegê-lo através do clamor, ou pelo clamor se fazerem reconhecidos). Existem leis, “fórmulas pré- jurídicas não-escritas”, ao rei e sua casta resta administrar a justiça entre os querelantes. Na sociedade oral, as leis são fórmulas, o administrador conta com um cultor da memória (TORRANO, 1991, p.11), não no sentido religioso apenas – mas no sentido de eficência, a relação quase mágica entre a palavra e o que ela descreve se faz religioso (numinoso) somente no momento após o seu papel organizacional. Disso, a escrita torna essa palavra inquestionável, a memória perene e perceptível a todos que se integram na relação social (todos que ouvem e são capazes de ler as leis, mesmo sendo analfabetos funcionais), configurando mais uma vez num comensalismo. Nesse momento na adaptação, as leis se passam por escrito, porém não possuem uma autoridade (ou autoria) que não ao do próprio Rei, se instalando enquanto se nomeia ancestral do Sol (Utu). A respeito disso, entende-se que Utu- Shamash é o pai de toda a dinastia de Uruk (atestado na Lista Dinástica através do parentesco com um tal Mesh-ki-ang-gasher31). Seu sucessor, Enmerkar (enquanto

narrado em seu ciclo como inventor da escrita), aqui figura como ancestral também de Gilgamesh. Se o episódio da origem da escrita tinha pouco a ver com Shamash, aqui endereço a relação da escrita com a possibilidade de grafar as leis. É o deus sol quem o protege em várias aventuras como fizera com outros reis (vide tópico 7.5.1). Em suma, os deuses preferem verdade e justiça do que desonestidade e opressão, mas seus motivos não são claros (KRAMER, 1963, p.117), e os mortais se perdem no meio das interpretações de suas vontades. Gilgamesh clama a Shamash mesmo operando suas leis de forma invasiva aos súditos (configurando opressão como resultado de sua mentira, disfarce). Isso é algo que os próprios numes veem como uma infração – algo que está completamente visível no código que permitiram, no entanto. Não necessariamente se preocupam com o povo enquanto indivíduos, mas prezam pela ordem que eles mesmo estabeleceram, e enquanto não figura um sentido de verdade (como o sentido revelação [αλήθεια] helênico ou o termo mais profundo e complexo de ma'at egípcio) absoluta entre os sumérios, existe a responsabilidade do contrato nas palavras. Em linhas gerais, os súditos possuem alguma noção de direitos, mas resguardam essa possibilidade até um afirmativo no momento da infração.

Nesse sentido, onde a interpretação dos feitos e intenções dos deuses eram perenes, eles também se tornavam sua proteção em relação a injustiças. O motivo de clamor e a resposta nem sempre serviam a quem clamava: a falta de resposta atentaria a natureza da acusação para o dirigente de tais palavras. Num sistema como esse, a lógica moral referente ao livre-arbítrio era irrelevante, se tornando ausente ao longo da literatura (KRAMER, 1963, p.123), e a análise das consequências se tornava então especialidade do intérprete, sempre ao lado do administrador. Pois afinal, as coisas, como as palavras que as designam, eram decretadas. Essa percepção já aliena a questão anterior da oposição axiomática entre cultura oral e escrita.

Enkidu, embora crescido 'etlu' ou 'lugush', desempenha o papel do “igual” de Gilgamesh, e mais se assemelha a um jovem “inexperiente” 'batulu' (HARRIS, 2003, p.23), exceto que ele aprende as coisas pela relação mágica das palavras, enquanto encantamentos referentes as leis não escritas. A harimtu o ensina as diversas maneiras e etiquetas da sociedade antes dele reconhecer sua contraparte escrita. Aqui as palavras não são sua ferramenta, mas sim de Gilgamesh e do estado. É narrado então que elas podem somente descrever uma possibilidade de proteção. Porém perceber a inescapabilidade do destino, inclusive por esse contrato (onde o leitor, acostumado ao sentido moderno de direito, onde é levado a acreditar que o mesmo funda uma sociedade – tem de desafiá-lo para entender a preocupação de Enkidu), se torna o estopim para adiantar sua viagem e abandonar o campo. Não busca a lei como maneira de aliviar uma vida brutal (a qualidade protetora da justiça), e então escolhe o caminho da (sua própria) força.

O episódio da página 43 do quadrinho (figura 30) lhe faz retomar o passo, ao não ter encontrado sua ocupação (seu destino decretado). Faço menção ao conceito de liberdade no qual se estipula ao significado de um termo, amargi, primeira menção de “liberdade” no corpo literário mundial (KRAMER, 1963, p.79). Literalmente, significa “retorno a mãe” (o caso ocorre no segundo capítulo várias vezes). Por interpretação, associo esse conceito menos no que configura livre-arbítrio ou a relação posse e trabalho (de uma terra), e mais no sentido de que a liberdade é não somente o desfrute de um meio produtivo ou da própria força de trabalho, mas um desvencilhar de uma ignorância primária. Enkidu obviamente está fazendo escolhas a todo momento, a primeira delas foi ter se unido a harimtu. São as palavras dela, são através dos sonhos e da descrição a respeito de Gilgamesh que Enkidu imagina o seu destino. Disso para a 'civilização' está a um passo. Na adaptação fiz a escolha

consciente de revelar como até o intérprete ou estudioso tinha de ser um mediador – no fundo, ele sabe quem opera os destinos, dotes, ou lotes. E essa tarefa é feita individualmente, de maneira a desviar e conciliar interesses coletivos. Os deuses então se tornam planos de fundo, secundários. Por motivo disso, insinuei o elemento do “chefe” do panteão, Enlil, literalmente o vento, o ar, éter em movimento (LIL) como presente toda a hora que o anseio de um personagem afloresce nele, como forma de sonhos ou de uma coragem recém-estabelecida (págs. 41; 49).

A respeito de códigos e sistemas de lei escritos, faz-se referência à Urukagina de Lagash (século 24 a.C.), a quem se atribuem reformas de cunho anti-burocrático (isentando certas atividades de taxação que vinha crescendo no período que o antecede) e pela planificação do funcionamento do templo, condensando sua população sob chefia terceirizada (incluindo através de sua esposa e familiares – configurando, no entanto, um monopólio virtual tanto do estado e da religião), um contraponto curioso é como foi responsável por banir o costume de poliandria. Ele também reduziu a quantia de cargos, mostrando uma significante diferenciação quanto à Lista de Profissões, colocando o trabalhador e o “administrador” à par um do outro, e diminuindo a ocorrência de abuso das classes ricas sobre a preferência de clientela (KRAMER, 1963, p.79-83). Não é em nenhum momento um código completo (sobrevive em fragmentos e referências adicionais), mas já atesta certas penas (que

Figura 30: Páginas 42-43 Fonte: obra do autor

argumenta-se serem tradicionais no contexto), incluindo à morte ao acusado de furto. É inovador enquanto torna público as causas, por via escrita, da pena aplicada. No contexto da adaptação, apenas os presentes na cena poderiam reconhecer os feitos da vítima no episódio da página 43.

O 'sucessor' do código de Urukagina, este existindo em forma como o primeiro código de leis, atribuído e autorizado sob Ur-Nammu (Ur III, cerca de 2112-2095 a.C.), faz uso da casuística: “se” houve crime, “então” há de haver punição. Em distinção ao Código de Hammurabi (Babilônico Antigo, 1754 a.C.), existe a possibilidade de compensação monetária, tributária, sobre algum dano afligido, e no posterior há o característico lex talionis (KRAMER, 1963, p.84-86). Como usado na adaptação, há a diferença de crimes capitais: adultério e furto, por exemplo, eram punidos com execução. Escolhi criar um simulacro entre os dois códigos por dois motivos: Urukagina é referente ao momento ou geração que exatamente precede Sargão, onde a Lagash de Urukagina fora conquistada (danificada, destruída) por Luga-zage-si, Ensi de Umma (aqui a nossa cidade-tipo do período Ubaid, com misto de influência Semita e Amorita, longe de ser a potência local em seu tempo), evento que levou a primeira configuração de unificação da Suméria, pelo rei que o usurpou (MIEROOP, 2004, pg.48-51). Algum tempo depois, Sargão funda o Império Acadiano, e a Suméria unificada se torna parte do primeiro império multi-étnico, constituindo semitas e

Figura 31: Exemplos da indicação do elemento "Lil"

na forma de 'névoa', nas páginas 41 e 49.

sumérios sob um mesmo estado. Eis o primeiro motivo, insinuar a ascensão de Umma e a temporalidade dos domínios de uma cidade-estado; o outro motivo já é relevante para Gilgamesh: sendo o rei-típico da Mesopotâmia, aqui se configura um elemento preciso da Dinastia Ur-III, a deificação do Rei (WINTER, 2008, p.77-78). Com todas as particularidades, é claro, cita-se algo à respeito do período que omiti na adaptação: a possibilidade de existir uma côrte, no caso relacionada ao deus-chefe de Ur: Nanna- Sin. Para simplificar a narrativa, todo atributo à lei, justiça e piedade é adereçado aqui somente aos domínios de Utu-Shamash, e não mesclados à outras divindades. O modo em como se exerce a colheita de impostos é paralelo ao bala (lit. troca) do mesmo período, onde se estipulavam capacidades produtivas das cidades em função de recursos locais. Eram captados e redistribuídos para regiões com carência desses produtos (MIEROOP, 2004, p.78). Como o cálculo era feito em média, não se sabe o quanto as cidades realmente se tornavam capazes de cumprir tal meta. No contexto, o cobrador de impostos retira a posse das peles e bois (pág. 42) usando desse artifício.

Há um breve parecer sobre educação (pág. 25). Embora não tenha dado a devida atenção ao sistema educacional, vale considerar o conceito de edubba (“casa das tábuas”), onde no centro dos saberes as inscrições cuneiformes eram ensinadas e registros de todo tipo eram feitos. Relacionado à divindade Nisaba, que presidia em uma série de atributos (campo, colheita, recursos e saberes medicinais, exorcismo e literatura) mas que é de difícil identificação (pela constante assimilação, sincretismo) na iconografia (WESTENHOLZ, 2013, p.52, 67, 60, 118), esses centros eram

Figura 32: Fragmento do cone de argila fazendo referência à Urukagina (2350 a.C);

Códigos de Ur-Nammu (cerca de 2100-2050 a.C.) e Hammurabi (cerca de 1754 a.C.) em fragmento; Código de Hammurabi completo, face frontal.

Fonte: Louvre (Nguyen, 2007), Museu Arqueológico de Istanbul (Gomes, 2015)

frequentados por estudantes para exercerem a tarefa dos escribas, onde eram ensinados à respeito das centenas de ícones e suas funções. Como as demais profissões, haviam os administradores, no caso, professores (KRAMER, 1963, p.96, 138). O acesso, baseado no que há de evidência, era limítrofe, devido majoritariamente aos custos e ao tempo que o 'saber' consumia, tempo no qual muitos trabalhadores não podiam dispor pela sua família, fadada a seguir seus ofícios indistintamente. Logo, há uma menção de “passatempo” ou recreação, apenas para constatar que o processo de educação não era uma linearidade que garantiria eminente sucesso. Até aí se distinguiam escritores “juniores” dos graduandos. Muitas das tábuas do qual temos acesso provém de material educativo, exercícios de jovens (em maioria meninos, salva exceções) na difícil tarefa de inscrever textos repetidos das falas de seus tutores. Escreviam diversas cópias em verso, e praticavam memorizá-las para exames finais, onde reescreviam as tábuas por completo. As tábuas literárias Sumérias eram um oposto da partitura musical de hoje: se música é composta e transmitida por escrita, porém é realizada em performance, a literatura existia nos saberes e na mente da população, mas ela só se fazia “performada” na escrita, como parte do treino de um escriba (MICHALOWSKI, 2010, p.9-10).

Todo esse aparato de lei se fazia por meio de côrte, não se recorda juízes por profissão, estes se numeram sobretudo a atividades administrativas, alguém do colegiado ou de alguma organização, o corpo religioso apenas fornecia seus domínios para juramentos (KRAMER, 1963, p.86). Excetua-se menção à respeito de “Juízes Reais” no período Ur III, mas atribui-se esse poder aos próprios ensi, levando a crer que se trata apenas de denominação diferente. Nesse sentido, na adaptação o

Figura 33: quadros nas pág.10 e 25 (obra do autor);

Imagem de deusa, em fragmento de Nippur: Museu do Oriente Próximo,Berlim (Sauber, 2012).

aplicador da pena era senão um líder militar ou um administrador de algum ofício. Julgamentos e juramentos estavam intrinsecamente ligados, não se sabe, no entanto, com que frequência ocorriam em público. Entre disputas e discussões, fica claro a existência distinta da classe de trabalhadores e de escravos – escravos eram admitidos como tal sobretudo por vias de débito ou mesmo nascendo já como escravos. Os demais trabalhadores, por mais que livres em determinação, eram totalmente dependentes do trabalho e raramente tinham garantias quanto à própria produção, que variava muito de acordo com a geografia e as estações. Por isso, o conceito de dotes e decretos do destino não devem ser sumariamente associados como “predestinação”, pois havia circulação de valores morais de cunho produtivo, e tentativamente o esboço predeterminado de uma ascensão social, que favorecesse as elites das cidades-estado. Num contexto de transição para a vida urbana, muitas diretrizes eram levadas em conta da maneira mais calculável possível. Argumenta-se que na Mesopotâmia e Oriente Próximo, em geral nos períodos citados (e além) o casamento era praticamente arranjado, onde o shekel (unidade de medida) era calculado mais valorosamente que o amor entre o casal (KRAMER, 1963, p.250). Nesse sentido, a trama projeta mais uma vez a questão do matrimônio como um arranjo de família nuclear para o sustento individual. E daí volta-se a Uruk, onde há a relação ideológica e cerimonial dessa atividade.